terça-feira, 11 de agosto de 2015

Filho da mãe

Há muito tempo que não escrevo. Demasiado, na minha opinião. Faltava-me um tema e a paz de espírito suficiente para o desenvolver. Ainda não tenho nem tema, nem paz, mas vamos ver como sai. Vai ser uma fábula. Os personagens, animais comuns que podemos ver em qualquer sítio. Não falam. Sempre me pareceram idiotas as histórias nas quais os animais falam só para que nós os percebamos. Nada pode ser estar mais longe da realidade: os animais não precisam falar, nunca precisaram. Entendem-se mesmo sem palavras. Nós somos o contrário: por vezes, nem com palavras lá vamos.

Adiante: era uma vez (  ) uma gata. Grande e balofa. Habituada ao sofá lá de casa, raras vezes se aventurando ao quintal. De vez em quando, mas muito de vez em quando, ela lá ia dar o seu passeio, inspeccionando todos os recantos. Por vezes cruzava-se com um pequeno rato que ela sabia que vivia num buraco do muro. Mas como dava muito trabalho apanhá-lo, deixava-o estar, ainda que ele passasse mesmo por baixo do seu felpudo focinho de gata mimada - o que ela queria era sopas e descanso. Mais descanso do que sopas. Estão a ver?

E eu observava-a da janela, rindo em silêncio da sua pose aristocrática. Eis que um dia apareceu no quintal um pássaro. Um melro, talvez. Dormia na macieira que tinha plantado lá nos fundos e que nunca se tinha atrevido a dar fruto (outra preguiçosa como a minha gata, portanto). O passatempo dele, depois de ter perdido o medo à gata, era implicar com ela, colocando-se no seu caminho, aos saltos, e voando assim que ela mostrava alguma tenção de saltar. Ficavam nisto algum tempo, até um dos dois se cansar.

A brincadeira acabou num sábado de tarde. Eu estava a ver. O melro saltou para o chão, mesmo à frente dela. Depois deu um salto para trás. A gata perseguiu-o num passo lento, de rainha cansada. O melro deu outro salto e foi nesse momento que duas garras afiadas se lhe cravaram no corpo. Um outro gato, sorrateiro, mais pequeno e ágil, tinha estado à espera do pássaro. Depois, pegou no corpo já sem vida do melro e, numa atitude de respeito de filho para a mãe - que o era - , foi depositá-lo à frente da minha gata, que se banqueteou com ele.

Moral da história: não brinques com o destino, que há muito filho da mãe que quer aproveitar-se disso...

quarta-feira, 27 de maio de 2015

Implante

        Este não é um conto, é um micro-conto. Uma ideia espalhada por meia dúzia de parágrafos. A história começará daqui a, exactamente, oitenta anos, dois meses e vinte e sete dias. Nessa época, a grande moda será a extensão cerebral. Para poderem competir num mundo cada vez mais agitado, inserem cirurgicamente implantes que aumentam a capacidade cerebral. Acontece por volta dos dezoito anos. O jovem é levado pelos pais orgulhosos a uma clínica onde escolhem, através de um catálogo informatizado, a profissão do filho. Tudo o que o jovem precisa saber já vem no implante. Eles só precisam escolher, e pagar em conformidade. Isso garante a diversidade de profissões. 
        No dia em que Abnel fez dezoito anos, os pais ofereceram-lhe um voucher para a clínica. Tinha fundos suficientes para se tornar médico. Mas havia um pequeno problema: o Abnel não queria ser médico. Queria ser artista. Queria transformar o mundo, que se tinha tornado um lugar demasiadamente cinzento e cerebral. Quando chegou à altura, Abnel agarrou, secretamente, num maço de notas que tinha poupado dos seus últimos aniversários (dinheiro suficiente para comprar um bom carro) e foi com os pais à clínica. Lá escolheram o implante para o filho. Ele seria médico, tal como o seu pai. A mãe, chorosa, beijou o filho na face e Abnel lá foi com o médico. Quando estava longe da vista dos pais, Abnel subornou o médico. A operação tinha corrido mal. Seria esta a versão contada aos pais de Abnel. Este não podia receber um implante. 
        “Um idiota? O meu filho vai ser um idiota?”, perguntou o pai de Abnel, perfeitamente incrédulo com o que se estava a passar. A esposa, entretanto, tinha desmaiado. 
        O médico assegurou que Abnel teria uma vida perfeitamente normal. Antigamente, disse ele, ninguém tinha implantes e sobreviviam. Mas o pai de Abnel não queria saber disso. O filho nunca seria ninguém na vida. 
        Mas enganava-se. O filho tornou-se o artista mais conceituado naquele tempo e levou a que os implantes fossem, progressivamente, caindo em desuso.  

O Frio

        O frio entranha-se. Corrói. João olha em volta. Está sozinho, em baixo da ponte. A sua casa. Há quanto tempo é a sua casa? Desde sempre. Não. Desde sempre, não. Há demasiado tempo. Ou há tempo suficiente para lhe chamar casa. Branco. O solo está coberto por um manto branco, iluminado pelo candeeiro de rua, a única companhia que João tinha. Nunca vira tanta neve nem tanto frio. Antes ainda tinha cobertores, roubados por alguém que precisava tanto ou mais do que ele. Agora tinha apenas as folhas de papel de jornal para se cobrir e uma caixa de fósforos. Pegou numa folha. À luz do candeeiro, leu a página. Era sobre política, uma inauguração qualquer. O João lembrou-se do tempo de escola e da professora que tivera na altura. Ela queria que ele aprendesse, mas o João só se interessava pelo que estava fora da sala de aulas, pela bola e pela brincadeira. Acende um fósforo e pega fogo à página. Aquece-se no fogo durante algum tempo. Parece ver a antiga professora. Ele sorri. Na altura, não gostara dela. Agora, à distância, via que ela só o queria ajudar. Fica algum tempo a olhar para as cinzas. Pega noutra folha de jornal. Vê a fotografia de uma família com crianças. Imaginou-se a si próprio em criança. A excitação do Natal, a abertura dos presentes. O sorriso dos pais. As lembranças tornam-se amargas quando deixamos de querer sonhar, pensou o João.
        (Outro pensamento do João: aquela era a noite da consoada. As pessoas estavam nas suas casas. Partilhavam sorrisos e presentes. Ele partilhava aquele espaço com um candeeiro e algumas folhas de jornal.)
        Parece ver-se a si próprio e aos pais na chama efémera da folha de papel. Tantos sonhos que tinha na cabeça na altura. Bastou um desvio. Más companhias. A história tantas vezes repetida. O vício toma conta dos sonhos. A vida desaparece como areia entre os dedos. Praia, calor. Sonhos quentes numa tarde de verão. Um Cornetto de Morango comido na sombra da esplanada. Amigos. Tinha tantos amigos na altura. Desapareceram, tal como a areia. E, quando não havia mais ninguém interessado em lançar-lhe a mão, também o João desapareceu. Tornou-se areia. Invisível para a sociedade.
        O João pegou, então, na última folha. O frio começava a tomar conta dele. Quase não sentia as mãos. Tremia tanto que a certa altura lhe pareceu que tremer era a coisa mais natural do mundo. Obituário. Olhou para a fotografia de um senhor de idade que lhe recordou o seu avô. Costumava ir caçar com ele. Mentira: o avô não caçava, mas usava essa desculpa para passear pelos campos com o neto. Ele tinha confiança no João. Talvez a única pessoa que sempre confiara nele. Onde estás, avô? Ensina-me outra vez a diferença entre os cogumelos. Deixa-me cheirar a terra molhada nos dias quentes de Julho. Avô?
        O João sentiu sono. Mais sono do que sentira alguma vez na vida. Já não tinha jornais: encostou-se contra o betão da ponte, de forma a abrigar-se do vento gélido que, de repente, levantara. Sonhou que estava com o avô. Era novamente criança e percorria uma longa estrada ao sabor da voz dele.

        No dia seguinte, o corpo enregelado do João foi encontrado já sem vida e com um sorriso nos lábios.

segunda-feira, 18 de maio de 2015

Os homens medem-se às palmas

Dizem que os homens não se medem aos palmos – mas se o fizessem, Peter não mediria muitos palmos. Filho desejado de uma família de ascendência alemã e irlandesa a residir nos Estados Unidos, cedo os pais descobririam que o filho sofria de um problema que lhe afectava o crescimento normal dos membros. O seu nome técnico é Acrodonplasia. Na prática, isso significava que Peter seria anão, com todos os problemas que acarreta a vida de um anão numa sociedade que tudo formata, desde o tamanho da fruta às convicções pessoais e, claro está, ao aspecto físico. 

Peter viveu a sua vida afectado por este problema, encerrando-se no seu próprio mundo. Tornou-se actor, algo bastante comum para quem se encerra no seu próprio mundo, como se os palcos e as câmaras fossem os instrumentos para exorcizar a claustrofobia. No seu primeiro trabalho no cinema, retrata-se a si próprio: um anão farto de seguir os arquétipos dos trabalhos habituais de anões. 
Um metro e trinta e cinco centímetros de gente, uma voz estranhamente potente. Um actor dotado. No final, só isto interessa: o talento. Não interessa a altura, a cor da pele ou as convicções pessoais. Ou temos talento, ou não temos. Não há nada de mágico nisso. Ou talvez haja. É essa a nossa verdadeira magia interior: sobressairmos quando menos se espera. 

