terça-feira, 2 de outubro de 2012

A Cópia



- Diz-me.
- Conseguiste.
John ergueu a cerveja dele. Brindámos ruidosamente. A situação não era para menos. Tínhamos conseguido um milagre – não fizéramos ver os cegos, nem fizéramos andar um paralítico. Tínhamos conseguido que uma luz vermelha ficasse verde. E mesmo assim gritámos e sentíamos a mesma felicidade. Os cientistas viviam destas pequenas vitórias. Compensavam meses de trabalho enfadonho, cheio de repetições e recuos.

-Consegui – anunciei eu em casa. Tanto Anna como a minha mulher não percebiam o que eu fazia, mas ficavam sempre contentes com as minhas vitórias.        
- Boa, papá! – gritou a Anna, plena de felicidade, nos seus 5 anitos. Não lhe podia explicar o que era o Neuroscanner. Não lhe podia explicar que tinha conseguido, finalmente, sondar uma ligação sináptica. Na prática, tratava-se do início de um trabalho que eventualmente demoraria décadas e que terminaria com a construção do primeiro cérebro virtual, simulado por computador. John estava a terminar o programa, eu avançava, a passos largos, com o Neuroscanner, um aparelho gigantesco que precisava de uma sala inteira para funcionar.
           
Houvesse tempo… O tempo falta-nos quando começamos a sentir o sucesso. A notícia apanhou-me de surpresa, como fazem todas as más notícias. As primeiras sessões de quimioterapia deixavam-me exausto e sem capacidade para me concentrar no trabalho. “Não vais poder continuar a trabalhar”, anunciou o médico, um grande amigo meu que me dera a notícia do diagnóstico com uma lágrima no olho – dera-me a notícia, juntamente com outra, ainda pior, a probabilidade de sobrevivência era muito baixa. As metástases corroíam já o meu corpo. A visão de não conseguir ver a minha filha a crescer arrastava-me para um buraco.
Não! Não podia deixar que a doença me vencesse assim. Falei com o John. Expliquei-lhe o meu estado. Ficou de rastos. Era um bom amigo – mesmo assim chamou-me doido quando lhe expliquei a minha decisão.
- Ajuda-me.
John pensou um segundo, antes de aceitar. Se fossemos apanhados, seriamos despedidos. Não podíamos gastar recursos da empresa com aquilo que eu pretendia fazer. Combinámos gastar horas fora do horário de trabalho. Seria um bom investimento – na prática, antecipávamos o que a empresa pretendia fazer.
- Ajudo-te.


“Ajuda-me”, escreveu Anna no portátil antigo. Quem a via fazer isso, pensava que era idiota. Já ninguém usava aquelas coisas.
“Entre azul e violeta, a tua mãe prefere violeta”, leu ela, como resposta. Depois apareceu outra frase no monitor: “E eu preferia que não continuassem a relembrar o dia em que morri. Já passaram vinte anos. Já chega.”
Anna sorri, um sorriso baço, toldado pela mágoa e pelas saudades. Sabia que era uma privilegiada. O pai continuava vivo, ali, naquele chat. Continuaria vivo enquanto houvessem cópias de segurança, mesmo depois dela morrer.




Jorge Santos - 2/10/2012

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

O Vestido


            O vestido foi tirado do guarda-fatos com cuidado, como era hábito todos os anos. O tempo amarelecera o cetim e as rendas, que originalmente tinham uma cor branca. Tresandava a naftalina. As mesmas mãos que o tinham feito pegavam nele e colocavam-no ao sol. Depois procurava (agora a custo) qualquer buraco que a traça tivesse feito e reparavam-no com linha pérola. Aquele ritual repetia-se a todas as primaveras, desde há cinquenta anos. Tinha sido feito pela modista onde trabalhara, e ela própria ajudara na sua confecção. Depois, no grande dia, vestiu-o com todo o cuidado, de uma forma lenta e metódica, ajudada pela mãe e pelas tias. O vestido sentiu-lhe o nervosismo e a ânsia, o coração a ameaçar rebentar, no momento do “sim”, no momento da união das suas vidas; mais tarde sentiu a pressa com que foi despido, na ânsia da união dos corpos. Depois, foi guardado. O seu dia tinha terminado – antevia uma vida inteira guardado, como recordação, no guarda-fatos. Mas não: todos os anos ela o tirava com afinco, mostrava-o à filha, com evidente carinho, alimentando o sonho de ela o usar no seu casamento. Porém, quando chegou o seu grande dia, a filha preferiu um outro vestido, mais moderno, comprado num pronto-a-vestir. Não demorou muito tempo que aparecesse outra menina na família, e a avó mostraria, também a ela, o vestido. Não alimentava, no entanto, o sonho de ver a neta casar com o seu vestido, cada vez mais amarelecido pelo tempo. Seria a pequena a decidir. Cresceu, fez-se mulher. Já decidiu.
O vestido foi tirado do guarda-fatos com todo o cuidado, como era velho hábito, mas ao contrário dos outros anos, nos quais retornava com igual cuidado ao guarda-fatos, desta vez foi experimentado pela neta. O vestido sentiu-lhe a mesma ânsia que sentira na avó, o coração aos pulos, o nervosismo, a vontade de quem quer iniciar uma nova etapa na sua vida. A rapariga viu-se ao espelho, o coração acelerou ainda mais e abraçou a avó emocionada, que não conseguiu evitar que caísse uma lágrima no vestido. No sítio onde caiu a lágrima ficou uma mancha branca, do mesmo branco que tinha há cinquenta anos atrás, mas a neta não se importou: diria, mesmo assim, o “sim”.


Autor: Jorge Santos
Texto 9 - 13º Campeonato de Escrita Criativa 
              

terça-feira, 21 de agosto de 2012

Uma Bola com Alma



            Bato com violência contra a parede, o gato dá uma cambalhota no ar e sinto as suas garras rasgarem-me o revestimento de PVC. Quando se cansa, fico, por fim, esquecida e feliz, a recuperar num canto do quarto.

Outros protestariam de maus tratos, mas eu não: sou uma bola. Fizeram-me numa fábrica da cidade chinesa de Zhontang, uma bola de espuma entre milhares fabricadas diariamente. Calhou, por estranho acaso, ter ganho alma quando um trabalhador, desiludido com o seu futuro sem futuro, decidira roubar-me para me oferecer ao seu filho doente. No momento em que foi apanhado, apertou-me com força contra o seu peito e desejou secretamente poder conhecer o mundo comigo: foi nesse preciso momento que ganhei alma. Alguém me colocou desinteressadamente numa caixa, não reparando que eu era diferente: tinha alma; de lá fui retirada para ser guardada numa prateleira de uma loja de animais.

A minha vida só começou, realmente, quando dois olhos curiosos me fitaram. Daí à primeira patada não demorou um segundo: e que patada! Fui projectada contra a janela de vidro; o apito fez, com a força do embate, o seu barulho característico e, mal caí no chão, já uma nova patada me atirava na direcção oposta. Sim. Aquilo é que era vida. Senti-me, imediatamente, uma bola realizada.

O tempo foi passando (porque o tempo passa, mesmo para as bolas de poliuretano), as brincadeiras do gato abriram rasgos na minha superfície; perdera a minha forma original, estava mais mole, tão mole que tive medo de já não ser suficientemente bola para o meu gato, e de ele preferir brincar com outras bolas, mais recentes. Mas não: sempre fui a sua preferida, mesmo quando a sua patada começou a ficar mais fraca, até ao momento em que deixou de querer brincar. Morreu abraçado a mim, sentindo-lhe os batimentos do coração cada vez mais fracos, até que, por fim, o corpo dele ficou em silêncio.
E agora? Para que servia a bola de um gato quando não havia mais gato? Ainda por cima uma bola mole e deformada, à qual já faltavam bocados que tinham sido arrancados em momentos felizes. Temi ser atirada para o lixo, ou queimada no quintal. Temi tantos fins que nem me apercebi que outro gato tinha entrado no quarto, silencioso e matreiro, como só os gatos podem ser.

