domingo, 4 de setembro de 2022

A metamorfose de José da Conceição



Foi na festa do seu 40º aniversário que José da Conceição tomou consciência de nunca ter deixado que alguém o tratasse por “Zé”. Da mesma forma, e talvez por isso, ainda era virgem. Até chamar de “festa” a festa de aniversário era um exagero: não passava de um simples jantar com a mãe e a tia Januária, uma senhora com setenta e muitos anos que escapava à morte como o cu fugia à seringa.

O José vivia com a mãe, Maria da Conceição. O pai, António da Conceição, foi pedreiro até ao dia em que as costas o traíram. Quando se viu forçado a ficar em casa e a depender da mulher, António foi-se em menos de um ano, entregue a borracheiras que se tornaram lendárias na vizinhança.

José foi para o seminário para regozijo da mãe, beata por vocação. Tinha sérias dúvidas sobre a sua vocação para padre, mas não queria contrariar a mãe, que se sacrificara para o criar quando ainda estava em idade para procurar outros destinos. A única vez que o fez foi quando, poucos anos depois, decidiu desistir do seminário, após chegar à conclusão de que não gostava que lhe dissessem o que pensar, como pensar e onde pensar, a cada instante da sua vida. Deu por isso um desgosto à mãe, prometendo a ele próprio que nunca mais aconteceria na vida. Não se deu conta de que, a partir desse dia, seria a mãe a dizer-lhe o que pensar, como pensar e onde pensar, a cada instante da sua vida. 

Quando concluiu o ensino médio, empregou-se numa firma de construção civil como escriturário. Tinha um horário fixo e trabalho. Raramente falava com os colegas, preferindo ficar em silêncio o dia todo, matraqueando a máquina de escrever. Duas vezes por semana acompanhava a mãe à igreja e cantava no coro. Quando regressava a casa sozinho e era abordado pelas prostitutas, mantinha-se calado ou chegava mesmo a fugir. Tudo o que via na rua era o que a mãe apelidava de podridão e pecado. Preferia fechar os olhos e enterrar a cabeça numa areia virtual, como faziam as avestruzes, deixando que a vida lhe passasse ao lado, escorrendo lentamente, dia após dia, até este momento. Pode dizer-se que, aos 40 anos, José acordou de uma longa e auto-infligida letargia.

Entra em cena Madalena, recém-chegada de outras paragens. Prima de Luzia, namorada de Gastão, primo de José. Mais por brincadeira do que a sério, decidiram juntar os dois, sabendo de antemão que se tratava de duas pessoas de naturezas opostas. Ele, um beato convicto, a pessoa mais quadrada que alguma vez existira; ela, uma artista que vivia do que vendia na rua, um espírito livre. Tinha tido uma série de desgostos amorosos e não procurava ninguém que lhe terminasse a solidão. Vivia com o seu cão e isso chegava-lhe para armar a confusão.

Luzia e Gastão convidaram-nos para jantar em casa deles, inventando um pretexto qualquer. A mãe do José não quis ir, inventando, também ela, um pretexto qualquer. José sabia a verdadeira razão: Gastão e a Luzia não eram casados e já tinham um filho. Viviam, no entendimento da senhora, em pecado e em rota de colisão com Deus, direitos ao Inferno, sem passar pela casa de Partida nem receber 2000, como diziam no Monopólio.

No final do jantar são deixados a sós, apenas José e Madalena na pequena sala do igualmente pequeno apartamento de Loures.

– Estão à espera que nos conheçamos – disse José, para quebrar o incómodo silêncio que se instalara na sala de jantar.

Madalena ri-se. Tem um riso ingénuo, quase infantil. É o riso próprio de quem não tem de prestar contas a ninguém, pensou José.

– São uns queridos. E o José, o que faz?

– Sou escriturário. Agora brinco com janelas no computador. Aquilo dá-me cabo da cabeça. Preferia a máquina de escrever.

– Pois eu escrevo mesmo à mão, no papel que em própria faço. Sou artesã, trabalho com barro, metal e papel. Também pinto, mas não sou grande pintora.

– A minha mãe diz que a arte não é um emprego a sério.

– Não? E tem razão… Não é um emprego, é uma paixão. O José tem alguma paixão?

José ia dizer que não, mas depois voltou atrás.