E Peter sobressai. Ele é Tyrion Lannister em Game of Thrones. O filho de uma das famílias mais poderosas, um papel que lhe assenta especialmente bem, dado que ele próprio é descendente de uma família da aristocracia germânica. Como Tyrion, ganha o papel de melhor actor. Os homens não se medem aos palmos - medem-se às palmas que recebem.

segunda-feira, 11 de maio de 2015

Cho-co-la-te


“Chocolate”, pensou o João. Ele não tinha mais de dez anos e, àquela hora, deveria estar na escola. A verdade era que ele não gostava da escola, mas preferia estar lá do que naquele quarto a cheirar a bolor. 
“Chocolate”, pensou, novamente. Tinha acordado irritado, depois de sonhar que estava com os pais. Tinha saudades deles. Tinha saudades de tudo. A Maria mexeu-se. Dormia por baixo dos poucos cobertores que tinham e que cheiravam mal. O João tinha voltado a urinar todas as noites, desta vez, por um motivo válido: já não sabia há quanto tempo estava encerrado naquele quarto. 
E tudo por causa da porcaria do chocolate. O João tinha prometido a si próprio que, se escapasse daquela situação, nunca mais na vida comeria chocolate. 
Cho-co-la-te.
Lembrava-se de quando andava na escola a aprender a ler. Aquela tinha sido uma das palavras que lhe tinha dado mais prazer aprender. Ele era viciado. Preto, castanho, branco, com ou sem avelãs. Marchava tudo. A sua irmã era mais comedida. Dois anos mais nova, berrara constantemente nos primeiros dias, agora apenas soluçava, à medida que chegara à conclusão de que os nossos pais não os iam conseguir encontrar. 
Cho-co-te-la.
A loja ficava nos subúrbios da cidade, numa zona onde os pais nunca os deixariam ir sozinhos. Mas o João tinha de ir. Por azar, a Maria estava com ele. Ele lembrava-se de tudo, de entrar na estranha loja e de ficar maravilhado pela quantidade enorme de chocolates de todas as formas e feitios. Deitou a mão ao bolso e tirou todo o dinheiro que tinha trazido. A senhora, de aspecto louco e uma grande verruga no nariz, logo lhes apresentou uma amostra de um chocolate especial. 
“O melhor da casa”, dissera a senhora, dando-lhes dois grandes quadrados de chocolate. O João comeu. Nunca tinha comido nada tão bom. Mas foi sentindo cada vez mais sonolência. Quando olhou para o lado e viu a irmã no chão, já adormecida, o João deu-se conta de ter sido drogado. Depois, tudo se apagou, para acordar naquele quarto imundo. Eles berraram e bateram à porta. A senhora lá veio e disse-lhe que era o castigo por terem ido até ali, sozinhos. Se fizessem barulho, não teriam comida nem água. 
“Depressa vos soltarei, meus queridos.”, disse a senhora, com um estranho e desagradável ar angelical. 
As horas logo se transformaram em dias. Lá fora, o João ouvia o barulho da cidade, os carros, as ambulâncias, os tiros, as pessoas a gritar. 
Lá fora. 
Quando se está tanto tempo preso, e em especial quando se tem 10 anos, começamos a delirar. O João sentia que estava lá fora, a correr e a brincar com os amigos. Tinha saudades deles. Muitas. 
A Maria acordou. Olhou em volta. O João percebeu que ela tinha tido mais um sonho. Pouco falava, agora, e nunca sorria. Era o João que cuidava dela, que lhe repetia as frases aconchegantes que costumava ouvir à mãe (que saudades tinha dela). 
Porque tinha compreendido que era a única forma de conseguir fugir daquele sítio, ele fez-se amigo da senhora. A Maria não compreendeu a atitude, zangou-se com ele. Depois, pela primeira vez em dias, o João saiu do quarto. A senhora obrigou-o a trabalhar. A casa, antiga, tinha muito para limpar. Ele trabalhou arduamente. A senhora mantinha a irmã no quarto, pelo que ele nem sequer tentava fugir. Ao fim da tarde, com o corpo todo dorido, voltava para o quarto. A Maria voltava-lhe, então, as costas. No entendimento dela, o João já esquecera que tinha uma casa com um pai e uma mãe que não descansariam enquanto não os encontrassem. 
Na realidade, em momento algum o João se esquecia da casa e dos pais. Eram essas lembranças que o faziam esforçar-se ao máximo para conseguir ganhar a confiança da senhora. Com o tempo, desenvolvera um plano. Era perigoso, extremamente perigoso mesmo, mas devia funcionar. O João conhecia agora os cantos à casa, pelo menos os cantos que não estavam fechados à chave. A senhora carregava com ela um cadeado com as chaves todas. A casa era velha, de boa construção. A senhora estava sempre constipada. Sim, devia funcionar, pensou ele. Pelo menos nas séries que costumava ver, funcionava. Mas aquela era a realidade. Uma realidade cruel à qual queria, desesperadamente, escapar. 
Naquela noite fez as pazes com a irmã. Disse-lhe apenas que se escondesse no canto mais afastado da cozinha, e se cobrisse com as mantas e os cobertores. Ela, mesmo sem nada compreender, assim fez. 
No dia seguinte, a senhora veio chamá-lo, sem suspeitar do plano que o rapaz arquitectara. Ele tinha de limpar a cozinha, o que era exactamente o que ele queria. Assim que ela saiu, por momentos, ele ligou os bicos do gás do fogão. Depois, pegou num novelo de lã e mergulhou-o no petróleo de um candeeiro antigo que a senhora tinha na cozinha. Tal como pensara, a senhora não se apercebera do cheiro do gás. O João saiu, então, da cozinha. Estava nervoso. As mãos tremiam-lhe. Pegou no novelo ensopado em gasolina, fez uma funda com um pedaço de tecido que tinha escondido por trás de um móvel. Tirou um isqueiro que tinha encontrado e que tinha, também, escondido por trás desse mesmo móvel. Ateou fogo ao novelo e, com a funda, atirou-o para a cozinha, escondendo-se por trás da parede. Aninhado contra a parede, fechou os olhos e tapou com as mãos os ouvidos.
A explosão fez abanar tudo. O João nunca tinha sentido tanto medo na sua vida. Quando o fumo se dissipou, ele correu para a cozinha. Estava tudo negro e fumegante. Um corpo inerte jazia no chão. Fechando os olhos, o João procurou o bolso do avental daquela que tinha sido a sua captora durante aquelas semanas. Não sentiu a mínima pena, apenas uma alegria imensa quando, finalmente, conseguiu as chaves. Voltou num instante à porta do quarto onde tinha estado preso. Procurou rapidamente a chave certa. Lá fora, tentavam arrombar a porta. O João ouvia vozes aflitas. Mas a Maria ainda estava mais aflita. Ela correu para ele, a chorar, o corpo tremendo de medo. 
- Vai ficar tudo bem. – disse ele, por fim, com a confiança renovada. Mesmo assim, não queria ficar mais tempo naquela casa, pelo que se escapuliu pela porta dos fundos com a irmã, e com a firme decisão de nunca mais na vida tocar em chocolate.

domingo, 10 de maio de 2015

A gótica e a ervilha

D. Matilde Vaz Sarmento era uma viúva riquíssima, cuja família descende da alta nobreza portuguesa. Tem como única riqueza, além de diversas propriedades e participações em empresas, o seu filho Carlos Vaz Sarmento. Este está prestes a fazer 30 anos. Nunca nenhuma das suas namoradas teve a aprovação da sua mãe. Foi, por isso mesmo, com bastante apreensão que ele decidiu apresentar Marta a D. Matilde. Tinha-a conhecido na faculdade. Depois de desistir do curso de Direito, Carlos decidira-se, finalmente, pelo curso de História da Arte. Foi então que conheceu Marta, uma artista plástica já relativamente conhecida no nosso país e no estrangeiro. 
- Tens certeza? – perguntou Marta. 
Se tinha a certeza? Carlos só tinha certeza de duas coisas: tinha certeza da força do amor que sentia por Marta e de que ela era exactamente o oposto da pessoa que a mãe esperava para noiva do filho. Marta tinha o corpo cheio de tatuagens, o cabelo negro com nuances em três cores, um conjunto de piercings nas orelhas e por cima das sobrancelhas. Vestia-se sempre de negro e usava uma maquilhagem carregada, numa onda gótica.
- Tenho, Marta. Ela não é assim tão má, e vai ser apenas um fim-de-semana. Depois, temos toda a vida à nossa frente. 
- Ela vai ter um ataque quando me ver. Tens a noção disso, não tens, amor?
O Carlos tinha a noção disso. Já tinha preparado o caminho. Dissera à mãe que ela era ligeiramente diferente das raparigas que a D. Matilde considerava ser as “raparigas da condição dela”, e que o Carlos achava sumamente entediantes, de uma superficialidade atroz. Torcia para que, desta vez, a mãe aceitasse. 
- Não te preocupes. Lembra-te do que falámos. 
- Sei. Eu tenho boa memória, tu sabes disso. Só não gosto do facto de ter de dormir sozinha. A sério, amor? Eu já não me lembro da última vez que dormi sem ti. Tu sabes disso. Tenho medo… 
O Carlos abraçou-a. 
- Tens medo de quê?
- Tenho medo de ti e da tua reacção.
- Não tens confiança em mim, amor? 
A Marta não respondeu. Não precisava. 