Soube imediatamente, pela violência da primeira patada, que ia voltar a ser feliz.


Autor: Jorge Santos
Texto 10 - 11º Campeonato de Escrita Criativa 
              

Hoje vou...



            Hoje vou ser diferente: grafitar no céu a minha esperança; sorrir dos pensamentos dos outros; tecer uma manta com os sonhos das crianças. Escutar, e perceber no que escuto o que não dizes, e dizer tudo o que precisas ouvir, não o que quero dizer. Ser diferente. Apenas. E só.
            Hoje vou beijar o chão que pisas. Porque não posso ser teu – já o sou, há muito tempo, mesmo que ainda não o tenhas percebido. Portanto, anda por aqui, para onde eu estou. E além disso, está mais limpo – o chão; e acolhedor – porque eu estou cá.
            Hoje vou prender-te. Amar-te como queres ser amada, mesmo que nunca o tenhas dito – deixa-me ler na tua pele o que desejas. Hoje. Sempre. Subir-te e voltar a descer, numa montanha-russa onde cozinhamos a nossa felicidade – sem travões, nem flaps, nem air-bags; choques frontais, puros e duros. Bons. Memoráveis. 
            Hoje vou ser a tua diferença e indiferença. O teu riso e o teu choro. Como sempre: tudo, da mesma forma que és tudo para mim, desde o ar que respiro ao calor que me sufoca.
            Hoje vou pensar o impensável: não és. Depois lembro-me de te esquecer, para seres simplesmente o que és: minha. Porque existimos. Os dois.
            Hoje vou ser amor e ódio. Dir-te-ei o que não queres ouvir, para depois ouvires o que não te digo. Como é hábito, afinal, hoje, e sempre.
            Hoje vou, finalmente, fazer-te compreender a verdade: sou teu. E não sou, porque não me compraste nem me ofereci. Estou do teu lado, seguimos viagem, juntos. A estrada está cheia de buracos – mas é nossa.
            Há uma felicidade infeliz em tudo o que te costumo dizer, hoje vou satisfazer-te um capricho. Mostra-te. Explica-te. Tenta-me. Faz.
            Hoje vou fazer silêncio, gritando ao mundo tudo aquilo que és, mesmo sem o saber.        
A vida é feita de fragmentos que hoje vou coser: ensina-me. O meu dedal, a linha e o tecido: és tu.
            

Autor: Jorge Santos
Texto 9 - 11º Campeonato de Escrita Criativa 
              

Raios parta o tempo (ou a falta dele)



            Não sei se me irritou mais a comprovação do facto ou a longevidade da suspeita: não iria de férias nesta Semana Santa. Sou escravo do tempo, ou da falta dele, que não permite que o trabalho seja entregue nesse safado a que as pessoas resolveram chamar de Prazo. É quase anedótico, numa época em que tanta gente se queixa da sua falta, que eu me queixe do excesso de trabalho - ou da falta de tempo, consumido por um milhão de pequenas coisas que, no fundo, me deixam sem tempo para nada fazer: o frete do trabalho, o frete das deslocações, o frete do transporte dos filhos para as suas múltiplas actividades com que ocupam o seu tempo, e me consomem o meu. Só de noite tenho tempo para ter tempo para mim, para me ocupar dos meus vícios, socializando virtualmente no Facebook e escrevendo – sempre fora de horas, quando o silêncio da casa me proporciona a paz de espírito necessária.     
            Que saudades tenho da minha infância, quando o tempo parecia esticar-se infinitamente, pondo à prova a minha capacidade para arranjar algo com que o ocupar. Agora é ao contrário: o tempo é tão curto que põe à prova a minha capacidade para arranjar algum tempo livre para fazer algo.
Crescemos rápido demais e ninguém nos avisa de que isto acontece (pulhas!). Mal deixamos as nossas fraldas e já as estamos a pôr aos nossos filhos. Aprendemos as primeiras letras, e quando damos por ela, já somos doutores. Evoluímos em pouco tempo, mas é quando mais precisamos dele que deixamos de ter tempo – escapa-nos das mãos, esvai-se rapidamente num buraco sem fundo, à medida que a nossa vida o consome.
Felizmente que a falta de tempo não me permite, sequer, sentir a infelicidade de não ter tempo; sobra-me pouco tempo para tentar ser feliz.
O tempo é verdadeiramente ignóbil, um autêntico carrasco da nossa felicidade, a menos que o ocupemos com aquilo que realmente gostamos de fazer - quando isso acontece, sentimos que voltamos à nossa infância, e só assim somos felizes, esquecendo, completamente, a passagem do tempo. 
            

Autor: Jorge Santos
Texto 8 - 11º Campeonato de Escrita Criativa 

FB-Dependência



            Eu, Facebook-dependente, me confesso.

            Nos tempos que correm, quando julgamos não haver tempo para sermos sociais, recorremos ao Facebook e à nossa rede de contactos, aos quais alguém teve a presunçosa delicadeza de chamar “amigos”. Partilhamos fragmentos, mais ou menos interessantes, das nossas existências, na corrente de um rio seco, onde apenas correm bits e bytes. Se não formos ver o que acontece, poderemos não ir a tempo de ver algo realmente interessante – já li uma comparação entre o facebook e um frigorífico, ao qual estamos constantemente a abrir a porta para ver se há algo diferente, mas onde raramente há. Em vez de o usarmos como forma de crescimento pessoal, de contacto entre várias experiências de vida, fechamo-nos nos nossos grupos herméticos, partilhando banalidades, autêntica “palha social”, como em tempos uma amiga (e desta vez uma amiga a sério) referiu. Palha viciante, da qual sentimos falta, como se de uma droga se tratasse.

            Quero parar, fazer um encontro à moda antiga, onde possa levar os álbuns das fotos das férias (“o que é isso?”, perguntariam os meus filhos, não habituados a manusear fotos); petiscar um bom queijo e um bom chouriço; beber um bom vinho; jogar uma cartada a sério; sair para o quintal da casa e plantar algo vivo, para variar; sentir o calor humano, bem longe dos Likes, dos LOL e dos Smiles.

            Quero parar e fazer isto tudo, mas ninguém tem tempo: devem estar todos no Facebook, suponho eu, a fazer algo de muito (pouco) interessante.

            Queres saber quem são os teus amigos verdadeiros? Não precisas do Facebook para isso – ou pelo menos espero que não precises. Pega no telemóvel e vê os contactos com mais chamadas. Esses devem ser os teus amigos. Os mesmos que tinhas antes de começares a usar a rede social, e os mesmos que tens agora, mais amigo, menos amigo. Os amigos verdadeiros não precisam do Facebook: são aqueles que sabem sempre que algo está mal pelo que não publicas, que pressentem o teu estado de espírito pelos teus silêncios.

            Leio o que acabo de escrever e sinto a estúpida necessidade de colocar um Like - tão viciado estou; depois abro o Firefox, digito http://www.facebook.com; no preciso momento em que ia clicar no botão de “ir”, sinto o sol de fim de tarde a bater nos estores e desisto - dou algum descanso ao Facebook, e vou fazer algo de realmente importante: jogar à bola com o meu filho. 
   

