Abril de 1910. Fernando Sepúlveda
chega a Paris, usando um nome falso e com a missão secreta de encontrar
Monsieur Henri F., cientista relativamente desconhecido e que há muito se
retirara da vida pública. Fernando demora exactamente 3 dias para o encontrar,
numa pequena povoação nos arredores de Paris, num palacete em ruínas que usa
para as suas experiências. É um homem de baixa estatura, careca, que veste um
casacão negro de aspecto austero. Aqui e ali, Fernando repara que o mesmo
casacão tem buracos, que pareciam ter sido feitos por ratos, mas não era esse
tipo de curiosidade que o levava até ali.
- Bom dia. Chamo-me Fernando
Sepúlveda. – diz Fernando num francês impecável.
Monsieur Henri olhou demoradamente
para ele, desconfiado.
- Vá-se embora. Não costumo
receber ninguém.
O cientista fecha a porta na cara
de Fernando. Este não se move. Bate novamente na porta, usando a bengala de
prata. Pressente Monsieur Henri do outro lado da porta.
- Venho da parte de Gonçalo Paes.
– berra Fernando.
O nome surte o efeito desejado, a
porta abre-se e Fernando entra, fechando a porta por trás de si.
- O meu tempo é precioso, Monsieur
Fernando.
- Não o tomarei mais do que o
necessário. Preciso dos seus serviços.
- Todos precisam, hoje em dia.
Antigamente, as pessoas recorriam aos bruxos para lhes resolver os problemas.
Agora, recorrem aos cientistas. O que pretende, ao certo, Monsieur Fernando?
Fernando tinha feito uma viagem
longa para ali chegar. Depois, tinha sido a angustiante procura. Agora que
chegava ao fim, ele não sabia como fazer o pedido que o tinha trazido até ali.
- Preciso que o senhor me
transporte….
Henry explodiu numa gargalhada
desagradável. Da sua boca libertava um cheiro a morto.
- Eu não sou uma empresa de
transportes. Deve procurar na estação de comboios ou no porto, se preferir um
navio.
Fernando Sepúlveda sorriu.
- Na realidade, Monsieur Henri,
precisava que o senhor me transportasse para aqui mesmo, de forma a poder
apanhar o Sud Express para Lisboa em Janeiro de 1908.
Nova gargalhada de Henry.
- Mas… se não é possível viajar
no tempo, meu caro senhor. Não é possível. Se Gonçalo Paes o levou a crer que era
possível, é a ele que tem de pedir satisfações.
- Ele sabe que o senhor consegue
fazer isso, e ele disse-me que o senhor iria dizer isso, exactamente com as
palavras que acabou de usar. Estou disposto a pagar.
Fernando abre o saco e atira uma
bolsa com moedas para cima da mesa. A bolsa abre-se e as moedas de ouro
espalham-se. Ele pôde ler a lascívia no olhar de Henri.
- Sim, pode pagar. Mas não é só o
dinheiro que importa. Será corajoso o suficiente para experimentar algo que lhe
pode custar a vida, Monsieur Fernando Sepúlveda?
Fernando confirmou. Henry apanhou
o dinheiro e mandou-o esperar numa sala cheia de lixo e de peças de máquinas.
Esperou durante uma hora, impaciente. Reviu mentalmente tudo o que tinha de
fazer, por mais insano que lhe parecesse. Gonçalo Paes tinha-lhe dado
instruções precisas e ele não pensava sequer que conseguiria chegar até ali,
até àquela casa, a falar com semelhante pessoa. Mas era importante voltar
atrás, desfazer os acontecimentos.
Henry voltou acompanhado por uma
mulher, bastante mais alta do que ele. O que nela impressionou mais Fernando,
no entanto, não foi a sua altura, mas a cara coberta de cicatrizes e o olhar
vazio.
- Não se preocupe, Sr. Sepúlveda.
Ela não morde. E sim. Frankenstein existiu, o maior génio que alguma vez viveu
nesta terra. Não era esse o seu nome, e viveu uma vida extremamente longa – o
suficiente para me ter como seu aluno. Eva é minha assistente. Venha. Não
podemos perder o alinhamento da Lua.
Fernando seguiu-os pelos
corredores da mansão, se é que lhe pudesse chamar de isso – dir-se-ia que, a
qualquer momento, tudo ruiria num patético amontoado de pedras e ferro-velho.
Ele esperava estar longe quando isso acontecesse.