A D.Matilde veio receber o filho nas escadas da mansão. Carlos saiu do carro, depois deu a volta para abrir a porta a Marta, Carlos atento à reacção da mãe, que foi, exactamente, a que previam. A D. Matilde não gostara do que vira, mesmo que Marta tivesse vestido uma roupa que lhe escondia as tatuagens e tivesse tirado a maior parte dos piercings. A senhora sorria, mas não era um sorriso autêntico. Carlos sabia disso e a Marta tinha grandes dúvidas. 
Cumprimentaram-se. D. Matilde fez as honras da casa. Carlos levou as malas aos respectivos quartos. Marta ficaria no quarto dos hóspedes, enquanto Carlos ficaria no seu quarto habitual, que era do tamanho do apartamento que dividia com Marta. Correcção: era maior. Depois, foi ter com elas, que conversavam no jardim, junto à piscina. Pelo teor da conversa, Carlos depreendeu que a mãe ficara impressionada com a cultura de Marta, que, por sua vez, ficara impressionada com as pinturas que D. Matilde tinha espalhadas pela casa.
Na primeira oportunidade que tiveram para ficar a sós, a D. Matilde virou-se para o filho. 
- Carlos, tenho de ser directa neste assunto: sabes a vergonha que me estás a fazer passar? Esta rapariga não tem … 
O Carlos interrompeu-a. 
- Mãe, nós sabemos que não ia ser fácil aceitá-la, mas, sabe uma coisa? Não é a mãe que a tem de aceitar: sou eu. E já aceitei a Marta na minha vida há muito tempo. É uma pessoa com uma educação de luxo, de boas famílias. A aparência não é tudo e, hoje em dia, já ninguém liga a isso.  
- Mas, Carlos… 
- E é a mulher que eu amo. Deveria ser a única coisa a importar. 
Marta regressou nesse momento. Notou imediatamente a tensão, sabia que a sua presença era a causa e o olhar suplicante de Carlos a única razão que a fazia não lhe pedir para regressar a Lisboa – só por ele aguentou os nervos do resto do dia. À noite, quando se despediu de Carlos, pediu-lhe que ele fosse dormir com ela, mas ele sossegou-a. Depois, Carlos voltou para o seu próprio quarto, deixando-a sozinha no quarto de hóspedes da, subitamente inóspita, mansão dos Vaz Sarmento. 
O telemóvel deu sinal. Marta leu a mensagem e sorriu. Respondeu à mensagem do Carlos e dormiu com o telemóvel no travesseiro que, no seu entendimento, deveria ser de Carlos. 
(Mentira: não conseguiu adormecer. Levantou-se e tirou os lençóis da cama. O que descobriu por baixo deles deixou-a atónita e não a deixou pegar no sono.)

- Bom dia, amor. – cumprimentou Carlos, quando viu aparecer Marta na sala. Ele notou que havia alguma coisa de errado. Ela estava demasiadamente tensa. 
A mãe de Carlos apareceu logo de seguida. A criada estava a preparar a mesa para o pequeno-almoço. Marta olhava fixamente para algo pequeno que tinha entre os dedos. Carlos percebeu, imediatamente, que se passava alguma coisa. 
- Dormiu bem, Marta? – perguntou a D.Matilde.
Marta preferia ter falado com Carlos a sós, mas pensava que as coisas tinham de ser ditas frontalmente, doesse a quem doesse. 
- Não, não dormi, D.Matilde. Encontrei isto por baixo do lençol. – a Marta mostrou uma ervilha – E eu conheço o conto. “A princesa e a ervilha”, creio que é assim que se chama. A mãe do príncipe que testa a possível pretendente ao filho, colocando-lhe uma ervilha na cama. Eu sei disso. Posso ter um aspecto que a senhora não queria para o seu filho, mas é ele que tem de escolher. Eu sou assim, não vou mudar só porque tenho de agradar a A ou B. O Carlos é a única pessoa que quero agradar. E creio que a senhora não conhece o seu filho. Ele não tem nada a ver com este ambiente, este fausto que só serve para prender as pessoas numa ilusão. O mundo é muito mais vasto do que estas quatro paredes com um jardim e piscina. Eu, quando vim para aqui, sabia o que ia encontrar. Sabia que a D. Matilde procurava alguém que parecesse bem nas fotografias das páginas de qualquer revista. Garanto-lhe, no entanto, que nem eu nem o Carlos nos importamos com isso. Mas ser testada desta forma tão infantil, foi coisa que nunca esperei. Carlos, se não te importas, leva-me para Lisboa, ou chama, por favor, um táxi. 
D. Matilde ficou sem palavras enquanto via Marta sair da sala de estar. 
- Uma mulher com personalidade. – disse D. Matilde. 
- Sim, mãe. E agora, se me permite, vou falar com ela. – disse Carlos, levantando-se. 
- Só uma palavra, Carlos.
- Sim?
- Tens certeza de que gostas dela? 
- Sim, mãe. Já é uma certeza há muito tempo. 
- Então, vai lá atrás dela. Não lhe estragues o fim-de-semana. E outra coisa, querido… - o Carlos já ia a sair da sala, mas a mãe interrompeu-o. 
- Sim, mãe? 
- Para a próxima vez que puseres uma ervilha nos lençóis de alguém, por favor diz-me primeiro, para estar preparada. 
O Carlos sorriu. O seu teste tinha funcionado e a mãe passara com brilhantismo.
- Não vai haver próxima. – disse ele, enquanto subia, apressadamente, as escadas.  


sexta-feira, 8 de maio de 2015

A invisibilidade de Amélia

- Conta-me uma história, papá! – pediu o Pedro, já na cama, os olhos ainda vivos de tanta correria. Eu acedo, sentando-me a seu lado. 
- Que história queres? 
- A minha preferida, papá!
Eu sorrio. Ser pai também é isso, saber, como ninguém, quais são as preferências dos filhos. 
- Já não estás cansado de ouvir essa história?
Ele abana a cabeça. 
- Muito bem. Vou começar… 
Mas o Pedro interrompeu-me. Queria ser ele a começar. Um hábito que tinha há muito tempo. Pedia-me para lhe contar uma história, mas acabava sempre por ser ele a contar. E eu adormecia a seu lado na cama. Hoje não seria assim, prometi a mim mesmo, como costumava prometer sempre. 

Era uma vez uma rapariga chamada Amélia. Ela tinha perdido os pais num acidente e fora viver com a tia para um grande prédio em Oeiras. Esta vivia com as duas filhas gémeas que, desde o primeiro momento, torceram o nariz a semelhante intrusão e começaram a fazer a vida negra à pobre rapariga. Depois foi a própria tia que a convenceu de que devia pagar a sua estadia com o trabalho de casa. Rapidamente Amélia se viu transformada na escrava da casa, enquanto suas senhorias faziam vidas de marquesas. Ela limpava a casa, tratava da roupa e fazia a comida. E ai se fizesse alguma coisa mal. Como se isso não fosse pouco, a Amélia fora obrigada a parar de estudar. Durante os primeiros anos que viveu com a tia ainda foi às aulas. Ela gostava da escola e os professores quase imploraram para que a tia a deixasse continuar os estudos, mas, na opinião desta, a prioridade de Amélia deveria ser a lida da casa. Como não tinha mais nenhum sítio para onde ir, com o passar dos anos, Amélia acomodou-se à sua condição de escrava. Saía à rua apenas quando era necessária alguma coisa para casa. Não falava com ninguém. Tornou-se quase invisível, até mesmo para as primas que apenas pareciam notar pela existência dela quando precisavam de roupa passada. 

O Pedro respirou fundo. 
- Queres que continue eu?
- Não, papá. É a parte em que entra o príncipe. Mas já não existem príncipes. 
- Existem, sim, filho. Mas não entram nesta história. 
E, então, já com a respiração refeita, o Pedro continuou a história.

Um dia, entrou uma família mais endinheirada para o prédio. Tinha comprado o apartamento que ficava na cobertura, um T4 duplex com tantos quartos que era necessário um GPS para se orientarem lá dentro. Era um casal que tinha um filho com dezanove anos, que imediatamente começou a ser disputado por todas as raparigas que viviam no prédio e arredores – entre elas as primas de Amélia. A própria Amélia sentiu que o coração lhe caía ao chão no primeiro dia em que ele passou por ela. Mas ela estava invisível, com a roupa de trabalho e sem se arranjar minimamente. 

- E, agora, vem a parte da festa, papá. Parece a história da Cinderela, não parece? 
Eu confirmo a suspeita do meu filho. Parece, mas não é. Tinha sido bem real, mas ele não sabia. 
(Ou isso, ou éramos, apenas, personagens de um conto de qualidade duvidosa. Rapidamente afastei essa hipótese: nenhum autor seria tão sádico ao ponto de inventar a situação calamitosa na qual o país se encontrava.)
Mas vamos à festa. 

Os pais do rapaz, de nome Tiago, vinham de longe e estavam pouco habituados ao costume citadino de se fecharem em casa a sete chaves, sem conhecerem quem os rodeia. Para se apresentarem à vizinhança, decidiram fazer uma festa e convidaram tudo e todos. A tia da Amélia tinha já outros planos, mas mandou as filhas (nem podia ela fazer outra coisa, porque a partir do momento em que elas se aperceberam do grande acontecimento, não falavam de outra coisa – iriam mesmo sem ser convidadas).  
Quanto à Amélia, feia como se achava, rejeitou o convite. 

O Pedro parou no ponto em que Amélia rejeitava o convite. 
- Papá, na Cinderela entrava a fada madrinha, que usou a sua magia para transformar a Cinderela. Mas, na realidade, não há magia. Eu sei. 
Olhei para o meu filho. Não havia nada de tão triste como alguém tão novo e sem acreditar em magia. 
- A magia existe, Pedro. Está dentro de cada pessoa. Se estiveres atento vês como existem pessoas mágicas, que te surpreendem em cada atitude. 
O Pedro olha para mim, muito sério. 
- Eu sei, papá. Como a mamã. Quando estou doente, não são os remédios do doutor que me curam, são os mimos dela. 
- Sim, Pedro. Como a mamã. Vamos continuar a história. 
- Bora lá. Iniciando a magia. 
Eu sorrio. Não lhe digo que, também ele, é mágico. Há-de descobrir um dia. Por enquanto, a única coisa que interessa é a sua voz a inundar o quarto enquanto narra o conto. 