Autor: Jorge Santos
Texto 7 - 11º Campeonato de Escrita Criativa 

Aquele Dia de Chuva


            Já chovia bem quando saí de casa. Abri o meu velho guarda-chuva, todo rasgado, e fiz-me à rua. Gostava particularmente das quartas-feiras porque podia dormir até mais tarde; as aulas só começavam a meio da manhã e esse pensamento animava-me logo. Além das quartas-feiras, gostava do som da chuva a cair: havia ritmo, e eu, como músico, apreciava particularmente a cadência das gotas e o diferente som que faziam ao cair sobre diferentes materiais.
            O que é que podia tornar ainda mais perfeito aquele dia? A resposta estava na paragem do autocarro: a rapariga dos meus sonhos, que costumava lá estar, sempre guardada pelo irritante namorado – linda de morrer, um verdadeiro atentado à minha paz. Desta vez estava sozinha, debaixo de um guarda-chuva violeta.
Que fazer?
Num impulso de vergonha fechei o meu velho guarda-chuva e atirei-o fora. Senti imediatamente os pingos frios a cair-me na cabeça e a escorregar pelas costas a baixo.
Arrepio.
            Aproximei-me da paragem, completamente encharcado. Ela virou-se. Tinha os olhos escuros com estranhos reflexos verdes e um sorriso que me desarmou completamente. Percebi que me convidava a abrigar debaixo do guarda-chuva, porque não havia outro sítio nas imediações.
            - Obrigado! – digo eu, com uma voz estupidamente trémula. O meu cérebro fervilha à procura de coisas interessantes para lhe dizer, mas o nervosismo era tanto que não surge nada. Não adianta falar do tempo, porque estava encharcado dele. Num ímpeto de idiotice relativa, pergunto-lhe pelo namorado.
            Ela riu-se com um riso melódico que me provocou imediatamente:
- Terminámos. Ele era um chato.
            A notícia teve o mesmo efeito em mim que teria uma bomba nuclear: eles tinham terminado. Não corria o risco que ele aparecesse de um momento para o outro para reivindicar o que, temporariamente, era meu.
Não sei ao certo durante quanto tempo falámos, mas chegámos a uma altura em que as palavras eram perfeitamente irrelevantes: usávamos já a telepatia e a linguagem gestual - aprendemos juntos, naquele dia, a linguagem do amor.

            Hoje, tantos anos passados, olho, através do vidro da janela da nossa casa, para a chuva que varre os campos lá fora. O que tornaria ainda mais perfeito o dia de hoje?
Resposta simples e imediata: ela, que pressinto por trás de mim.
Viro-me. Os mesmos olhos escuros com reflexos verdes sorriem para mim. Abraço-a com cuidado para não apertar a barriga: dentro de poucos dias a Sofia nascerá (num dia de chuva, espero eu).


Autor: Jorge Santos
Texto 6 - 11º Campeonato de Escrita Criativa 
              

O Nosso Quartel de Férias


            Chegámos à rotunda da Murtosa, depois de termos passado a vasta zona de eucaliptal onde as vendedoras e prostitutas vendiam os respectivos melões; entrámos na minha parte favorita da viagem, longe do aborrecimento da auto-estrada e da humilde civilização de Estarreja: à nossa frente abria-se uma vasta planície pintalgada por extensos campos de milho e terrenos baldios – dir-se-ia estarmos temporariamente na Holanda.
Indiferentes a toda a beleza, os miúdos jogavam nas suas consolas portáteis– houvesse bateria e teríamos sossego. A minha mulher escolhia as músicas -  tinha uma predilecção pelo Pop dos anos 90 -, “Menos mal”, pensava eu, enquanto passávamos pela ponte da Varela.
À nossa frente abria-se o deslumbramento completo que era a Ria, onde a água e a terra se fundiam numa perfeição quase excessiva e os Moliceiros pareciam nascer do seu fundo de propósito para saudar o nosso regresso à Torreira.
Ao contrário dos anos anteriores, tivemos dificuldade em alugar a casa – conseguimos à última hora, numa rua onde nos lembrávamos apenas do Quartel dos Bombeiros. Não fizemos perguntas, sequiosos como estávamos por aqueles quinze dias a gozar os areais extensos, o marisco dos restaurantes típicos e os fins de tarde preguiçosos no Café da Ria; mas logo percebemos o nosso erro: a casa não ficava na rua do Quartel dos Bombeiros – a casa ERA o Quartel dos Bombeiros.
-Vamos embora! - gritou a minha mulher, claramente zangada – Eu vim para descansar!
Os miúdos desligaram as consolas, olharam para o Quartel e berraram em uníssono: - Fixe!
Dois rapazes, da idade dos meus filhos, apareceram, a princípio tímidos mas logo perdendo a timidez, e desencaminharam a Sofia e o Filipe para um jogo, no pequeno parque que ficava à frente.
Um bombeiro, que fumava junto à porta, anunciou que eram filhos dele. Aproximámo-nos.
- Bom dia. – cumprimentei eu, estendendo a minha mão que ele apertou como o aço aperta um pedaço de borracha.
- Já vi que vieram enganados…esperavam outra coisa… – disse ele, sorriso aberto,  –… mas posso assegurar que está tudo impecável. Mas se quiserem, devolvemos o dinheiro. Há sempre gente a querer a casa.
Olhei para a minha mulher – ela tinha o olhar perdido nos miúdos que brincavam no parque, esquecidos, pela primeira vez há muito tempo, das suas enervantes consolas portáteis.
 - Ficamos, querido… – sentenciou ela, por fim – … viemos para descansar…

Durante os anos seguintes, não passaríamos sem uma quinzena no nosso quartel de férias. 



Autor: Jorge Santos
Texto 5 - 11º Campeonato de Escrita Criativa 

A Última Árvore


            Pressenti-o muito antes de me ter visto. Vinha na minha direcção, o destino era inevitável. Parou no cimo da ladeira. Sentia-lhe a pulsação a acelerar, porque nós, árvores, somos mais do que parecemos à primeira vista: Deus tirara-nos a mobilidade em troca da capacidade inata de sentir os outros seres vivos. Sentira no passado a alegria das outras árvores, minhas irmãs, pela chegada da Primavera e pelo despontar dos rebentos das primeiras folhas. Também eu partilhara com elas o tímido nascer das minhas próprias folhas e a alegria de renascer a cada Primavera, encafuada no meu buraco no meio da montanha, onde raramente via o sol. Essa mesma capacidade de comunicação tinha-me permitido sentir a dor da morte das minhas irmãs, o frio das máquinas, o gotejar da seiva derramada – foi, portanto, com resignação que me preparei para sofrer o mesmo fim das minhas irmãs, serradas em blocos e levadas para longe, para onde já não as podia sentir. Aqueles pedaços de madeira ainda tinham sentimentos, mesmo quando eram torturados para fazer mobílias, alimentavam o fogo dos humanos ou eram processados com ácido para fazer o papel dos livros que ninguém lia.
            Se antes sentia as minhas irmãs perto, com o tempo elas foram desaparecendo, levadas em grandes e ruidosos veículos conduzidos por humanos. Sempre pensara que os humanos tinham grandes desígnios para a terra despojada de árvores, mas eles limitavam-se a cultivar plantas insatisfeitas, que chupavam a vida da terra e a deixava infértil. Quando constatavam a infertilidade dos solos, as terras eram inevitavelmente remetidas ao abandono.
Com o tempo haveria mais árvores - pensava eu com os meus ramos -, mas isso não acontecia. Não havia mais árvores, apenas eu, enfiada num buraco de difícil acesso, que o homem descia agora com cuidado. Senti que na sua mão trazia algo, talvez uma ferramenta igual à que tinha assassinado as minhas irmãs – preparei-me para o pior. O coração do homem acelerava à medida que se aproximava de mim, como se o abate de uma árvore insignificante como eu fosse um grande desafio. Parou; cortou um pequeno ramo; acariciou as minhas folhas e partiu, subindo, com algum custo, a ladeira.
            Outros homens vieram, passados alguns dias, mas eu já não tinha medo. Percebia o que diziam, deixando-me imensamente feliz: do meu pequeno ramo iriam fazer novas árvores que reflorestariam o mundo.

