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Já a estás a ver? – pergunta o Sr. Antunes. Os seus grandes óculos escuros
ficam bem com o seu fato perfeito. Só alguém muito observador perceberia. Ou
alguém que reparasse na bengala por baixo da mesa. Eu esperava que ela não
estivesse ali. Não acreditava.
O
empregado de mesa veio perguntar, novamente, se queríamos alguma coisa. Antunes
disse que não, que iríamos esperar. A mim, pessoalmente, interessava-me fugir
dali para fora, o mais rapidamente possível. Naquele caso, o melhor que poderia
acontecer seria ela não vir. Todas as outras possibilidades teriam, para mim, a
sua quota-parte de vergonha.
No
restaurante estavam poucas pessoas, em virtude da crise. A porta abre-se.
Entra…ela. Ou melhor: elas. De todas as possibilidades que tinha previsto,
aquela era a mais distante, e fez-me esquecer, imediatamente, a vergonha.
Bati
à porta da casa do Sr. Antunes três semanas antes. Era uma vivenda luxuosa, na
Baixa, o que me deixou mais satisfeito. A Segurança Social tinha-me dado o
endereço de um possível emprego, e lá fui eu, postal na mão para ser carimbado
pela entidade empregadora, neste caso para ajudar um senhor invisual. Como
pré-requisito estranho: bons conhecimentos de informática.
Uma
voz perguntou quem era pelo intercomunicador. Eu apresentei-me, e a porta
abriu-se automaticamente. Antunes estava na sala de estar, a ouvir música
clássica em altos berros. Não percebi como podia ter ouvido a campainha, mas
não me preocupei com isso: estava demasiado preocupado com o ar severo dele,
óculos escuros, bengala ao lado do sofá, rosto ossudo com bastantes cicatrizes,
testemunhos de vários acidentes, tanto em casa como na rua. Principalmente na
rua. Foi esse o tom inicial da nossa conversa, depois dele baixar a música.
Depois, zangámo-nos e ele pôs-me fora
de casa.
Tinha duas hipóteses, ou fazia queixa
à segurança social, ou me ia embora. Mentira: a terceira hipótese, ainda mais
estranha, começava a ganhar forma na minha cabeça. Voltei a tocar à campainha,
e voltei-me a apresentar. Esperei, depois, longos segundos até que a mesma se
abriu. Ele estava mais calmo, pediu desculpa, e apresentou o meu trabalho. Ele
cuidava bem das suas tarefas domésticas, e tinha uma senhora que lhe tratava da
roupa, da comida e da casa. Mas este homem tinha um problema, comum a tantos
homens: ele queria encontrar a sua alma gémea, e para isso precisava de mim.
Para procurar nas redes sociais essa mulher.
Respirei fundo, e aceitei o trabalho.
Procurar a alma gémea de alguém é
trabalhoso, porque primeiro temos de conhecer a sua própria alma. Antunes era o
último descendente de uma família relativamente abastada, pelo que seria fácil conhecer
mulheres interessadas em ganhar estatuto e dinheiro. Portanto, nada de dar
pistas. Antunes não seria rico, nem sequer cego, para impedir que o tratassem
como um coitadinho. Ele gostava de provar que não era. À noite, desligava a
luz, e eu tinha de encontrar o meu caminho por entre os móveis, coisa que ele
fazia com muito mais rapidez.
“Como vês”, dizia ele, “ a falta de
visão é um problema muito frequente, mesmo de aqueles que podem ver.”
Eu concordava. Estava com outro
problema. Nas redes sociais era complicado procurar alguém com os requisitos
apertados de Antunes, até que ele próprio concordou em desapertá-los. Surgiu
então a Olga, quando eu já estava a desesperar. Trocaram links de sites de
música clássica, mensagens apaixonadas, poemas e relatos de viagens, onde
Antunes relatava os sons e os cheiros que sentia pelos sítios por onde passava.
Pelas respostas de Olga notava que Antunes mexia com ela - tornaram-se de tal
forma apaixonadas que me senti ali a mais, como a famosa “velinha”.
Combinaram por fim um encontro.
Antunes pediu-me que fosse com ele. Ela indicou que usaria uma flor no vestido,
uma rosa pintada de azul – Antunes adorou a indicação, mesmo que nunca na vida
tivesse visto algo azul.
“E quando ela descobrir?”, perguntei.
“Vai correr tudo bem, vais ver”,
responde ele, com uma visão surpreendente.
Ela entrou. Rosa azul no vestido, como
tinha combinado. Era vistosa e tinha, mais ou menos, a idade de Antunes.
Pareciam feitos um para o outro. Na mão trazia uma bengala, nos olhos óculos escuros.
Uma rapariga mais nova servia-lhe de guia. Sussurrou-lhe ao ouvido qualquer
coisa que Olga gostou, exibindo um sorriso bonito, depois a rapariga fez-me um
olhar de cumplicidade – a noite parecia prometedora.
“Já sabia que era cega?”, perguntei
baixinho, ao ouvido de Antunes, enquanto elas se aproximam (as cabeças dos
outros homens presentes na sala viravam-se para as ver passar). Este responde
apenas, no mesmo tom baixo: “Tinha a certeza disso... quando aprendes a confiar
no coração, começas a ver tudo claramente.”