Logo depois de ter rejeitado o convite, Amélia foi devastada pela maior depressão que sentira na vida. Nada lhe interessava. Perdera a coragem para aturar as primas e a tia. Perdera a esperança. A tia não reparou, como era seu hábito. Afinal, ninguém repara nas pessoas invisíveis. Ninguém, a não ser uma senhora idosa que vivia no terceiro andar e tinha muitos problemas de saúde. Chamava-se Lurdes e tinha um carinho muito grande por Amélia. Para a D. Lurdes, ninguém era invisível, especialmente quem precisava, desesperadamente, de ser visto. Encontraram-se um dia, no átrio do prédio. A D. Lurdes notou, imediatamente, que algo se passava. Suspeitou que tivesse a ver com a festa e decidiu agir. Pediu à tia da Amélia que deixasse a rapariga acompanhá-la à esteticista. A tia resmungou, mas a D. Lurdes, mulher vivida, conseguiu dar-lhe a volta. 
E lá foram as duas, a Amélia desconhecendo que a ida à esteticista era ela, e não para a D. Lurdes, que já não tinha idade para pensar em festas. E a espantada Amélia lá foi tratar de si. Esteticista, cabeleireira, loja de roupa. Regressou feliz, surpreendentemente bonita e cheia de sacos, que escondeu em casa. Como era invisível, nem a tia nem as primas deram pela diferença. 

- E ela foi à festa. – disse o Pedro. A mãe entrou, nesse momento, no quarto. Sentou-se ao meu lado, na cama e, com um olhar mais firme, indicou que a hora do conto tinha terminado. 
- Mamã, estava a acabar a história… 
 - Pedro, tu já sabes como acaba. 
- Mas, mamã, achas que foram felizes para sempre? 
A mãe sorri para ele. 
- Não sei. Ainda não vivemos tudo. Que achas, Tiago? Teriam sido felizes? – pergunta-me Amélia, com um olhar de malícia.
Eu levanto-me, em silêncio. Qualquer resposta é irrelevante para quem já a tem gravada na alma.  

terça-feira, 5 de maio de 2015

Sapos, princesas e tudo mais



- Diz-me que não puseste o nome DELE no saco, Ana! Se me calha a mim, eu… eu… - gritou a Inês. Depois afagou a raiva com um gole de cerveja. Estavam as três no quarto da Maria, com os Muse aos berros. O vizinho de cima já tinha chamado a atenção mas a Maria estava-se nas tintas para ele. Que chamasse a polícia e a GNR, ela não se importaria, pensou a Inês. Com a bebedeira com que estava, até podiam vir os bombeiros, que a filha da dona da casa não se importaria. Mas era isso que a Inês mais gostava na loucura da amiga de cabelo roxo. 
A Ana era mais discreta mas, mesmo assim, quando lhe dava para descarrilar também fazia estragos. As três eram inseparáveis, cada uma com 18 anos feitos há pouco. Faziam por não ter nada na cabeça. A escola não lhes interessava: sabiam que haveria um dia de lhes aparecer um marido rico e estupidamente bonito para as sustentar. 
- Vou ser a primeira – anunciou a Ana. Afinal, a ideia tinha sido dela. Tirou um papel do saco e guardou-o na mão sem ler. Depois estendeu o saco à Maria, que fechou os olhos e tirou, por sua vez, um papel. A Inês foi a última. No saco tinham posto os nomes de todos os rapazes da turma. E todas rezavam para que não lhes tivesse calhado na rifa o Borbulhas, mais conhecido por Sapo, pela configuração da cabeça, estranhamente parecida com a de um sapo. 
- Portanto, vamos ter de andar com quem nos calhar na rifa, durante uma semana, e depois abandoná-lo da forma mais humilhante possível.  – relembrou a Maria. Fazendo um brinde, as três beberam mais uma cerveja.  
A Ana abriu o papel dela, leu o nome que lá estava escrito e respirou de alívio. Entre os anormais da turma, tinha-lhe saído o mais normal, o Rodrigo. A seguir, leu a Maria o dela. Tinha-lhe saído o Rui. O desportista por quem todas as raparigas da escola suspiravam. Tinha namorada, mas a Maria sabia todos os truques. Foi então que a Inês leu o nome que estava no papel dela e as amigas viram que ela mudara de cor. 
- Merda… saiu-me o Sapo. 

O difícil, pensou a Inês, não era conquistar o Diogo. Ela sabia que ele gostava dela, mas isso não conseguia fazer com que esquecesse a boca desmesurada e as borbulhas que ele tinha semeadas pela cara. Invejava os rapazes que tinham calhado na sorte às amigas. Elas ainda se iam conseguir divertir. Ela, por outro lado, teria de fazer o sacrifício inimaginável. Se ao menos conseguisse ficar a mais de um metro dele. Decidiu tentar sem olhar para a cara dele. Se o fizesse, sabia que perderia a coragem. Arranjou forma de ficar sozinha com ele. Fingiu precisar da ajuda dele. Ele, sempre atencioso, parecendo bastante surpreso com a oportunidade, ajudou-a, levando-lhe o saco até ao bar. Ela tinha dado um mau jeito às costas.
- Queres que te faça uma massagem? – perguntou ele. 
- Não. Dispenso. – disse ela. 
O Diogo riu-se. 
- Estava a brincar. Ainda te punha pior. A minha irmã disse-me que sou a pior pessoa a fazer massagens que ela conhece. Sabes, tenho muita força nas mãos e … 
Estavam no bar. Ela deixou que ele lhe pagasse o lanche, sempre sem tirar os olhos da mesa. Não acreditava no que estava a acontecer. Ele voltou com um prato com croissants e dois sumos. Ela agradeceu. 
 - O que dirias se te convidasse para sair, logo?
“Sair? O Diogo, afinal, era apenas feio”, pensou a Inês, que já se imaginava num qualquer bar de Braga.
- Pode ser. Onde vamos? – respondeu ela. Viu, pela expressão do corpo do Diogo, que ficara eufórico com a notícia. 
 - É surpresa. – respondeu. 
Combinaram às 20h. Ele foi buscá-la a casa, conforme prometido. Nem nesse momento ela teve coragem para olhar para a cara dele. Estava a ser melhor do que ela pensara, não queria estragar tudo com a visão das borbulhas. Só a ideia repugnava-a.
- Onde vamos? – perguntou ela. Na sua cabeça via perfeitamente a lista de sítios onde queria ir, mesmo que o facto de aparecer lá com o Diogo pudesse estragar a sua reputação. Ela reparou que ele olhava para a roupa dela.
- Desculpa. Queria fazer-te uma surpresa, mas já vi que devia ter-te explicado. Nós não vamos a nenhum bar nem a nenhuma discoteca. Eu faço voluntariado. Pensava que quisesses vir comigo. Vamos distribuir comida pelos sem-abrigo. 
A Inês levou algum tempo até digerir completamente as palavras do Diogo. Depois, percebeu que tinha a noite estragada e que era bom que a semana passasse depressa. A Maria mandou-lhe uma mensagem. A Inês leu, com toda a raiva acumulada, que a Maria e o Rui estavam num bar. Enviou-lhe uma mensagem com um palavrão e, depois, decidiu sacrificar-se. Os sem-abrigo que viessem e que a noite passasse rapidamente. Seguiu o Diogo até à sede da instituição. Ali, a Inês conheceu a Sara, uma mulher dos seus trinta anos, extremamente simpática. Tinha os braços tatuados. A Inês gostou imediatamente dela. Era-lhe estranhamente familiar. Alguma vantagem teria de ter daquele frete. Os três meteram-se numa carrinha e foram pelas ruas de Braga, a distribuir comida às pessoas que os esperavam nos sítios habituais. Contrariamente ao que tinha pensado antes, a Inês até que estava a gostar da experiência. Ao fim de algum tempo, já convivia com as pessoas, que, além de comida, precisavam também de alguma atenção. Nunca a Inês pensaria estar a fazer aquilo. 
“O q fazes com o anormal?”, perguntou, por SMS, a Maria. 
“Tou a ajudar os pobres”, respondeu ela. 
“Tas o quê?!?!?! :)”, respondeu a Maria. 
E, a partir daí, a Inês deixou de olhar para o telemóvel. Terminou a noite cansada mas estranhamente feliz. Tinha ouvido histórias, tinha visto sorrisos em quem pensara não puderem existir, um calor humano intenso. No final, a Sara, o Diogo e ela foram beber uma cerveja a um bar. Então, enquanto a Sara ia ao WC, o Diogo perguntou-lhe apenas: 
- Reconheces a Sara? 
- Não. 
- É a vocalista das X-Women. 
O queixo da Inês caiu. Conhecia-a como Sarah X, mas andava sempre com maquilhagem muito carregada. Nunca lhe passaria pela cabeça da Inês que passara a noite com a vocalista do grupo de Braga preferido dela. Quando a Sara regressou do WC, com o seu sorriso simples de sempre, a Inês procurou à pressa um papel e uma caneta. 
- Dá-me um autógrafo, por favor. Sou tua fã, ... eu … 
Foi só naquele momento em que a Inês estava mais nervosa que calhou olhar para a cara do Diogo. E teve um choque. 

- O que aconteceu à tua cara, Diogo? – perguntou a Inês no regresso para casa. 
- Foi por isso que não olhaste para mim uma única vez, hoje? Aliás, creio que nunca olhaste. Os tipos como eu são invisíveis para as raparigas, Inês. Com o tempo, habituamo-nos a isso. Deixamos de sonhar, mesmo com a rapariga que nos povoa os nossos sonhos. Sabes o que eu senti hoje de manhã, quando aceitaste sair comigo? O tratamento que fiz não vai mudar quem sou. Vai apenas fazer com que as raparigas como tu deixem de falar de mim como falam. Pensas que eu não sei?
A Inês não sabia onde se meter. Estava perante um rapaz completamente diferente da ideia que tinha feito dele. Despediu-se, envergonhada, e foi para casa. 