Autor: Jorge Santos
Texto  4 - 11º Campeonato de Escrita Criativa

O silêncio da noite


            Pedem-me que descreva o que ouço, à uma hora da manhã; logo a mim, que tenho o privilégio de nada ouvir a essa hora. Presto especial atenção, para não pensarem que sou especialmente mal-agradecido, e confirmo: não ouço nada, silêncio absoluto. Ao longe, passa um avião que tem o real desplante, a verdadeira desfaçatez, de tentar invadir este texto: tanto espaço aéreo e tinha de vir mostrar o seu roncar, neste preciso momento, ao longe, mesmo por cima da minha cabeça. Típico: voa carregado de gente e de coisas, vem de parte incerta e vai para alguma parte, poluindo tudo pelo caminho – é, no mínimo, justo que se dê pelo seu esforço.
            No silêncio da noite ouve-se o Nada, os meus ouvidos queixam-se de nada ouvir e começam a gritar num zumbido, que tem tanto de estridente como de irritante. Quando terminar este texto, colocarei os auscultadores (os mesmos que eventualmente me terão causado este mesmo zumbido), e satisfarei a sua necessidade de barulho – parecem dois bebés mimados, incessantemente à espera de atenção.
Além desse zumbido incómodo, na minha cabeça ouço uma voz, que hoje parece estar rouca – de certo se terá constipado com alguma ideia mais fria que germinou durante a noite –, mas isso não a impede de estar constantemente a falar, sem nunca dizer algo de realmente interessante. Essa é uma das características mais aborrecidas das nossas vozes interiores: nunca dizem nada de original, anunciando sempre as razões pelas quais não podemos fazer o que queremos e discursando constantemente sobre o que devíamos estar a fazer, mas não fazemos. Umas verdadeiras chatas que habitam a tempo inteiro as nossas cabeças, sem pagar um único cêntimo de renda.
E que mais ouço? Só o som seco das teclas do portátil, enquanto tento escrever algo de minimamente interessante; depois leio o que escrevo e, constantemente insatisfeito, apago tudo e volto a escrever, até ficar com um resultado final de relativo interesse. O teclado, coitado, é que sofre com a minha crónica indecisão. Devo confessar que tenho alguma pena dele.

Para finalizar: de tudo o que não ouço, noto principalmente a ausência do som mais irritante que, segundo dizem, costuma assombrar esta casa a esta hora; este misterioso som, alegadamente semelhante a uma moto-serra a cortar a dura madeira de carvalho, só aparece quando estou a dormir, segundo dizem – repito –, porque eu, sinceramente, nunca o ouvi. 



O cheiro da Tua ausência


            Sinto tanto a Tua falta. Agora. Neste momento. Pressinto no ar a ausência do teu aroma, aquele que me enlouqueceu completamente a primeira vez que estivemos juntos, bem como todas as outras vezes até ao momento em que desapareceste da minha vida para sempre.
            O cheiro da tua ausência é amargo – um autêntico vazio de esperança, negro como a noite em que disseste que ias embora. Mistura-se com a lembrança do sabor do nosso último beijo, sabor de pastilha elástica de morango partilhada pelos dois. Depois, o teu olhar, ligeiramente vesgo, disse-me tudo. Acabou. Falaste algo, inventaste desculpas, mas o meu cérebro já tinha percebido que não havia forma possível de voltarmos atrás.
            A que cheira o vazio, o sentimento de solidão, a ausência de esperança? Cheira a maresia, ao sal das lágrimas que prometi não chorar – mas choro e continuo a chorar – porque o ser humano tem uma capacidade imensa para sofrer, muito maior do que a capacidade que tem para amar. 
Quero sentir de novo o cheiro doce da esperança, que cheira a crepes acabados de fazer, cobertos com doce de maçã, que te costumava preparar nas manhãs de domingo; o cheiro do assado acabado de esturricar enquanto fazíamos amor na sala; o cheiro inodoro do teu suor, enquanto gritavas de prazer.
A efémera ilusão de te ter, cheirava a canela e a café acabado de fazer, enquanto que a certeza de te ter perdido cheira à podridão, causada pela morte do sonho do nosso futuro comum.
O não cheirar o teu perfume faz-me desejar a morte – para quê viver se não o posso sentir? Não seguirei esse caminho, prometi no vão da escada, onde nos falámos pela última vez. Mas se não permites que morra, para quê continuar a sentir outros cheiros que não sejam o teu? Ordeno, portanto, ao meu nariz, que não cheire absolutamente nada, que se guarde até que encontre, de novo, quem valha a pena cheirar.



Autor: Jorge Santos
Texto 2 - 11º Campeonato de Escrita Criativa 

Vieste, minha besta


            Vieste, minha besta. Não. Recuso-me a apelidar-te de besta, porque estaria a insultar os animais que sabem conquistar a sua presença e pressentem quando a mesma é indesejada. Vieste apenas e, felizmente, só. Ofendeste-nos com o teu visual de quem não é cego mas deveria ser. Feriste as nossas narinas com o teu fedor. Não satisfeito, atentaste contra a nossa inteligência com as tuas supostas piadas – supostas por ti apenas, odiadas pelos outros. E quando te riste, o teu riso confundia-se com uivos de dor de um cão abandonado.
            Vieste, mas além desse crime, que devia ser punido com o isolamento perpétuo e longínquo, cometeste o sacrilégio de tentar dançar, para evidente agonia de todos, porque a tua dança, aberrante, arrogante e abestalhada, incomoda e consome nos outros a vontade – porque ninguém se consegue descontrair quando há um louco perigoso por perto.
            Vieste, mas por favor não voltes, porque o desejo da tua presença só habita em algum lugar recôndito da tua imaginação. Da mesma forma que a doença, que ninguém espera que nos definhe o corpo, assim és tu, que por algum motivo que todos desconhecem, continua em insistir em aparecer desta forma, não convidado, insolente, arrogante. Numa palavra? Não existe uma palavra para descrever o nojo que a tua presença nos mete - a nossa língua é neste campo manifestamente incapaz.
Não, não houve esquecimento da minha parte ou uma falha nos correios. Não houve qualquer motivo idiota que nos fizesse não enviar o convite – o único idiota és tu, e escrevo estas linhas para te recordar desse facto já lembrado o ano passado e que te custa entender, um efeito evidente da senilidade precoce dos teus vinte anos. Portanto aqui vão os factos simples e tristes da vida: não queremos que a tua presença se misture com as nossas; não queremos que venhas; emigra para um sítio afastado onde não haja Internet, para que não tentes sequer enviar mensagens; se morreres, aceita esse facto de forma definitiva, não permitas jamais que a tua alma nos assombre.
Deixa-nos, por favor, apreciar a ausência do teu ser. Rezamos para que no próximo ano nos dês este presente, não mostrando sequer a tua sombra, e, por mais ranho que chores, não nos interessa que seja a tua própria festa de aniversário.

