Inês trabalhava na fábrica de
calçado quando conheceu o Manuel. Sentiu algo de diferente desde o momento em
que o viu pela primeira vez, o secreto desejo de o tornar no seu mundo, de ser
dela. Para isso tinha de lutar com a cobiça das suas próprias colegas, que não
podiam ver alguém mais giro, para começarem a invejar. Mas primeiro, Inês tinha
de enterrar mágoas antigas. Ainda adolescente, fugira para Espanha com o
namorado da altura. Quando voltou, sozinha e esfomeada, nunca mais seria a
mesma, e o mesmo podia dizer da confiança dos pais. Tinha sido uma aventura estúpida,
com remorsos que levariam anos a curar. E agora aparecera alguém que a podia
fazer esquecer tudo. Investiu o pouco que tinha no cabeleireiro e na secção de
roupa do hipermercado, insinuou-se discretamente, como tinha visto os predadores
caçarem as suas presas nos documentários na televisão, muito diferente do
espalhafato que as suas colegas faziam perante ele. Tal como o predador
reconhece os outros predadores, ela reconhecia as colegas que estavam à caça do
Manuel, especialmente pelo perfume barato e roupas decotadas. Mas Inês sabia
que ele não gostava de mulheres excessivamente provocantes. Com o tempo, os
olhares dele denunciavam o seu interesse – daí ao primeiro beijo passaram-se
alguns dias, e no fim desse mesmo mês, o Manuel revelava-lhe os seus talentos
como amante. A presa caíra, mas festejavam juntos, em união de vidas e de
corpos.
Pelo fim do ano já viviam no mesmo apartamento. O
Pedro seria a nova aquisição da equipa, ela grávida e feliz, ele expectante,
muito mais nervoso do que ela.
Depois do nascimento do Pedro, houve um descuido
chamado Simão. Se o Pedro tinha um ar de safado encantador, o mesmo ar do pai,
já o Simão era mais calmo e pensativo. Foram anos de muita luta. Entre o
trabalho dos dois na fábrica, o tratar dos filhos e da casa, sobrava pouco para
Manuel e Inês, mas o pouco que sobrava era bem aproveitado e valia a pena o
tempo roubado ao descanso. O corpo agradecia na mesma, e talvez em dobro. Inês sentia-se
feliz, não imaginando a tempestade que estava para vir. Os sinais eram
evidentes: subsídios por pagar, depois vencimentos em falta. Por todo o lado
ouviam as mesmas notícias, era óbvio que a empresa estava a atravessar um mau
momento. Em Agosto, depois das férias, os funcionários encontraram as portas
fechadas. Conheceram assim o real significado das palavras “Insolvência” e “Assembleia
de Credores”. De funcionários tinham-se tornado credores da firma. Para Manuel
e Inês, parecia que o paraíso acabara. O subsídio de desemprego sabia a pouco e
não dava para comer. Manuel só arranjava alguns biscates, insuficientes para
garantir a comida na mesa. Com tempo, tudo se agudizou. A renda ficara por
pagar, o subsídio de desemprego era usado para pagar a luz, a água e o gás.
Manuel encontrou então uma oportunidade de
trabalho no Porto. Saía de manhã cedo, apanhava o primeiro comboio, e voltava
ao fim do dia. O primeiro vencimento foi festejado com um jantar no McDonalds,
para regozijo dos miúdos.
A partir do primeiro mês, Inês notou uma diferença
no comportamento do Manuel. Uma tristeza estranha, uma melancolia sem sentido.
Aparecia com dinheiro fora do fim do mês. Por vezes trazia os bolsos cheios de
comida, algo que Inês estranhava. Até que Matilde tocou à campainha da porta. O
Pedro foi abrir a porta. Inês notou o súbito nervosismo do Manuel e
antecipou-se a ele. Deu de caras com uma senhora alta e bem parecida. Era
bastante elegante, mas não se podia dizer que fosse especialmente bonita. Apresentou-se
como amiga do Manuel. “Amiga, uma ova!”, pensou a Inês, a ferver por dentro.
Por momentos, voltou a sentir-se a predadora dos tempos em que lutava pela
atenção do Manuel. Convidou-a para lanchar. Estava a divertir-se com a mais-do-que-evidente
atrapalhação do seu macho. Como se ela não soubesse já que ele tinha outra. Mais:
desconfiava que era ela que lhes pagava as contas lá em casa. Mas ele voltava
sempre para Inês, e ele sabia que ele a amava, pelo que fechava os olhos. Confiava
cegamente nele, mas pelo sim, pelo não, mantinha os olhos abertos. Era uma
confiança cega, de olhos abertos.
Matilde era uma pessoa simples, mas tinha
dinheiro. Tinha sido abandonada pelo marido, que saíra do país há anos. Inês
sentiu estranhamente que podia confiar nela. Um sentimento de cumplicidade que
não podia explicar. Sabia que Matilde nunca lhe tiraria Manuel. Sentia-se
sozinha, solitária. Sentiu-lhe a tristeza e o abandono; fez o que nenhuma das
amigas da Inês alguma vez faria: fechou os olhos. Mesmo quando o Manuel lhe
anunciou que iria trabalhar para Lisboa e que só viria aos fins-de-semana, Inês
percebeu, e confiou.
E fingiu viver feliz para sempre.