No dia seguinte, o Diogo fez-lhe uma proposta que ela considerou ainda mais estranha.
- Vem jantar a minha casa. 
Ninguém convida uma rapariga para jantar em casa, com os pais, no segundo dia em que saem, mas ela lá aceitou. Conheceu os pais dele, pessoas extremamente simpáticas. O jantar foi divertido. No fim, o Diogo fez-lhe um convite ainda mais estranho: queria mostrar-lhe o quarto. A Inês aceitou. 
- Fecha os olhos. Confia em mim. Vais gostar.
E a Inês fechou-os, sem hesitar. Depois ele puxou-lhe com delicadeza pela mão e orientou-a pelo quarto. Depois fez-lhe sinal para se sentar. Ela sentiu que estava na cama.
- Não vais fazer nada de esquisito, pois não? – perguntou ela, genuinamente divertida com a situação. 
- Depende do que entenderes por esquisito. Agora, não abras os olhos. Não imaginas o quanto eu sonhei com este momento. 
- Imagino. – deixou escapar a Inês, apenas um segundo antes de sentir a música a envolvê-la. Um violoncelo a interpretar o Highway to hell dos AC/DC. O Diogo tinha uma boa aparelhagem sonora, pensou, antes de abrir os olhos e ver como estava enganada: era o próprio Diogo que tocava o violoncelo, a um canto do quarto. O rosto concentrado, as duas mãos a executar movimentos precisos, vigorosos. A Inês imaginou, por momentos, aquelas mãos a percorrer-lhe o corpo e notou como, afinal, era bonito o rosto do Diogo.

“E agora?”, perguntou-se a Inês. Estava cada vez mais envolvida por ele. Nunca imaginara que houvesse uma Inês tão diferente da Inês que os outros estavam habituados a ver. Mesmo em casa, todos tinham notado a diferença. Até havia a ideia de fazer um ano de voluntariado antes de irem para a Universidade. E ela que nunca lhe passara essa ideia pela cabeça. Como dizer às amigas? A semana tinha acabado e elas continuavam com a sua ideia. 
Na sexta-feira, a Ana acabaria com o Rodrigo, à frente de todos. Pouco depois, a Maria faria o mesmo com o Rui, que era amigo do Diogo. Antes que a Inês pudesse falar com este último, o Rui falou com ele. 
Foi o Diogo que tomou a iniciativa de falar com a Inês. Ela já não conseguia ver nele o Sapo ou o Borbulhas. Tinha tomado mesmo uma decisão temerária. As amigas que a desculpassem, mas nenhum rapaz a fizera sentir-se tão assim. Queria dizer-lhe isso, mas ele antecipou-se.
- O Rui já me disse. Fiz papel de palhaço. Estava a achar sorte a mais. A rapariga dos meus sonhos, com um rapaz como eu? Onde é que eu estava com a cabeça. Estas coisas só acontecem em filmes. Ou em contos de qualidade duvidosa. Não quero falar mais contigo. – disse ele, virando depois as costas à Inês e afastando-se num passo decidido.

- E agora, a que é que vamos apostar? – perguntou a Maria. Havia novamente uma grande quantidade de cervejas pelo chão do seu quarto e a música aos altos berros. A Inês não conseguira, sequer, tocar numa cerveja. 
- O que estamos a fazer? – perguntou ela.
A Ana olhou para a amiga. Tinha o olhar vidrado. Tinha estado a fumar coisas estranhas com a Maria. A Inês não quisera tomar parte daquilo. 
- Estamos a divertir-nos. Que mais importa na vida? – perguntou a Maria. 
A Inês levantou-se e pegou na bolsa. 
- O que mais importa na vida? Para começar, a coisa que mais importa na vida é viver. – e bateu com a porta, saindo sem rumo pela cidade. Consultou o relógio. Sentia um vazio enorme por dentro e um arrepio de frio. Estaria, talvez, a ficar com gripe. Mas não seria por isso que não ficaria na rua. Passou por alguém conhecido. Um sem-abrigo que conhecera no primeiro dia em que saíra com o Diogo. Ele notara a tristeza dela e oferecera-lhe um sorriso. Quem não quase nada, oferece o pouco que lhe resta, pensou a Inês. Pouco tempo depois, eles começaram a aparecer. Cinco pessoas puseram-se em fila, entre eles um homem bem vestido mas com o olhar despido de esperança. Trazia uma menina pela mão. A Inês cumprimentou-os e pôs-se no fim da fila. 
A carrinha branca apareceu pouco tempo depois. Quando o Diogo saiu dela, esboçou para a Inês um sorriso. O primeiro de muitos.  

segunda-feira, 4 de maio de 2015

Capuchinho Vermelho revisitado




Vitória ou Vicky, como gostaria que os amigos a chamassem, se ela porventura tivesse amigos, era uma rapariga enigmática, dos seus vinte e muitos anos. Mudara-se há pouco tempo para aquele bairro de Gondomar e não conhecia ninguém. Era tímida, mas, mesmo assim, dava nas vistas sempre que andava pela rua com a sua mini-saia justa ao corpo perfeito (Deus tinha sido generoso quando a criara – as más línguas, no entanto, diziam que era obra do demónio). Não tardou a ser o alvo dos piropos de todos os homens das redondezas. A todos ignorou, até que as pessoas começaram a duvidar da sua sanidade mental, tal era o alheamento que cultivava em redor de si própria. Ninguém lhe conhecia amigos nem amigas. A ninguém dirigia a palavra. Costumava voltar para casa num passo lento, sempre sem se desviar do caminho, por vezes de noite. 
Outra particularidade da Vitória era o facto de andar sempre, quer fizesse um calor abrasador ou um frio tremendo, vestida com um casaco vermelho de cabedal com um capucho gigantesco. Começaram a gozá-la por causa disso. Era a “capuchinho vermelho”. Ela ignorava-os, como fazia quando lhe lançavam piropos. E assim se passaram meses, até que, movido pela curiosidade, um rapaz mais atrevido lhe resolveu montar o cerco. Sabia sempre a que horas ela passava e ele ficava a esperá-la, tentando meter conversa. Vitória capuchinho vermelho continuava sempre a ignorá-lo, até que, finalmente, ela parou e disse:
- A minha avó disse que eu não devo falar com estranhos.
O rapaz sorriu, deitou o cigarro ao chão, apagando-o vigorosamente com o pé num gesto estudado. 
- Eu sou o Henrique. Chamam-me Lobo. 
A Vitória, muito séria, não disse nada. Continuou a andar. O rapaz seguiu-a até que ela parou e virou-se para trás. 
- Ouve, Lobo, escuta-me, a sério: eu não te quero conhecer. Ou melhor, tu não me queres conhecer. Eu sou uma pessoa muito perigosa.
O Lobo deu uma gargalhada. 
- Pois. Imagino. Mas repara, tu tens um capuchinho vermelho, eu sou o Lobo. Fomos feitos para estarmos juntos. – disse ele, acendendo um novo cigarro. Ofereceu-lhe um a ela, que aceitou. O Lobo acendeu o cigarro dela num ritual como tinha visto no cinema. 
- Sabes que a coisa não correu muito bem para o Lobo, nessa história, não sabes?
O Lobo encolheu os ombros. Vitória ficou com a noção exacta de que ele não conhecia mesmo a história. 
- Henrique, a sério: estás convencido de que eu vou ser conquistada por alguém que me segue na rua com atitudes infantis?
Henrique ficou em silêncio. Por fim respondeu, apenas:
- Estou.
E Vitória foi-se embora, para o seu apartamento no prédio mais sujo que havia no bairro.

Na noite seguinte, Henrique esperava-a novamente no caminho. Ela passou por ele, ignorando-o de novo. 
- O Lobo comeu a Capuchinho Vermelho e a avó, depois veio o caçador e abriu o lobo, salvando as duas. Depois puseram pedras dentro do lobo e ele morreu ao tentar beber água do poço.
Vitória virou-se para trás e sorriu-lhe, mas sem afrouxar o passo.
- Fizeste o trabalho de casa. Parabéns. 
Ele foi atrás dela, apressando o passo. 
- Sabes, esta história não tem lógica. 
Vitória parou.
- É uma fábula, Lobo. Ensina que as meninas devem ter cuidado, e não falar com estranhos. Muito menos com Lobos. 
Henrique provou, então, que não era fácil desarmá-lo. 
- Vejamos: em primeiro lugar, tu já sabes o meu nome, embora eu não saiba o teu. Em segundo lugar, embora já esteja com sede, não gosto de água. 
Henrique esperou que Vitória esboçasse um sorriso, por mais pequeno que fosse. Mas não tinha conseguido nada. Absolutamente nada. 
- Não vais desistir, pois não?
Henrique abanou a cabeça. Não sabia o que era desistir, porque pensava que se escrevesse “dezistir”.
- Até conseguir sair contigo, não desisto. 
- Muito bem. Um dia, Lobo. Talvez um dia. 
Henrique fez um gesto de vitória, escancarado, mesmo à frente dela. 
- Ainda bem que te fiz feliz. Chamo-me Vitória. Vicky, para os amigos. Categoria na qual não te enquadras, entendido? 
Henrique fez sinal de ter entendido. Todos os dias esperaria por ela, durante uma semana, mas Vitória, Vicky para os amigos, nunca lhe dava as notícias que ele esperava. Até que um dia, quando ele já estava prestes a “dezistir”, ela disse, simplesmente: 
- Vamos?
E foram, Henrique transformado repentinamente no mais feliz dos homens. Jantaram, depois foram para um bar no Porto, de onde podiam apreciar toda a vista nocturna. 
- Eu posso ser a pessoa mais perigosa que já tenhas conhecido. Tens certeza de que te queres aproximar de mim? – perguntou ela, mas Henrique já estava enfeitiçado. Já não era mais Lobo, era um chihuahua amestrado, pronto a fazer tudo o que a dona mandasse. Voltaram para Gondomar no carro alterado dele, a lembrar os bólides da Velocidade Furiosa. Foi com Vitória até à porta do prédio onde ela morava, Henrique completamente obcecado por ela. Aceitou, sem pensar, o convite de Vitória para subir ao seu apartamento.
E o Henrique nunca mais foi visto desde então.

sexta-feira, 1 de maio de 2015

Missão lunar

A notícia espalhou-se rapidamente pela Internet. Hoje em dia, já não há segredos, apenas mentiras por explicar. As pessoas, habituadas a duvidar dos rumores e das invenções sensacionalistas, não ligaram. Não podiam saber que, desta vez, a notícia era verdadeira: andava alguma coisa a passear na Lua. Logo o Presidente Obama ligou ao Presidente Putin. Os Russos também já tinham dado pelo estranho fenómeno. Seriam os Chineses, talvez. Mas estes logo disseram que a culpa era da Índia. Foi nesta altura que a notícia se tornou conhecida. Obama deu uma conferência de imprensa, indicando não haver razões para temer qualquer ameaça – havia que apagar a ideia implantada por dezenas de anos de filmes de invasões de extra-terrestres.