Autor: Jorge Santos
Texto 1 - 11º Campeonato de Escrita Criativa 

sábado, 4 de agosto de 2012

Escuridão





            - Já a estás a ver? – pergunta o Sr. Antunes. Os seus grandes óculos escuros ficam bem com o seu fato perfeito. Só alguém muito observador perceberia. Ou alguém que reparasse na bengala por baixo da mesa. Eu esperava que ela não estivesse ali. Não acreditava.
            O empregado de mesa veio perguntar, novamente, se queríamos alguma coisa. Antunes disse que não, que iríamos esperar. A mim, pessoalmente, interessava-me fugir dali para fora, o mais rapidamente possível. Naquele caso, o melhor que poderia acontecer seria ela não vir. Todas as outras possibilidades teriam, para mim, a sua quota-parte de vergonha.
            No restaurante estavam poucas pessoas, em virtude da crise. A porta abre-se. Entra…ela. Ou melhor: elas. De todas as possibilidades que tinha previsto, aquela era a mais distante, e fez-me esquecer, imediatamente, a vergonha.

            Bati à porta da casa do Sr. Antunes três semanas antes. Era uma vivenda luxuosa, na Baixa, o que me deixou mais satisfeito. A Segurança Social tinha-me dado o endereço de um possível emprego, e lá fui eu, postal na mão para ser carimbado pela entidade empregadora, neste caso para ajudar um senhor invisual. Como pré-requisito estranho: bons conhecimentos de informática.
            Uma voz perguntou quem era pelo intercomunicador. Eu apresentei-me, e a porta abriu-se automaticamente. Antunes estava na sala de estar, a ouvir música clássica em altos berros. Não percebi como podia ter ouvido a campainha, mas não me preocupei com isso: estava demasiado preocupado com o ar severo dele, óculos escuros, bengala ao lado do sofá, rosto ossudo com bastantes cicatrizes, testemunhos de vários acidentes, tanto em casa como na rua. Principalmente na rua. Foi esse o tom inicial da nossa conversa, depois dele baixar a música.
Depois, zangámo-nos e ele pôs-me fora de casa.

Tinha duas hipóteses, ou fazia queixa à segurança social, ou me ia embora. Mentira: a terceira hipótese, ainda mais estranha, começava a ganhar forma na minha cabeça. Voltei a tocar à campainha, e voltei-me a apresentar. Esperei, depois, longos segundos até que a mesma se abriu. Ele estava mais calmo, pediu desculpa, e apresentou o meu trabalho. Ele cuidava bem das suas tarefas domésticas, e tinha uma senhora que lhe tratava da roupa, da comida e da casa. Mas este homem tinha um problema, comum a tantos homens: ele queria encontrar a sua alma gémea, e para isso precisava de mim. Para procurar nas redes sociais essa mulher.
Respirei fundo, e aceitei o trabalho.

Procurar a alma gémea de alguém é trabalhoso, porque primeiro temos de conhecer a sua própria alma. Antunes era o último descendente de uma família relativamente  abastada, pelo que seria fácil conhecer mulheres interessadas em ganhar estatuto e dinheiro. Portanto, nada de dar pistas. Antunes não seria rico, nem sequer cego, para impedir que o tratassem como um coitadinho. Ele gostava de provar que não era. À noite, desligava a luz, e eu tinha de encontrar o meu caminho por entre os móveis, coisa que ele fazia com muito mais rapidez.
“Como vês”, dizia ele, “ a falta de visão é um problema muito frequente, mesmo de aqueles que podem ver.”
Eu concordava. Estava com outro problema. Nas redes sociais era complicado procurar alguém com os requisitos apertados de Antunes, até que ele próprio concordou em desapertá-los. Surgiu então a Olga, quando eu já estava a desesperar. Trocaram links de sites de música clássica, mensagens apaixonadas, poemas e relatos de viagens, onde Antunes relatava os sons e os cheiros que sentia pelos sítios por onde passava. Pelas respostas de Olga notava que Antunes mexia com ela - tornaram-se de tal forma apaixonadas que me senti ali a mais, como a famosa “velinha”.
Combinaram por fim um encontro. Antunes pediu-me que fosse com ele. Ela indicou que usaria uma flor no vestido, uma rosa pintada de azul – Antunes adorou a indicação, mesmo que nunca na vida tivesse visto algo azul.
“E quando ela descobrir?”, perguntei.
“Vai correr tudo bem, vais ver”, responde ele, com uma visão surpreendente.

Ela entrou. Rosa azul no vestido, como tinha combinado. Era vistosa e tinha, mais ou menos, a idade de Antunes. Pareciam feitos um para o outro. Na mão trazia uma bengala, nos olhos óculos escuros. Uma rapariga mais nova servia-lhe de guia. Sussurrou-lhe ao ouvido qualquer coisa que Olga gostou, exibindo um sorriso bonito, depois a rapariga fez-me um olhar de cumplicidade – a noite parecia prometedora.
“Já sabia que era cega?”, perguntei baixinho, ao ouvido de Antunes, enquanto elas se aproximam (as cabeças dos outros homens presentes na sala viravam-se para as ver passar). Este responde apenas, no mesmo tom baixo: “Tinha a certeza disso... quando aprendes a confiar no coração, começas a ver tudo claramente.”


             

Origami


Ele colocou o boneco feito de papel em cima do banco de jardim. Estava sentado, olhando para o pequeno lago. Depois, José deu dois passos para trás para admirar melhor a sua obra. Satisfeito, continuou o seu passeio.
Mais à frente, pegou numa folha do seu caderno de Origamis (faltavam poucas, não tinha dinheiro para comprar mais), dobrou-a com toda a paciência habitual de quem tinha esse vício desde adolescente e colocou o resultado final - uma flor de papel - no chão.
Estava a semear Origamis pelo jardim público, como se fosse o novelo que Teseu desenrolou para conseguir saber o caminho de saída do labirinto do Minotauro – mas José desconhecia a lenda grega: sentira necessidade de deixar o seu rasto no jardim (ou no mundo?), por alguma razão estranha. Aquele seu hábito dava com a mulher em doida: por toda a casa tinha pequenas miniaturas de papel dobrado. Desde que a empresa o tinha dispensado, não fazia outra coisa. Estava tantos anos num emprego de que não gostava, mas quando se viu sem ele, ficou admirado com a falta que sentia. Antes um emprego de que não gostava, do que nenhum emprego para não gostar.
Andou mais uns passos e tirou mais uma folha. Dobrou-a para formar uma criança pequena. Depois colocou-a no chão. Representava o filho pequeno, a quem José ensinara a fazer pequenas dobras, para alegria do petiz (que no entanto preferia as longas horas a torrar o seu pequeno cérebro à frente de uma televisão – José ficava louco por isto).
Atirou ao lixo o caderno, agora vazio de folhas, e foi-se sentar no banco de jardim. Tirou um papel do bolso, uma carta que indicava o fim do pagamento do subsídio de desemprego. Releu-a pela décima vez: precisava de uma luz para voltar a ter esperança. Tinha piada que um papel lhe tivesse terminado a vida, quando tinha passado a vida a dobrar papéis.
Uma menina ficou à sua frente, magra, ar sorridente. Nas mãos tinha os Origamis que José tinha espalhado por todo o jardim.
“Gostas?”, perguntou ele.
Ela disse que sim, com a cabeça. Uma mulher aproximou-se, mas ficou a alguma distância, como se não quisesse interromper a nossa conversa. José cumprimentou-a com um ligeiro acenar de cabeça, depois voltou a sua atenção para a menina.          
            “Queres que te ensine a fazer um?”, perguntou. A menina não disse nada, mas o seu olhar faiscou e o sorriso abriu-se ainda mais. José pegou no único papel que tinha, a comunicação do fim do seu Subsídio de Desemprego, e ensinou a menina a fazer as dobras de um pato, a figura mais simples que sabia fazer. A menina tentou uma e outra vez, até conseguir fazer um pato, mais ou menos convincente.
            “Está muito bem feito. Queres que te ensine a fazer outro?”
            A menina disse “Sim”, de uma forma quase inaudível. Isso causou alguma agitação na mulher, que se aproximou ligeiramente. José desfez a figura do pato e ensinou a menina a fazer um sapo. Depois ela foi brincar com o sapo de papel, saltando por todo o jardim, sem nunca se afastar da mulher, que se aproximou de José.
            “O que fez foi fantástico”, disse-lhe ela.
            “Não foi nada. Qualquer um sabe dobrar papel”
            Ela riu-se.
            “Não. Vou explicar. Esta menina não fala há um ano, desde que perdeu os pais num acidente de viação. E tenho outras crianças na mesma situação.”, disse ela, explicando depois que era terapeuta e que fazia a reabilitação de crianças traumatizadas.
            “Posso fazer-lhe uma proposta de trabalho?”, disse ela. José disse que sim, com um sorriso aberto, estranhamente parecido com os Origamis que fazia: tinha encontrado a sua Luz.
    