Chegaram a uma sala grande. Eva
accionou uma alavanca e o tecto abriu-se, mostrando um alinhamento quase
perfeito com a lua. No centro da sala estava uma tina de vidro com um líquido
azul. À volta, quatro torres que emitiam chispas de electricidade.
- Apresento-lhe a minha Máquina
do Passado. Nela apenas podemos viajar até um ponto do passado mais próximo,
desde que esta máquina esteja funcional nessa altura. Não pode, por exemplo,
recuar até ao nascimento de Cristo e passear-se por lá. Recuar até 1908 é, no
entanto, perfeitamente possível. Posso indagar o seu propósito?
Fernando abanou a cabeça. Estava
a pagar – já era suficiente. Os propósitos eram com ele.
- Percebo. No entanto, devo
alertá-lo para os perigos da alteração de acontecimentos passados. Esses podem
ter resultados catastróficos no futuro.
- Pode estar descansado. Pretendo
apenas prevenir uma catástrofe que se deu no passado. Tudo o que desencadear
será sempre melhor.
Henri encolheu os ombros e
mandou-o despir-se. Fernando fê-lo a contragosto. Não lhe agradava ficar nu à
frente de estranhos, muito menos de duas personagens tão soturnas.
- Um último aviso: não poderá dirigir
a palavra a ninguém nesta casa, caso contrário a sua vida poderá correr sérios
riscos.
Fernando encolheu os ombros, aceitando as
regras. Henri pintou então o corpo de Fernando com uma tinta vermelha, enquanto
Eva guardava, com as suas enormes e horríveis mãos, os pertences de Fernando
num saco de material impermeável. Depois atirou o saco para o meio da tina de
vidro, derramando algum líquido azul para o chão. Fernando já há muito tempo
tinha desistido de protestar. Até mesmo quando o mergulharam no líquido e o
mandaram suster a respiração. A tina começou a rodar, a máquina envolveu-se num
clarão de electricidade no momento exacto em que a Lua estava precisamente por
cima.
Tudo parou de repente. O barulho,
o movimento. Fernando lançou-se para o exterior, quase sem fôlego, ajudado por
mãos hábeis. Quando recuperou o suficiente, Fernando percebeu tratar-se de Eva.
Não a Eva que tinha conhecido, desfigurada, mas uma rapariga extremamente alta
e bonita – a Eva antes de ter acontecido o que quer que tivesse acontecido e
que a tinha transformado num monstro. Fernando percebeu a razão do pedido de
manter silêncio, mas esteve a um ponto de quebrar a promessa e implorar à
rapariga para fugir daquele lugar.
Henri entrou de imediato.
Reconheceu as marcas vermelhas desenhadas no corpo de Fernando que mais não
eram senão uma mensagem para ele próprio. Fernando foi prontamente expulso da
mansão, sem trocarem uma única palavra.
Regressado a Paris, Fernando
compra o jornal. Verifica que não tem muito tempo. D. Carlos I seria
assassinado em Lisboa dentro de poucos dias. Era imperioso impedir esse
acontecimento: ditava-lhe a honra e tinha sido essa a ideia desde que Gonçalo
Paes lhe tinha falado do cientista alucinado que vivia nos arredores de Paris.
Tomou o Sud-Express para Lisboa, que demorava duas noites até chegar à Capital.
Encontrou-a em polvorosa, a um passo da guerra civil. Apressou-se a tomar o
comboio para Vila Viçosa, onde se encontrava o Rei D. Carlos I, admirado pelos
seus congéneres e cognominado de O Diplomata.
Foi a custo que Fernando
conseguiu uma audiência privada com D. Carlos. Declarou-se amante da arte da
caça e isso serviu de pretexto, numa conversa leve, regada com Porto. Só depois
Fernando começou a explicar o que sabia. D. Carlos e D. Filipe seriam
assassinados dois dias depois, a 1 de Fevereiro. D. Carlos sorri com a certeza
de estar a falar com um homem louco.
- Eu não me vou esconder, Senhor
Sepúlveda. Nunca me escondi de nada na vida, não pretendo começar agora. Deus
nosso senhor providenciará a minha protecção, se assim for o Seu desígnio.
Audiência terminada, Fernando
sentia que o seu objectivo estava cumprido. O Rei estava avisado. A história
seria diferente. De qualquer forma, decidiu tomar providências para que não
chegasse ao seu destino. Pagou a dois bandidos para que fizessem o comboio
descarrilar – deveria causar apenas danos materiais, sem causar perigo às suas
vidas. Entretanto, já Fernando regressava a Lisboa com outros planos na cabeça.