– Gosto de música. O meu pai tocava acordeão e ensinou-me algumas coisas. Depois que ele morreu, o acordeão é meu, mas a minha mãe não gosta que eu toque.

– Deixe-me adivinhar: a música também não é um emprego a sério?

José sorriu.

– Para além disso, o som do instrumento lembra-lhe o meu pai.

– Portanto, o José não toca porque a sua mãe não quer. Há alguma coisa que o José faça que a contrarie?

José abanou a cabeça. Explicou a saída do seminário e a promessa que tinha feito.

– Ela é a mulher mais forte que conheço.

– Mas o José tem direito a viver a sua vida. Ela já vive a vida dela conforme ela quer e entende. Não tem direito a impedir-lhe as suas paixões.

No regresso a casa, depois de se despedir, o José ia com a cabeça carregada com pensamentos novos e a lembrança do sorriso puro de Madalena. Tudo o que ele gostava de fazer, fazia-o pela mãe. A forma de vestir, de comer, de agir, era tudo à medida da mãe. Ele não passava de uma sombra.  

Decidiu começar a mudança na manhã seguinte, sábado.

Primeiro, recusou acompanhar a mãe às compras. Desculpou-se dizendo que não se sentia bem. Ela estranhou, ficando com a pulga atrás da orelha, mas depois saiu de casa, batendo a porta com desconfiança. José tirou o acordeão da caixa onde estava fechado há três anos e trancou-se no quarto. Sentou-se na cama e pegou no acordeão. Limpou-o cuidadosamente, como o pai lhe tinha ensinado. Depois passou o braço pela alça de couro a cheira a bolor e sentiu os botões de madrepérola. Começou a tocar.

Os primeiros sons foram surpreendentes. Os gatos miaram, os cães dos vizinhos ladraram em coro com os berros de reclamação dos próprios donos. Ele sempre gostara de tocar, o que não significava que o fizesse bem. Afinal, uma paixão significa apenas uma promessa, um contrato emocional – não implica qualquer tipo de milagre. 

Passada uma hora, mais minuto, menos minuto, a mãe chegou das compras e bateu furiosamente à porta fechada do quarto

– José, pára imediatamente que os vizinhos vão chamar a polícia!

– Está bem, mãe.

José parou. Guardou o instrumento na caixa e abriu a porta.

– Desculpe, mãe.

José deu um beijo de reconciliação, mas, na primeira oportunidade, saiu de casa com a caixa do acordeão na mão, apanhou a camioneta para o monte mais próximo, onde só as cabras podiam protestar. Depois de algumas horas a praticar, teve de dar a mão à palmatória: era mau e sozinho nunca evoluiria, pelo que se inscreveu nas aulas de acordeão.

No dia seguinte, parou numa loja de roupa. Chegou a casa num estilo mais desportivo, que o tornava bastante mais novo. A mãe desconfiou logo da Madalena, que, segunda ela, era uma mulher da má vida, uma rameira que queria desviar o filho do caminho da virtude. Na realidade, Madalena era um pretexto para que José regressasse do trabalho pelo caminho mais longo. Duas vezes por semana tinha aulas de acordeão. Abandonou o coro, mas continuava a acompanhar a mãe à igreja.  

Numa tarde,  José pediu a Madalena que o ensinasse a trabalhar o barro.

– O meu avô era artífice. A minha mãe não gosta de recordar isso porque foi o que a minha avó lhe dizia, porque o dinheiro era sempre pouco naquela casa. Mas ele sempre amou a arte. Ensina-me.

– Vais-te sujar, José.

– Não importa… a água limpa.

Houve uma troca de risos. Algumas semanas depois, deram o primeiro beijo e partilharam a mesma cama. Ele tinha a perfeita noção de que estava a pecar. A questão era que o caminho da virtude ele já conhecia, mas nunca o levara a lugar nenhum.

A mãe berrou quando ele decidiu sair de casa. Tentou chamar-lhe a razão, mas ele estava decidido a mudar de vida. Foi viver com Madalena, saiu da empresa, tornou-se artista e músico de rua. Juntos, correram o país de lés a lés. Tiveram o primeiro filho em Reguengos, o segundo no Porto. Em todo o lado conhecia gente, que é o que normalmente acontece quando se escancara a porta para a vida. Agora é conhecido como o Zé do Acordeão e gosta de ser chamado assim.