sábado, 7 de julho de 2012

Adeus, Amor


O Amor observou o olhar duro dos dois cônjuges, avaliou o ódio premente e decidiu abandonar a casa, fechando a porta: não voltaria ali.

Mais uma vez, pensou.

Estava farto. Mais um lar desfeito e não podia fazer nada: quando o Amor desaparecia do lar raramente voltava, pelo menos na sua forma original. Podia, quando muito, vir encapotado como Pena e Compaixão, suas irmãs bastardas, mas nunca como Amor. À saída, abatido, cruza-se com o seu irmão Ódio, carregado de malas: via-se que vinha para ficar.

No início, a casa tinha sido habitada pela sua irmã Atracção. Os dois membros do casal viveram este período apaixonadamente, sempre juntos. Faziam amor em qualquer sítio e em qualquer lugar, mesmo naqueles sítios onde não era suposto ou permitido. Não lhes importava: a Atracção forçava-os a isso, aliada à sua meia-irmã Paixão. As duas eram poderosíssimas, até ao momento em que se desvaneciam, consumidas pelo rame-rame do dia-a-dia, e o Amor tomava conta deles. Mas mesmo esse não fazia todo o trabalho e podia desaparecer, se não fosse alimentado. Era esse o grande problema do amor. A sua eterna fome. Os dois tinham de trabalhar para o manter, como mais um membro da casa, mais um filho invisível que mantém tudo unido, não se dando por ele até ao momento em que sai de casa. Nesse momento, tudo cai e é-lhe dado o merecido valor.

O Amor ouve ainda os gritos da discussão dentro de casa, abana a cabeça e desaparece na noite, rumo a outro casal com a Atracção a desvanecer.  

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Romeu


Romeu esperou que Julieta fosse dormir. Fazia-o todas as noites, quando o livro estava fechado – se alguém o lia, e isso ultimamente era raro, ele seguia o enredo normal: enamorava-se, lutava e morria por amor. Depois o livro era fechado e colocado na estante, à espera da próxima pessoa que sentisse curiosidade em lê-lo. Era no entanto falso que as personagens só tivessem vida na cabeça do leitor, como uma mancha intelectual que era lançada pelo escritor directamente à mente de quem lia a história. Até faziam um jogo: se mexia com o leitor, o escritor recebia a pontuação completa: 100 pontos. Se só causasse cócegas, 50. Se lhe passasse completamente ao lado, era o fracasso. E Romeu tinha conhecido alguns fracassados, que tinham pegado no livro e logo a seguir pousado, intimidados pelo linguajar estranho e anacrónico.

Romeu gostava de sair do livro, para escândalo das outras personagens, mais atinadas, mais resignadas ao seu papel. Tinha dois sonhos secretos: queria conhecer melhor quem o lia, e, ainda mais secreto, queria conhecer um escritor. Não o seu escritor, que tinha morrido há quinhentos anos, mas alguém mais comum, e, de preferência, ainda a respirar. Costumava sair pela lombada, por uma pequena abertura que fizera aos poucos. A primeira vez que se viu fora do livro espantou-se por ver que o mundo era enooooooorme. Mesmo se o que achava ser o mundo, não passasse de uma prateleira de uma estante. Deambulou um bocado, olhando com interesse para as capas dos outros livros. Repetiu a proeza na noite seguinte, quando tinha a certeza que não havia leitores por perto, e sempre depois da Julieta adormecer – sabia perfeitamente que ela estava a dormir, porque roncava (e isto Shakespeare não tinha contado). Não roncava muito, era certo, mas o suficiente para ser incómodo.

Romeu cumpriu o seu primeiro sonho percorrendo livros de Biografias e compêndios de História. O segundo sonho foi cumprido pouco tempo depois. E o culpado fui eu, com esta mania de escrever fora de horas – quando dei por mim, tinha uma personagem de um livro quinhentista ao meu lado, a observar com interesse o que fazia.
- Diz-me, senhor, que fazeis?
Eu olhei para a personagem, uma figura humana, com a forma delineada a frases Shakespearianas e da altura de um livro, que se sentava de pernas cruzadas junto ao portátil. E eu, que escrevo este conto e sei que não passa de um produto da minha pobre imaginação, digo-lhe, de uma forma algo ríspida: - Fala direito, Romeu. Já ninguém fala assim.
A personagem olha para mim, com os seus olhos de personagem, e diz-me que concorda. Já tinha aprendido muito, dos livros que lera.
- Certo, mano, bute lá, posso fazer-te uma pergunta? – perguntou o Romeu.
Eu ri-me do que tinha escrito. O anacronismo era completo, e senti o Shakespeare a dar uma volta na tumba.
- Chuta – disse-lhe eu.
- Porque é que escreves? – perguntou.
Eu esperava uma pergunta mais complexa. Aquela era simples. Escrevo para provocar o leitor.
Romeu digeriu a resposta, concordou comigo. Se o leitor não se sentir minimamente provocado, não lê. Expliquei-lhe que ele pertencia a uma das mais importantes histórias de amor de todos os tempos. Até podia afirmar que o amor, tal como o conhecemos, a sua visão romântica, nascera com ele.
- Eu sou o pai do amor actual? – perguntou.
Achei a pergunta mais complexa. Não muito mais complexa, porque tinha nascido da minha imaginação – pensei algum tempo na resposta.
- De certa forma, sim – respondi, por fim. A nossa visão romântica vinha de Romeu. Talvez isso explicasse o facto dele estar ali, à minha frente, de papel e letras. Pertencia ao imaginário colectivo de todo um planeta – isso devia valer de alguma cousa.
Senti-me cansado desta conversa. Despedi-me dele com um aperto de mão/letra. Vi-o a dirigir-se para o seu livro, a desaparecer num buraco da lombada. Nunca mais o vi. Os seus dois sonhos tinham sido satisfeitos – podia voltar agora para os braços da sua Julieta roncadora.    