1 de Fevereiro de 1908. O Rei
antecipa o seu regresso, depois de ter conhecimento da situação complicada que
se vive na Capital. Regressa de comboio com a Rainha D. Amélia. A meio do
percurso, em Casa Branca, o comboio sofre um descarrilamento que provoca apenas
o atraso de uma hora na sua chegada ao Barreiro. A comitiva toma então o vapor
D.Luís.
Fernando Sepúlveda ouve a
novidade da chegada próxima do Rei. Para si não é novidade – sabe o que se vai
seguir. Aguarda escondido, no Terreiro do Paço, com uma espingarda escondida
por baixo do casaco. Esperava atingir Manuel Buíça, o primeiro atirador, antes
que este conseguisse ter sorte com os dois tiros com que atingiria D. Carlos.
Durante as últimas horas tentara encontrá-lo na cidade. Fernando tinha o rosto
dele gravado na memória.
Ao longe, vê o vapor a chegar.
Não demoraria muito tempo até que a carruagem aberta aparecesse. Fernando vê
que o seu esforço foi em vão: a guarda que ele esperara ter sido reforçada era,
na mesma, insuficiente – resumia-se a quatro batedores protocolares e um
oficial a cavalo. Fernando reconheceu um deles. Era ele próprio, dois anos
antes. O remorso de não ter conseguido impedir o assassinato tinha-o corroído
por dentro. Saíra do exército, percorrera o mundo. Conhecera Gonçalo Paes, que
procurava a pessoa certa para viajar no tempo. A escolha tinha sido Fernando,
que agora reconhecia a sua derrota: restava ele. Observou a movimentação das
pessoas. Alguns curiosos queriam ver a família Real, no meio deles, um grupo de
homens mostrava, nos seus gestos estudados, outro propósito. Fernando viu-o,
por fim. Manuel Buíça. Fernando aponta-lhe a espingarda. Faz pontaria. Os
batedores abrem caminho, indiferentes aos acontecimentos que iriam ter lugar. O
batedor Fernando, no seu uniforme impecável, afasta umas mulheres, mais
entusiastas. A carruagem passa. D. Carlos acena, D. Amélia bem-disposta, como
era seu hábito. Carregava um ramo de flores com o qual, dentro de momentos,
defenderia dos atacantes o corpo do filho e do marido.
Fernando espera. Sabe
perfeitamente o que se vai passar. Buíça coloca-se por trás da carrruagem,
assenta o joelho no chão e faz pontaria com a espingarda. Fernando tem-no
debaixo da sua mira, vai carregar no gatilho, mas não consegue: uma dor atroz
percorre-lhe o corpo, os músculos não respondem, ele cai no chão como se fosse
uma tábua. Ouve tiros e gritos. Fernando reconhece o seu fracasso. Todo o
esforço e preparação tinham sido em vão. Concentra agora a sua atenção no vulto
que tem à sua frente, empunhando uma estranha arma na mão, da qual pendem dois
cabos finos, ligados a dois espigões que ele sente ainda espetados no seu
corpo, a queimar-lhe a pele.
Fernando quer falar, mas não
consegue. Não tem controlo do corpo – não consegue impedir que o desconhecido o
enfie num saco e o leve com ele, protegido pela agitação do momento e o escuro
da noite.
O corpo
de Fernando foi deitado na cama da pensão. Recupera, lentamente, a liberdade de
movimentos, mas ainda não consegue falar. O desconhecido ainda está ali, à sua
frente.
- O
Fernando pergunta-se, neste momento, quem sou e por que fiz o que acabei de
fazer. Pois bem: venho do futuro, tal como o senhor. De um futuro muito mais
distante, no qual as consequências do seu acto provocarão alterações drásticas,
não só em Portugal, como no resto da Europa. Depois de muito procurar, consegui
encontrá-lo e impedi-lo. Nunca mais me voltará a ver, e escusa de tentar voltar
a encontrar Henri. Está morto, bem como a sua assistente. Ah… e a Máquina do Passado
foi destruída, para o bem de todos.
O
desconhecido saiu, mantendo a porta aberta. Quando conseguiu, Fernando
Sepúlveda pôs-se de pé, saiu do quarto num passo apressado e nunca mais ninguém
o viu.
Nota do autor:
Embora este conto seja
ficcional, continua por explicar o descarrilamento do comboio em Casa Branca.