sábado, 4 de agosto de 2012

Escuridão





            - Já a estás a ver? – pergunta o Sr. Antunes. Os seus grandes óculos escuros ficam bem com o seu fato perfeito. Só alguém muito observador perceberia. Ou alguém que reparasse na bengala por baixo da mesa. Eu esperava que ela não estivesse ali. Não acreditava.
            O empregado de mesa veio perguntar, novamente, se queríamos alguma coisa. Antunes disse que não, que iríamos esperar. A mim, pessoalmente, interessava-me fugir dali para fora, o mais rapidamente possível. Naquele caso, o melhor que poderia acontecer seria ela não vir. Todas as outras possibilidades teriam, para mim, a sua quota-parte de vergonha.
            No restaurante estavam poucas pessoas, em virtude da crise. A porta abre-se. Entra…ela. Ou melhor: elas. De todas as possibilidades que tinha previsto, aquela era a mais distante, e fez-me esquecer, imediatamente, a vergonha.

            Bati à porta da casa do Sr. Antunes três semanas antes. Era uma vivenda luxuosa, na Baixa, o que me deixou mais satisfeito. A Segurança Social tinha-me dado o endereço de um possível emprego, e lá fui eu, postal na mão para ser carimbado pela entidade empregadora, neste caso para ajudar um senhor invisual. Como pré-requisito estranho: bons conhecimentos de informática.
            Uma voz perguntou quem era pelo intercomunicador. Eu apresentei-me, e a porta abriu-se automaticamente. Antunes estava na sala de estar, a ouvir música clássica em altos berros. Não percebi como podia ter ouvido a campainha, mas não me preocupei com isso: estava demasiado preocupado com o ar severo dele, óculos escuros, bengala ao lado do sofá, rosto ossudo com bastantes cicatrizes, testemunhos de vários acidentes, tanto em casa como na rua. Principalmente na rua. Foi esse o tom inicial da nossa conversa, depois dele baixar a música.
Depois, zangámo-nos e ele pôs-me fora de casa.

Tinha duas hipóteses, ou fazia queixa à segurança social, ou me ia embora. Mentira: a terceira hipótese, ainda mais estranha, começava a ganhar forma na minha cabeça. Voltei a tocar à campainha, e voltei-me a apresentar. Esperei, depois, longos segundos até que a mesma se abriu. Ele estava mais calmo, pediu desculpa, e apresentou o meu trabalho. Ele cuidava bem das suas tarefas domésticas, e tinha uma senhora que lhe tratava da roupa, da comida e da casa. Mas este homem tinha um problema, comum a tantos homens: ele queria encontrar a sua alma gémea, e para isso precisava de mim. Para procurar nas redes sociais essa mulher.
Respirei fundo, e aceitei o trabalho.

Procurar a alma gémea de alguém é trabalhoso, porque primeiro temos de conhecer a sua própria alma. Antunes era o último descendente de uma família relativamente  abastada, pelo que seria fácil conhecer mulheres interessadas em ganhar estatuto e dinheiro. Portanto, nada de dar pistas. Antunes não seria rico, nem sequer cego, para impedir que o tratassem como um coitadinho. Ele gostava de provar que não era. À noite, desligava a luz, e eu tinha de encontrar o meu caminho por entre os móveis, coisa que ele fazia com muito mais rapidez.
“Como vês”, dizia ele, “ a falta de visão é um problema muito frequente, mesmo de aqueles que podem ver.”
Eu concordava. Estava com outro problema. Nas redes sociais era complicado procurar alguém com os requisitos apertados de Antunes, até que ele próprio concordou em desapertá-los. Surgiu então a Olga, quando eu já estava a desesperar. Trocaram links de sites de música clássica, mensagens apaixonadas, poemas e relatos de viagens, onde Antunes relatava os sons e os cheiros que sentia pelos sítios por onde passava. Pelas respostas de Olga notava que Antunes mexia com ela - tornaram-se de tal forma apaixonadas que me senti ali a mais, como a famosa “velinha”.
Combinaram por fim um encontro. Antunes pediu-me que fosse com ele. Ela indicou que usaria uma flor no vestido, uma rosa pintada de azul – Antunes adorou a indicação, mesmo que nunca na vida tivesse visto algo azul.
“E quando ela descobrir?”, perguntei.
“Vai correr tudo bem, vais ver”, responde ele, com uma visão surpreendente.

Ela entrou. Rosa azul no vestido, como tinha combinado. Era vistosa e tinha, mais ou menos, a idade de Antunes. Pareciam feitos um para o outro. Na mão trazia uma bengala, nos olhos óculos escuros. Uma rapariga mais nova servia-lhe de guia. Sussurrou-lhe ao ouvido qualquer coisa que Olga gostou, exibindo um sorriso bonito, depois a rapariga fez-me um olhar de cumplicidade – a noite parecia prometedora.
“Já sabia que era cega?”, perguntei baixinho, ao ouvido de Antunes, enquanto elas se aproximam (as cabeças dos outros homens presentes na sala viravam-se para as ver passar). Este responde apenas, no mesmo tom baixo: “Tinha a certeza disso... quando aprendes a confiar no coração, começas a ver tudo claramente.”