Autor: Jorge Santos  (8 de Junho de 2012)

quarta-feira, 30 de maio de 2012

Amor em tempo de crise (Rui)


         Rui divorciara-se há pouco tempo. Comprou um T1 na baixa e procurou uma empregada para o ajudar das lides domésticas, coisa para a qual ele não tinha a mínima queda. Teve várias, cada qual com a sua particularidade que ele abominava, até que surgiu Diana, que ele considerou perfeita a todos os níveis. Era de tal forma surpreendente que o Rui, que namorava com uma mulher linda mas sem o mínimo espírito, começou a sentir-se cada vez atraído por Diana, e tinha a certeza de que o sentimento era recíproco. Sabia que era errado, mas estava-se a borrifar para o que os outros diziam. A vida era dele. Diana foi uma surpresa em todos os sentidos, e o Rui deixou-se levar por um sentimento que já não sentia há muito tempo.
Mas a sua paixão por Diana estava comprometida. Havia um segredo que ela não contava, que a impedia de ser dele a tempo inteiro, para sempre. Rui, obcecado pela ideia de descobrir o segredo de Diana seguiu-a até uma casa de aspecto velho, na zona mais pobre da cidade. Tocou à campainha. Trazia na mão um casaco dela. O seu coração estava acelerado. Tudo lhe dizia que aquilo que ele estava a fazer era errado. Diana tinha direito a ter os seus segredos. Ele arriscava-se a perdê-la, e isso seria inimaginável.
         A porta foi aberta por um homem da idade do Rui, em cadeira de rodas.
         “Boa tarde. Eu sou o patrão da Diana, ela deixou isto lá em casa” , disse o Rui, sem saber onde se meter, mostrando o casaco que Diana deixara lá em casa.
         O homem, de aspecto jovial, pegou no casaco de Diana.
         “Entre, entre. A minha mulher fala muito de si. Eu chamo-me Filipe.”, disse  o marido de Diana. E o Rui, sentindo-se miseravelmente, entrou. Filipe serviu-lhe um cálice de Vinho do Porto, uma das poucas garrafas que tinham guardado para as ocasiões festivas, como aquela visita do patrão de Diana. Ela estava visivelmente incomodada, mas menos do que o Rui, que não sabia o que dizer nem onde se meter. Falaram essencialmente sobre futebol e sobre carros. Filipe tinha pena de não poder correr (dava alguns passos, mas a muito custo). A doença roubara-lhe o corpo, mas não a dignidade, dizia ele. Era fácil ver que Diana amava o marido. Rui via isso na intimidade do gesto e do olhar. Na forma como falavam, o Rui via-se como um intruso. Sentia-se francamente mal. O Filipe saiu da sala para ir à casa de banho. Rui olhou para Diana, mas esta não olhou para ele, enquanto arrumava a louça. “Podias ter-me dito”, disse ele. Diana olhou finalmente para ele, e o olhar disse-lhe tudo aquilo que as palavras poderiam falar. Filipe veio antes do tempo. Ouvira eventualmente as palavras do Rui. Se ouviu, o Rui nunca chegou a saber. Queria sair dali. Ir-se embora para o seu mundo, onde não era enganado pela mulher que amava. Olhou para o relógio e apresentou uma desculpa qualquer. Cumprimentou o Filipe e Diana acompanhou-o à porta. Beijou-a na face, ela acariciou-lhe o braço, para lhe acalmar a fúria. Ele não sabia o que pensar, mas lia no olhar dela uma certeza estranha. “Acalma-te, tudo se vai resolver”, pediu ela, numa voz suave que o acalmou instantaneamente. “Segunda-feira”, disse ela, apenas, antes de fechar a porta. O Rui desceu a escada, com alguma amargura, mas uma pequena luz de esperança a iluminar-lhe o caminho.

         Diana ouviu o Rui a descer a escada, mesmo com a porta fechada (merda de material, costumava dizer o marido). O Filipe fitava-a muito sério.
“Gostei dele”, disse. E depois continuou com uma frase que a fez chorar: “Tens muito jeito para escolher amantes.”
Diana deixou-se escorregar pela parede a baixo, junto à cadeira de rodas de Filipe. As mãos apoiadas na roda, numa atitude de súplica. Não adiantava esconder, porque o marido conseguia percebê-la, como nenhum homem conseguira antes. Entendia-lhe todos os sentidos das palavras que ela dizia, todos os silêncios. Percebia os gestos. Por isso mesmo, ele percebia a razão da tristeza dela, do abatimento constante, do choro nocturno quando ela pensava que ele já dormia. Maldita Esclerose que lhe tinha roubado o corpo, ainda em vida.
“Tu ainda és nova e cheia de vida”, disse ele. Propôs-lhe então o divórcio. Ele sacrificava-se para que ela fosse feliz. Diana rejeitou essa hipótese. O marido dela era ele, não o queria abandonar.
“Então, tenho algo a propor”, sugeriu ele.

Segunda-feira. Rui começou a ficar nervoso – não era do feitio da Diana atrasar-se. Isso poderia significar que o marido não concordava com que ela trabalhasse na casa dele. Ou não: a porta a bater anunciou a chegada de Diana.
“Pensava que já não vinhas”, disse ele. Ela abanou a cabeça, com um sorriso nos lábios: “Nunca”. E explicou o acordo que fizera com o seu marido. Algo que era completamente imoral, mas ainda mais imoral seria fazer três pessoas sofrer. Ela amava o marido, e enquanto ele fosse vivo, não queria separar-se dele, mas enquanto mulher precisava do Rui, que ficou algum tempo a meditar no que ela acabara de propor: na prática, por amor à esposa, o marido de Diana aceitava ser corno. 
“Consegues viver assim?”, perguntou ela, ansiosa, 4 segundos antes do Rui a beijar.

terça-feira, 29 de maio de 2012

Amor em tempo de crise (Inês)



            Inês trabalhava na fábrica de calçado quando conheceu o Manuel. Sentiu algo de diferente desde o momento em que o viu pela primeira vez, o secreto desejo de o tornar no seu mundo, de ser dela. Para isso tinha de lutar com a cobiça das suas próprias colegas, que não podiam ver alguém mais giro, para começarem a invejar. Mas primeiro, Inês tinha de enterrar mágoas antigas. Ainda adolescente, fugira para Espanha com o namorado da altura. Quando voltou, sozinha e esfomeada, nunca mais seria a mesma, e o mesmo podia dizer da confiança dos pais. Tinha sido uma aventura estúpida, com remorsos que levariam anos a curar. E agora aparecera alguém que a podia fazer esquecer tudo. Investiu o pouco que tinha no cabeleireiro e na secção de roupa do hipermercado, insinuou-se discretamente, como tinha visto os predadores caçarem as suas presas nos documentários na televisão, muito diferente do espalhafato que as suas colegas faziam perante ele. Tal como o predador reconhece os outros predadores, ela reconhecia as colegas que estavam à caça do Manuel, especialmente pelo perfume barato e roupas decotadas. Mas Inês sabia que ele não gostava de mulheres excessivamente provocantes. Com o tempo, os olhares dele denunciavam o seu interesse – daí ao primeiro beijo passaram-se alguns dias, e no fim desse mesmo mês, o Manuel revelava-lhe os seus talentos como amante. A presa caíra, mas festejavam juntos, em união de vidas e de corpos.
Pelo fim do ano já viviam no mesmo apartamento. O Pedro seria a nova aquisição da equipa, ela grávida e feliz, ele expectante, muito mais nervoso do que ela.