Logo o mundo entrou em sobressalto. Houve tumultos em diversos países, manifestações de comunidades religiosas, suicídios em massa. No meio da histeria, foi decidido fazer a única coisa possível: enviar uma missão à Lua. Prepararam uma sonda, que aterraria na sua superfície. Foram congregados esforços. Por momentos, esqueceram-se as tensões que se tinham vindo a agravar nos últimos anos. Diversas nações trabalharam em conjunto e, em tempo recorde, estava tudo pronto para enviar a sonda, criada com tecnologia japonesa e europeia, num foguetão americano. O mundo assistiu à partida do foguetão e, depois, ficou à espera.

Na Sala de Controlo, em Moscovo, um grupo de homens de diversas nacionalidades monitorizava cada aspecto da missão. A cápsula contendo a sonda demorou 3 dias para chegar à Lua. Vinha agora a parte mais crítica da missão: a alunagem da sonda, que aconteceu conforme planeado. Dotada de seis pequenas rodas, a sonda percorreu, então, o caminho até ao local onde tinha sido detectado o fenómeno. Na Sala de Controlo, a atmosfera era tensa. O mundo esperava, ansiosamente, por novidades. Na televisão davam reportagens diárias, teciam-se conjecturas, cada uma mais ridícula que a outra. Por todo o lado, aconteciam cerimónias religiosas e suicídios em massa. Por todo o lado, do Ocidente ao Oriente, do Norte ao Sul, estavam todos atentos, única e exclusivamente, a um pequeno veículo que fazia um lento trajecto de uns míseros quilómetros na Lua.

Quando Rob White, na Sala de Controlo, começou a ver as primeiras imagens transmitidas pela sonda, não podia acreditar no que via. Um cientista russo, a seu lado, começou a rir. Uma senhora de nacionalidade francesa exclamou: “C’est pas possible!”. Um físico alemão, de nome impronunciável, comentou apenas: “Es ist wahr!” (É verdade!). “E agora?”, perguntou Rob White. Os líderes mundiais deviam ser avisados antes da notícia ser espalhada por todo o mundo. Sinceramente, ele não sabia qual iria ser a reacção. 

Em videoconferência com os principais líderes, um grupo de cientistas mostrou o vídeo que a sonda tinha gravado. Obama, cuja reacção estava entre o divertido e o maravilhado, perguntou apenas: “Portanto, devo concluir que não estamos sós no universo e que o perigo de ameaça é nulo?” Rob White confirmou. Houve depois uma troca de palavras entre todos. Rob notou que antigas tensões regressavam. Por fim, todos concordaram que as imagens poderiam ser divulgadas. O cientista duvidou desta medida, mas, depois de terminada a reunião, informou os colegas, sendo imediatamente preparada uma apresentação. 

Foi com espanto que o mundo viu as imagens da sonda. Nela aparecia apenas um rapaz, que andava na superfície da Lua. Ele aproximou-se da câmara da sonda, esboçou um sorriso e acenou. 
Afinal, o pequeno príncipe de Saint-Exupéry sempre existia.

domingo, 26 de abril de 2015

Amor cego

        - Sim, querida?

        A mãe da Luísa esperava já a pergunta seguinte, habituada que estava à curiosidade inesgotável da filha. Tinha desenvolvido uma grande sensibilidade para saber quando a menina estava a tecer o novelo de mais uma interrogação. Respondia o melhor que sabia, que ela não sabia todas as respostas, e fazia questão em relembrar constantemente a Luísa desse facto.

        - Mãe, porque é que há chuva?

        A Sara sorriu. Desta vez, uma pergunta simples. Voltavam para casa, cada uma debaixo do seu guarda-chuva. Os pingos caíam, incessantes. A Luísa saltava, com as suas botas de borracha, nas poças de água, por mais advertências que a mãe lhe fizesse, porque podia sujar a roupa, mas o estado da roupa é a menor das prioridades, quando se tem 8 anos.

        Viviam numa cidade pequena, onde quase toda a gente se conhecia. A Sara tinha-se mudado para aquele bairro há pouco tempo. Conhecia uma ou duas pessoas, no máximo. Preferia assim. Detestava que as pessoas metessem o bedelho na sua vida. Sim, era mãe solteira. Sim, o pai da Luísa tinha desaparecido. E depois?

        A senhora Rosa dobrou a esquina, com o seu guarda-chuva “meia freguesia”, como lhe costumava chamar a Luísa, tão grande que ocupava toda a extensão do passeio. Conversaram durante algum tempo. A senhora Rosa era boa pessoa, apenas um bocado mais mexeriqueira do que a Sara conseguia suportar. Gostava da Luisa e a Luísa tinha de desbobinar o seu dia sempre que a via. Mesmo que chovesse a cântaros, como naquele dia. A Sara usou esse facto para se despachar, enquanto, mentalmente, terminava a lista das coisas que tinha de fazer quando chegasse a casa, e já estava física e psicologicamente arrasada, depois de perder o dia nos transportes públicos e num emprego que lhe arriscava dar cabo dos nervos. Queria chegar rapidamente a casa e esquecer o descanso que o corpo lhe exigia.

        O senhor Silva apareceu nesse preciso momento. Devia ter os seus quarenta e muitos anos. Usava uma capa de chuva branca e óculos escuros, mesmo que fosse de noite. Mas para ele todos os dias eram noite, desde que ficara cego, vítima de um glaucoma, conforme a senhora Rosa tinha informado a Sara. E lá vinha ele em direcção a elas, a descrever arcos com a sua bengala branca. Ou, como a Luísa costumava dizer, “a varrer a rua”. A Sara cumprimentou-o, afastando-se para a estrada, para lhe dar espaço. Ele sorriu e retribuiu o cumprimento. A Luísa limitou-se a sorrir e a acenar-lhe. A mãe abana a cabeça e explica-lhe, quando o senhor Silva já estava suficientemente longe.

        - Ele não vê, Luísa. Não adianta estares a sorrir e acenar.

        A menina não disse nada, mas a Sara percebeu que estava uma pergunta na fornalha. Descobriu, pouco tempo depois, que tinha razão:

        - Mamã, o senhor Silva mora sozinho?

        A Sara assentiu. Sim. Vivia sozinho. Uma senhora ia a casa dele às terças-feiras e às sextas-feiras e a Sara estava assustada pelo facto de saber este facto – isto significava apenas que estava a conversar demasiado com a senhora Rosa.

        - Sim, querida. O senhor Silva vive sozinho e, pelo que sei, já está habituado.

        A Luísa olha para a mãe com um ar agoniado: - Sozinho, mamã? Mas como é que se pode habituar a viver sozinho?

        - Acontece. Uma pessoa habitua-se. – disse a Sara. Sim. Uma pessoa habituava-se, mas era duro, pensou. Demasiado duro.

        Conversaram sobre o senhor Silva até chegarem a casa, no quarto andar de um prédio antigo que deveria ter um elevador a funcionar. Entre muitas outras coisas. Há noite, enquanto lhe aconchegava a roupa da cama, a Sílvia voltou às perguntas sobre o senhor cego. Fazia-lhe confusão alguém não conseguir ver. A Sara abanou a cabeça. Chega de perguntas.

        - Dorme, querida. Isso para ti é um problema, mas ele já se habituou.

        A Luísa sorri para a mãe. A próxima pergunta era de resposta mais complicada.

        - Mãe, achas que ele é feliz?

        A Sara meditou por um instante. Como saber se os outros eram felizes? A Sara sabia que a filha era minimamente feliz, e isso era felicidade suficiente para ela.

        - Isso, só ele pode saber, Luísa. Agora, dorme, que eu já não aguento em pé.

        - Está bem, mamã. Desculpa.

        A Sara beijou a filha, desligou a luz e fechou a porta do quarto. Esperava que aquela conversa tivesse acabado por ali, mas um acontecimento veio mudar tudo. Algo simples: a chegada de uma nova moradora para o prédio, também ela cega, também ela vivendo sozinha. E logo que a Luísa se apercebeu do drama da senhora Isilda, teve logo a ideia de juntar os dois.

        - Não nos devemos meter na vida das pessoas, Luísa. – aconselhou a mãe.

        - Mamã, mas se eles não conseguem ver… ele não sabe que ela vive na mesma rua.

        - Querida, as coisas não acontecem como vês nas novelas. A vida não é assim.

        Mas a Luísa era teimosa e perseverante, mesmo sem saber o que isso era. Tanto pediu, que a mãe resolveu fazer-lhe a vontade. Falou com a senhora Isilda e com o senhor Silva. Ambos ficaram agradados com a perspectiva de conhecerem alguém com o mesmo problema. No dia combinado, lá vieram. Sentaram-se os quatro à mesa, da sala de estar da Sara, para tomarem chá. A Sara não sabia muito bem como se comportar, mas eles rapidamente a puseram à vontade e foi mais divertido do que ela pensara. No entanto, não notou o mínimo interesse romântico entre os dois. Até a própria Luísa teve de reconhecer a derrota.

