terça-feira, 29 de maio de 2012

Amor em tempo de crise (Inês)



            Inês trabalhava na fábrica de calçado quando conheceu o Manuel. Sentiu algo de diferente desde o momento em que o viu pela primeira vez, o secreto desejo de o tornar no seu mundo, de ser dela. Para isso tinha de lutar com a cobiça das suas próprias colegas, que não podiam ver alguém mais giro, para começarem a invejar. Mas primeiro, Inês tinha de enterrar mágoas antigas. Ainda adolescente, fugira para Espanha com o namorado da altura. Quando voltou, sozinha e esfomeada, nunca mais seria a mesma, e o mesmo podia dizer da confiança dos pais. Tinha sido uma aventura estúpida, com remorsos que levariam anos a curar. E agora aparecera alguém que a podia fazer esquecer tudo. Investiu o pouco que tinha no cabeleireiro e na secção de roupa do hipermercado, insinuou-se discretamente, como tinha visto os predadores caçarem as suas presas nos documentários na televisão, muito diferente do espalhafato que as suas colegas faziam perante ele. Tal como o predador reconhece os outros predadores, ela reconhecia as colegas que estavam à caça do Manuel, especialmente pelo perfume barato e roupas decotadas. Mas Inês sabia que ele não gostava de mulheres excessivamente provocantes. Com o tempo, os olhares dele denunciavam o seu interesse – daí ao primeiro beijo passaram-se alguns dias, e no fim desse mesmo mês, o Manuel revelava-lhe os seus talentos como amante. A presa caíra, mas festejavam juntos, em união de vidas e de corpos.
Pelo fim do ano já viviam no mesmo apartamento. O Pedro seria a nova aquisição da equipa, ela grávida e feliz, ele expectante, muito mais nervoso do que ela.

Depois do nascimento do Pedro, houve um descuido chamado Simão. Se o Pedro tinha um ar de safado encantador, o mesmo ar do pai, já o Simão era mais calmo e pensativo. Foram anos de muita luta. Entre o trabalho dos dois na fábrica, o tratar dos filhos e da casa, sobrava pouco para Manuel e Inês, mas o pouco que sobrava era bem aproveitado e valia a pena o tempo roubado ao descanso. O corpo agradecia na mesma, e talvez em dobro. Inês sentia-se feliz, não imaginando a tempestade que estava para vir. Os sinais eram evidentes: subsídios por pagar, depois vencimentos em falta. Por todo o lado ouviam as mesmas notícias, era óbvio que a empresa estava a atravessar um mau momento. Em Agosto, depois das férias, os funcionários encontraram as portas fechadas. Conheceram assim o real significado das palavras “Insolvência” e “Assembleia de Credores”. De funcionários tinham-se tornado credores da firma. Para Manuel e Inês, parecia que o paraíso acabara. O subsídio de desemprego sabia a pouco e não dava para comer. Manuel só arranjava alguns biscates, insuficientes para garantir a comida na mesa. Com tempo, tudo se agudizou. A renda ficara por pagar, o subsídio de desemprego era usado para pagar a luz, a água e o gás.
Manuel encontrou então uma oportunidade de trabalho no Porto. Saía de manhã cedo, apanhava o primeiro comboio, e voltava ao fim do dia. O primeiro vencimento foi festejado com um jantar no McDonalds, para regozijo dos miúdos.
A partir do primeiro mês, Inês notou uma diferença no comportamento do Manuel. Uma tristeza estranha, uma melancolia sem sentido. Aparecia com dinheiro fora do fim do mês. Por vezes trazia os bolsos cheios de comida, algo que Inês estranhava. Até que Matilde tocou à campainha da porta. O Pedro foi abrir a porta. Inês notou o súbito nervosismo do Manuel e antecipou-se a ele. Deu de caras com uma senhora alta e bem parecida. Era bastante elegante, mas não se podia dizer que fosse especialmente bonita. Apresentou-se como amiga do Manuel. “Amiga, uma ova!”, pensou a Inês, a ferver por dentro. Por momentos, voltou a sentir-se a predadora dos tempos em que lutava pela atenção do Manuel. Convidou-a para lanchar. Estava a divertir-se com a mais-do-que-evidente atrapalhação do seu macho. Como se ela não soubesse já que ele tinha outra. Mais: desconfiava que era ela que lhes pagava as contas lá em casa. Mas ele voltava sempre para Inês, e ele sabia que ele a amava, pelo que fechava os olhos. Confiava cegamente nele, mas pelo sim, pelo não, mantinha os olhos abertos. Era uma confiança cega, de olhos abertos.
Matilde era uma pessoa simples, mas tinha dinheiro. Tinha sido abandonada pelo marido, que saíra do país há anos. Inês sentiu estranhamente que podia confiar nela. Um sentimento de cumplicidade que não podia explicar. Sabia que Matilde nunca lhe tiraria Manuel. Sentia-se sozinha, solitária. Sentiu-lhe a tristeza e o abandono; fez o que nenhuma das amigas da Inês alguma vez faria: fechou os olhos. Mesmo quando o Manuel lhe anunciou que iria trabalhar para Lisboa e que só viria aos fins-de-semana, Inês percebeu, e confiou.

E fingiu viver feliz para sempre.