Depois do nascimento do Pedro, houve um descuido chamado Simão. Se o Pedro tinha um ar de safado encantador, o mesmo ar do pai, já o Simão era mais calmo e pensativo. Foram anos de muita luta. Entre o trabalho dos dois na fábrica, o tratar dos filhos e da casa, sobrava pouco para Manuel e Inês, mas o pouco que sobrava era bem aproveitado e valia a pena o tempo roubado ao descanso. O corpo agradecia na mesma, e talvez em dobro. Inês sentia-se feliz, não imaginando a tempestade que estava para vir. Os sinais eram evidentes: subsídios por pagar, depois vencimentos em falta. Por todo o lado ouviam as mesmas notícias, era óbvio que a empresa estava a atravessar um mau momento. Em Agosto, depois das férias, os funcionários encontraram as portas fechadas. Conheceram assim o real significado das palavras “Insolvência” e “Assembleia de Credores”. De funcionários tinham-se tornado credores da firma. Para Manuel e Inês, parecia que o paraíso acabara. O subsídio de desemprego sabia a pouco e não dava para comer. Manuel só arranjava alguns biscates, insuficientes para garantir a comida na mesa. Com tempo, tudo se agudizou. A renda ficara por pagar, o subsídio de desemprego era usado para pagar a luz, a água e o gás.
Manuel encontrou então uma oportunidade de trabalho no Porto. Saía de manhã cedo, apanhava o primeiro comboio, e voltava ao fim do dia. O primeiro vencimento foi festejado com um jantar no McDonalds, para regozijo dos miúdos.
A partir do primeiro mês, Inês notou uma diferença no comportamento do Manuel. Uma tristeza estranha, uma melancolia sem sentido. Aparecia com dinheiro fora do fim do mês. Por vezes trazia os bolsos cheios de comida, algo que Inês estranhava. Até que Matilde tocou à campainha da porta. O Pedro foi abrir a porta. Inês notou o súbito nervosismo do Manuel e antecipou-se a ele. Deu de caras com uma senhora alta e bem parecida. Era bastante elegante, mas não se podia dizer que fosse especialmente bonita. Apresentou-se como amiga do Manuel. “Amiga, uma ova!”, pensou a Inês, a ferver por dentro. Por momentos, voltou a sentir-se a predadora dos tempos em que lutava pela atenção do Manuel. Convidou-a para lanchar. Estava a divertir-se com a mais-do-que-evidente atrapalhação do seu macho. Como se ela não soubesse já que ele tinha outra. Mais: desconfiava que era ela que lhes pagava as contas lá em casa. Mas ele voltava sempre para Inês, e ele sabia que ele a amava, pelo que fechava os olhos. Confiava cegamente nele, mas pelo sim, pelo não, mantinha os olhos abertos. Era uma confiança cega, de olhos abertos.
Matilde era uma pessoa simples, mas tinha dinheiro. Tinha sido abandonada pelo marido, que saíra do país há anos. Inês sentiu estranhamente que podia confiar nela. Um sentimento de cumplicidade que não podia explicar. Sabia que Matilde nunca lhe tiraria Manuel. Sentia-se sozinha, solitária. Sentiu-lhe a tristeza e o abandono; fez o que nenhuma das amigas da Inês alguma vez faria: fechou os olhos. Mesmo quando o Manuel lhe anunciou que iria trabalhar para Lisboa e que só viria aos fins-de-semana, Inês percebeu, e confiou.

E fingiu viver feliz para sempre.  

Amor em tempo de crise


Não restava qualquer dúvida, ao Manuel, de que amava Inês. Como não havia dinheiro para casarem, alugaram um apartamento pequeno nos arredores; tiveram dois filhos e eram felizes até que ficaram, os dois, desempregados. Depois disso continuaram felizes, mas com uma sombra de incerteza muito grande em cima da cabeça deles. Com várias rendas em atraso, contas por pagar e sem dinheiro para pôr comida na mesa, Manuel sentiu que tinha de sair; foi procurar trabalho numa cidade próxima. Encontrou Matilde, uma mulher divorciada a quem ocultou o facto de ter uma família. Quando podia, regressava em segredo para junto de Inês, trazia dinheiro e comida da despensa de Matilde, até ao dia em que tocaram à porta da sua casa, que partilhava com Inês e os dois filhos - foi um deles que foi abrir, contrariando a vontade do pai, mas ele era assim. “Quem é, Pedro?”, perguntou Manuel, chegando junto à porta onde deu de caras com Matilde. Ela olhou para ele, com um sorriso matreiro. Inês chegou ainda antes dele poder falar com ela.
         “Quem é?”, perguntou Inês, a limpar as mãos ao avental. Manuel responde que é uma amiga. Não consegue disfarçar o nervosismo na voz. Matilde ajuda-o: “Conhece-mo-nos no comboio. Ele esqueceu-se disto... (trazia na mão um casaco de malha que Inês não via há muito tempo)". Inês comentou que já tinha dado pela falta do casaco. Manuel estava a um ponto de ter um ataque, enquanto que Inês convida Matilde para lanchar. Para desespero do Manuel, esta aceita; entra na casa deles, observando com interesse todos os detalhes. A casa do Manuel e da Inês era tão diferente da casa dela, como da água para o vinho. Os filhos não abrandavam a algazarra, estavam excitados por terem uma visita, ainda por cima uma senhora tão bem vestida e vistosa como Matilde. Sentaram-se à mesa da sala. Inês trouxe chá, tostas e umas latas pequenas.
“O Manuel diz que isto é bom”, diz ela, abrindo as latas e colocando-as na mesa.
“É caviar”, explicou Matilde, “eu também gasto desta marca.”
Manuel não sabia onde se meter. Não abriu a boca o tempo todo. Inês discutia pormenores sobre os filhos. Matilde estava genuinamente interessada em saber. Pareciam dar-se bem.
A campainha tocou. Um dos filhos deles foi abrir. Anunciou uma visita, e Inês foi até à porta. Manuel ouviu-a a falar e percebeu que ia demorar.
“O que é que estás aqui a fazer?”, perguntou, quando percebeu que Inês estava longe e os miúdos entretidos a ver televisão.
Matilde serviu-se do caviar, do caviar que era DELA.  
“Eu não convivo bem com a falsidade. Queria saber quem tu eras. Agora já sei: és um pulha.”
Manuel não podia refutar o óbvio.
“Vais dizer-lhe?”, perguntou ele, o coração aos saltos.
“Tem calma. Eu sei o que custa um lar desfeito. Creio que podemos chegar a um acordo. Se me responderes a uma pergunta”
“Diz”, disse ele, enquanto ouvia a Inês a dar uma gargalhada histérica.
“Tu sentes-te atraído por mim? Já sei que amas a Inês. Mas é importante, para mim, saber isto. Eu não vou contar nada, qualquer que seja a tua resposta.”
Manuel disse que sim. Não a amava, mas sentia uma atracção forte por ela.
“Muito bem. Eu consigo viver sozinha, mas não absolutamente sozinha. E gosto muito de ti, muito mais do que qualquer outro namorado que tive, desde que o palhaço do meu marido me abandonou. O acordo é este.”
Matilde explicou o acordo, em voz baixa, pressentindo o regresso de Inês. Manuel ficou de pensar.

No fim do lanche, Manuel ficou aliviado ao ver as curvas sedutoras da Matilde a sair de casa. Inês esperou que ela desaparecesse na rua, e olhou furiosa para ele. Nada que ele já não esperasse.
“Eu não sei o que se passou aqui, mas esta serigaita não é tua amiga, coisíssima nenhuma. Ai de ti se trazes alguma amante cá para casa outra vez. Não me importa o que faças com ela: esta é, e será sempre, a nossa casa. Eu sou, e serei sempre, a tua mulher.”
Novamente, Manuel não conseguiu refutar o óbvio. Nunca mais Inês ouviu falar em Matilde, que se mudou para Lisboa e arranjou por lá um trabalho para o Manuel. O trabalho de sonho, que ele sempre ambicionara. Inês, no entanto, não queria saber em ir viver para Lisboa.  Ao dia de semana, Manuel vivia secretamente em Lisboa com a Matilde, e vinha ao fim de semana para casa.

E viveram, os três, estranhamente felizes para sempre.