        - Pelo menos, mamã, eles conheceram-se. Cada um deles sabe que o outro existe.

        A Sara sorriu. A filha tinha feito uma boa acção, mesmo sem os resultados que a pequena esperara.

        - O amor não funciona assim, Luísa. Não basta que duas pessoas tenham um problema em comum. Até podem não ter nada em comum. Quando cresceres vais perceber.

        A Luísa olhou para os seus botões.

        - Estou a ficar com medo, mamã.

        - Porquê, Luísa?

        - Sempre que há uma pergunta mais complicada, dizes isso. Que vou perceber quando crescer. Será que vou ter tempo suficiente para perceber tudo quando crescer?

        Quando percebeu a pergunta da filha, a Sara desatou a rir, exorcizando todo o stress acumulado nas últimas semanas.

        - Não te preocupes. Tens a vida toda pela tua frente, e a mamã vai estar sempre aqui.

        Entretanto, a Luísa tinha fechado os olhos. A Sara sabia que vinha uma nova pergunta.

        - Mamã, já sei porque dizem que o amor é cego. – disse a Luísa, mantendo os olhos fechados.

        - E então porquê, Luísa? – perguntou a Sara, ficando à espera de uma teoria estranha da filha.

        - Porque eu, mesmo de olhos fechados, gosto muito de ti.

sábado, 25 de abril de 2015

A estranha história de Henriqueta

        Farta de estar em casa, Henriqueta fez o que qualquer outra pessoa faria no seu caso e dirigiu-se ao balcão do Centro de Emprego na Loja do Cidadão da cidade onde vivia. Tirou a senha e esperou de pé pela sua vez de ser atendida, porque as pessoas eram tantas que não havia lugar para se sentar. Nos seus rostos via espelhadas a ânsia e a mágoa. Não precisava que lhe contassem as suas histórias para saber o sofrimento que lhes ia na alma. Quando chegou a sua vez, dirigiu-se ao balcão 17 para ser atendida por um rapaz dos seus trinta anos.
        - Bom dia. Chamo-me Filipe. Em que posso ser útil? – perguntou ele.
        - Bom dia, senhor Filipe. Chamo-me Henriqueta. Procuro trabalho.
        Filipe escreveu qualquer coisa no computador, depois virou-se para ela, pensando que estava preparado para ouvir qualquer história de vida, sem saber quão errado estava.
        - Muito bem. O seu nome, por favor.
        - Henriqueta.
        Filipe escreveu e depois ficou à espera do resto. Virou-se então para a senhora, muito sério.
        - Sobrenome?
        Henriqueta abanou a cabeça.
        - Não tenho. Sempre me chamaram de Henriqueta.
        Filipe afastou-se, então, do teclado.
        - A senhora esteve horas para ser atendida para agora brincar comigo? Já viu a quantidade de gente que está aqui para ser atendida? – exclamou Filipe, visivelmente irritado.
        - Eu não estou a brincar. Chamo-me apenas Henriqueta.
        - Muito bem, Henriqueta. Qual foi a sua última ocupação?
        A senhora, que deveria ter os seus cinquenta anos, hesitou antes de responder.
        - Já sei que lhe vai custar acreditar, nesta época em que ninguém acredita em magia, mas eu fui Fada-madrinha.
        Filipe esboçou um sorriso, estando apenas a um passo de chamar os seguranças da Loja do Cidadão.
        - Muito bem. Digamos que estou disposto a acreditar nisso. Que idade tem? – disse Filipe. Por trás de Henriqueta estavam dezenas de rostos ansiosos pela sua vez. Ele queria, rapidamente, despachar aquele assunto, só por isso decidiu cooperar na loucura daquela senhora. Não lhe competia a ele dizer-lhe que devia procurar ajuda psiquiátrica.
        - Fiz, na passada terça-feira, 1352 anos.
        Filipe controlou-se. O rosto da senhora mantinha-se sério e calmo. Transmitia uma estranha bondade.
        - Sabe que a sua idade, num país onde os empresários consideram as pessoas velhas para o trabalho depois dos 35 anos, pode ser um factor complicado, não sabe?
        Henriqueta assentiu. Era uma Fada-Madrinha, mas sabia, perfeitamente, a situação sócio-económica do país e o perfil dos empresários.
        - Muito bem. Quais são as suas qualificações?
        - Qualificações? Eu nunca fui à escola.
        Filipe sorriu. Finalmente, uma situação familiar.
        - É, portanto, analfabeta?
        Henriqueta abanou a cabeça.
        - Não. Sei ler e escrever. Sei latim e grego. Percebo a linguagem dos animais e da terra.
        Filipe deita as mãos à cabeça. Estava cada vez mais farto de aturar aquela doida.
        - Mas nunca andou na escola, logo, não tem qualificações. Sem qualificações e com 1350 anos.
        - Tenho 1352 anos. E agora não tenho o que fazer. Deixaram de acreditar na magia. Já ninguém precisa da minha ajuda. E eu que ajudei tanta gente…
        Foi nesse exacto momento que Filipe perdeu as estribeiras.
        - Oiça, senhora Henriqueta. Eu vou ser muito sincero consigo. Acho que, antes de procurar emprego, tem de procurar ajuda psiquiátrica. Não existe magia, nem fadas, nem nada disso. A senhora é apenas uma mulher de meia-idade, como tantas que esperam a sua vez para serem atendidas. Porque que não faz a magia de as respeitar a elas, já nem falo de me respeitar a mim, e ir procurar ajuda?
        Henriqueta pareceu algo envergonhada, mas acabou por se levantar, para alívio de Filipe.
        - Vê, senhor Filipe? É por isso que eu estou sem trabalho. Já ninguém acredita na magia. Nem sequer o senhor. – disse ela, afastando-se.
        Filipe chamou a pessoa seguinte. Henriqueta continuava de pé, a olhar para ele enquanto um homem dos seus quarenta anos se sentava na cadeira.
        - Mas sabe uma coisa? O Filipe costumava acreditar. Um dia caiu de uma árvore, mas não se magoou. Lembra-se? Eu estava lá. Fui eu que o ajudei. – disse Henriqueta, saindo da Loja de Cidadão.
        Filipe levou algum tempo para digerir aquelas palavras, depois pediu desculpa, levantou-se e correu para a porta, mas já não viu Henriqueta, que parecia ter-se esfumado no ar.

terça-feira, 21 de abril de 2015

O gato do Diabo



  Ontem vi um gato na rua. Não era especialmente bonito, posso até dizer, com alguma segurança, que o encaixei na categoria dos gatos mais feios que já vi na vida. Tinha o pêlo branco e grande, o que já por si não é habitual nos gatos vadios, e o olhar carregado com um misto de desconfiança e ódio. Enquanto comia, junto ao balde do lixo, olhou para mim com aquele ar de dúvida de quem se interroga se seria eu o antigo dono. Tenho vontade de lhe dizer que não. Se tivesse sido o dono, só por vontade dele viveria na rua. Mas adiante: aquilo que me fez olhar com mais atenção para este animal foi uma particularidade da sua fisionomia, combinada com o seu ar selecto, característica típica destes animais, mesmo os que parecem ter fugido da máquina de lavar a roupa em pleno ciclo de centrifugação. 
  Não sei o nome deste gato, provavelmente nunca mais o verei na vida. No entanto, é fácil inventar-lhe uma história, à qual chamarei de “O gato do Diabo”. Desiluda-se quem pensar que é uma história de terror. A menos que estejamos a falar na perspectiva do próprio gato, do qual, como já disse, não sei o nome (se não sei o nome, inventa-se um rapidamente).
  O Número 5 nasceu numa noite fria de início de Março. Foi o quinto filhote a sair da barriga da mãe. Era uma pequena bola de pêlo que mal conseguia andar. Pela diferença de tamanho dos irmãos, a mãe imaginou, enquanto o lambia, que este quinto filho não vingaria. Não seria o primeiro que perderia – miaria de dor durante algum tempo e depois iria à sua vida de gata, que ter mais 4 crias para cuidar não era fácil, mesmo estando numa casa quente, com criados que lhe faziam todas as vontades. Quando queria, a gata, uma persa de pêlo cinzento, sabia escapulir-se para a rua e perdia-se por lá em longas e ruidosas orgias. Da última nasceria aquela ninhada. Quando já não os tivesse com ela – e queria que não demorasse muito – voltaria a fazê-lo, tão cedo quanto a sua natureza o ordenasse. Vivia para aquilo. Já tinha visto os donos a procriar. Ela observara-os, quieta e curiosa. No final, ficara com a sensação que eles não sabiam o que era viver à séria. Claro que, para saberem isso, era preciso serem gatos, não aquelas criaturas desajeitadas, que andavam em duas pernas e cheiravam horrivelmente mal. Quando estava perto de uma, sentia necessidade de limpar o nariz com a pata, sinal que eles pareciam tomar como estando a fazer a sua limpeza, quando era precisamente o contrário: ela estava a tapar as narinas com saliva, para diminuir o cheiro. De resto, desde que houvesse comida e conforto, a gata estava bem. 
  O Número 5 olhava para os irmãos que mamavam descontroladamente. Ele, em vez de se conseguir aproximar do corpo da mãe, via-se projectado para trás à força de patadas. A certa altura fartou-se. Não adiantava discutir com os mais fortes. Sabia que era mais ágil e rápido. Usou essas características para saltar por cima dos corpos agitados dos irmãos e, mergulhando entre eles como se fosse uma cobra de pêlo, lá conseguiu chegar à teta e tomou, de uma só vez, o pequeno-almoço e o almoço. Isso mesmo: um brunch felino. E foi assim que o Número 5 escapou ao vaticínio da mãe. Quando já tinha alguns meses, viu os irmãos desaparecerem para sempre, levados por humanos desconhecidos. No fim, só restou ele e a mãe, que já o tinha afastado de si. Estava por sua conta, percebeu. Mas não esteve por sua conta durante muito tempo, porque duas mãos carinhosas pegaram nele. 
  "A sério que posso ficar com ele?", perguntou uma voz de criança, uma rapariga sardenta que olhava, através de uns óculos grossos, para o gato. Depois, toda animada, levou-o com ela, aconchegado ao peito. O Número 5 deu uma última olhadela para a mãe que, longe de estar triste, parecia pensar já na próxima orgia e procurava uma forma de escapar. Ele não se importou: o colo da menina era o lugar mais confortável onde tinha estado.
        Ao chegar à nova casa, demorou algum tempo a ambientar-se. Marcou toda a cozinha como seu território, passando depois à sala, para horror da mãe da menina, que começou a gritar com ele, convencida, talvez, que ele percebia humanês. Ele limitou-se a ficar quieto a olhar para ela, divertido por vê-la mudar de cor, e depois foi-se embora para a cozinha. Tinha fome, queria comer. A mensagem foi rápida e eficientemente entendida. O Número 5, que agora se chamava Lince pela sua parecença com os seus primos selvagens, tinha uma autêntica vida de lorde. Para justificar o (muito) que comia, por vezes fazia habilidades. Continuava rápido e era extremamente esperto, mostrando que conseguia abrir portas e janelas e dançar quando dava algum programa mais animado na televisão (grande invenção, pensava ele, para os seus longos bigodes). 
  Com o tempo, a dona começou a gabar o gato às vizinhas. 
  “É muito esperto”, dizia ela. 
  “Ai, só falta falar”, gabava-se a senhora. 
  “Só falta saber escrever”, respondia uma vizinha. 
  E o gato, ao ouvir isto, e mesmo sem perceber o que a criadagem dizia, lá fazia mais uma pirueta. Sabia que logo a seguir vinham as cócegas, a habilidade mais sublime que os humanos faziam. Não sabia ele que o paraíso duraria menos tempo do que ele estava a pensar. Na altura deveria ter uns cinco anos. Já tinha sido castrado, mas não se importou muito: só lhe interessava a comida e um lugar quente e confortável onde assentar o corpo, cansado de nada fazer. Foi então que a menina, que agora tinha crescido e era do tamanho da restante criadagem, disse para a mãe: “Ó mamã, já viste o que o gato tem na cabeça?”
  E a senhora lá foi ver. Teve de olhar bem de perto e tactear a cabeça (coisa que o Lince pensou tratar-se de mais uma dose de cócegas, pelo que se apressou a apresentar o corpo para uma sensação mais plena – mas ela limitou-se a mexericar-lhe na cabeça e logo o largou no chão, levando as mãos à sua própria cabeça).
  “Corno? O meu gato tem um corno? Mas pode lá ser?”, gritou ela. Logo uma vizinha bateu à porta, como se lhe cheirasse a desgraça. 
  “Então que se passa, vizinha, que a vejo com tão má cara?”
  A dona do Lince estava indecisa entre contar ou não contar, mas, como precisava de um conselho, foi buscar o dito.
  “Veja, vizinha, como está o meu gato!”
  A vizinha começou por não ver nada, mas depois deu um salto para trás, ao ver o corno que nascia a um dos lados da cabeça do animal.
  “Ai, que é o gato do demónio!”, disse a vizinha. A dona do Lince ficou a olhar para ela e para o gato, que antes de ter o corno era o gato mais esperto das redondezas – agora era motivo de vergonha e de medo. Nem por um momento pensou em ir ao veterinário, porque a crise alastrava também por aqueles lados. Só podia fazer uma coisa. Virou-se para o marido, na ausência da filha, e pediu-lhe para levar o gato para o ponto mais afastado da freguesia vizinha, e o deixasse lá. E o homem lá foi, castrado que era por natureza, sem nada contrapor. A verdade é que aquilo também lhe custava a ele, que se tinha afeiçoado ao animal. Mas nada de contrariar a sua senhora. Ele pegou no gato assim que a filha saiu de casa e levou-o para um longo passeio de carro. Quando parou num sítio que lhe pareceu mais propício, pegou nele, que estava mais nervoso e parecia pressentir o que ia acontecer a seguir, e colocou-o no chão, com uma bacia de leite e uma lata de comida. O Lince rendeu-se à comida e nem deu pela falta do dono, que já tinha seguido em grande velocidade e com uma lágrima no olho. Depressa se habituou à vida na rua, esperto como sempre tinha sido, mas sentia falta do colo confortável da rapariga que pela primeira vez tinha pegado nele.  


Epílogo
  Quando a filha chegou a casa, a mãe inventou que o gato tinha fugido. A rapariga desatou imediatamente a procurá-lo na rua. O marido da senhora, agora com o peso na consciência que demorara demasiado tempo a aparecer, voltou secretamente ao sítio onde tinha deixado o gato, sem o conseguir encontrar. E o gato lá ficou, a viver na rua. 
  Encontrei-o num sábado de manhã, enquanto ele comia um rabo de peixe que tinha caído de um saco do lixo. Olhou-me com desconfiança, dizendo-me, com a sua atitude agressiva, que aquela comida era dele, só dele, e mandando-me ir procurar a minha própria comida. Depois, voltou para o seu lugar favorito, de onde podia ver a casa onde sempre tinha vivido e para onde o orgulho de ferido de gato o impedia de voltar.

sábado, 18 de abril de 2015

O estranho talento de um homem banal


Era uma vez…

(Raios, vou mesmo começar assim este conto? Não. É melhor começar de novo… :) ) 

Ele era o homem mais banal do mundo. Tão banal que já nem me lembro do seu nome. Acho que ninguém se lembra, não fosse um pequeno pormenor que descobrira quando era ainda criança e desejava o que todas as crianças da sua idade desejavam. Na altura, não era o último jogo da PSP Vita, porque ainda não existia, e os pais eram tão pobres que ele sabia, exactamente, até onde podiam ir os seus desejos. Não, ele não desejava nada de material. Queria apenas bom tempo para uma tarde de sábado bem passada com os amigos, não aquela chuva chata e o vento frio, tão normal em Dezembro. Ele olhou para o céu pela janela e desejou, com toda a força, que estivesse bom tempo. Sol e calor. Desejou-o com tanta força, fechando os olhos. Imaginou as densas nuvens negras dissiparem-se, dando lugar ao sol. De repente, estranhou o súbito calor que sentia e ficou absolutamente atónito quando descobriu que era verdade. Enquanto que em toda a cidade o frio e a chuva imperavam, na rua onde o rapaz morava abrira-se uma clareira nas nuvens e o sol quente espreitava. Ele não ligou muito ao fenómeno. Correu a chamar os amigos e, de facto, parecia ser o prenúncio de uma tarde bem passada, não fosse o facto de que o fenómeno tinha sido notado, não só na cidade, mas no país inteiro, e a rua encheu-se de jornalistas e carros e curiosos e tanta gente que eles tiveram de parar de brincar, porque havia demasiados carros e uma autêntica multidão na estrada. Só então o rapaz pensou no que tinha feito. 

O rapaz banal, que não tinha talento para coisa alguma, tinha, afinal, um talento escondido, e que podia tê-lo feito um homem rico, não fosse o facto dele não querer tornar-se uma figura do circo. Se aquele episódio da sua infância demonstrara algo, era que o talento podia virar-se contra ele. Não contou a ninguém, nem sequer aos pais. Guardou o segredo durante os anos da sua juventude como adolescente banal, tirou um curso absolutamente normal, que lhe permitiu conseguir um emprego onde passava os dias por trás de uma secretária a olhar para papéis. Conheceu a mulher dos seus sonhos absolutamente banais, conseguiu convencê-la, a custo, de que era o homem dos seus próprios sonhos. 

Casamento marcado, mãe desfeita em lágrimas, noiva em histeria: dizem que um casamento é abençoado quando acontece num dia de chuva. No caso deles, a bênção caía em catadupa, num dia de tempestade onde tudo ameaçava ir pelos ares. Ele olhou para a mãe e para a noiva e fez a única coisa que podia fazer um homem desesperado: desejou, com toda a força, que a tempestade parasse. E aconteceu um fenómeno que ainda hoje é motivo de falatório. Onde quer que ele estivesse, abria-se uma clareira no céu, deixava de chover e o sol aparecia. Todos os convidados ficaram espantados com o que acontecia. Alguns, amigos antigos, lembravam-se ainda de um fenómeno idêntico que tinha acontecido na infância deles, mas ninguém conseguia ligar o facto àquele homem que escondia o seu estranho talento por trás da sua incomensurável banalidade.

No final do Copo de Água, com alguns convidados na piscina enquanto o resto do país tentava resistir à chuva e ao vento, o pai dele, um senhor de uma respeitável idade e que levava uma existência quase tão banal como a do filho, perguntou-lhe, em segredo: “Gostaste da minha prenda?”
O filho coçou a cabeça, não tendo qualquer ideia sobre o que o pai lhe estava a dizer, pelo que este passou a explicar: “O bom tempo, filho. Não consigo explicar como funciona, nem gosto de o fazer, mas eu consigo manipular o tempo. Fi-lo agora, para que tivesses o teu dia, tal como o fiz quando eras criança e te vi fechar os olhos à janela, num dia de chuva.”

E o noivo percebeu, então, a verdade. Agradeceu ao pai e preparou-se para ter uma vida verdadeiramente banal: agora que sabia que não tinha talentos estranhos para esconder, podia ser realmente feliz. 

Jorge Santos
18.04.2015