Rui divorciara-se há pouco tempo.
Comprou um T1 na baixa e procurou uma empregada para o ajudar das lides
domésticas, coisa para a qual ele não tinha a mínima queda. Teve várias, cada
qual com a sua particularidade que ele abominava, até que surgiu Diana, que ele
considerou perfeita a todos os níveis. Era de tal forma surpreendente que o
Rui, que namorava com uma mulher linda mas sem o mínimo espírito, começou a
sentir-se cada vez atraído por Diana, e tinha a certeza de que o sentimento era
recíproco. Sabia que era errado, mas estava-se a borrifar para o que os outros
diziam. A vida era dele. Diana foi uma surpresa em todos os sentidos, e o Rui
deixou-se levar por um sentimento que já não sentia há muito tempo.
Mas
a sua paixão por Diana estava comprometida. Havia um segredo que ela não
contava, que a impedia de ser dele a tempo inteiro, para sempre. Rui, obcecado
pela ideia de descobrir o segredo de Diana seguiu-a até uma casa de aspecto
velho, na zona mais pobre da cidade. Tocou à campainha. Trazia na mão um casaco
dela. O seu coração estava acelerado. Tudo lhe dizia que aquilo que ele estava
a fazer era errado. Diana tinha direito a ter os seus segredos. Ele arriscava-se
a perdê-la, e isso seria inimaginável.
A porta foi aberta por um homem da
idade do Rui, em cadeira de rodas.
“Boa tarde. Eu sou o patrão da Diana,
ela deixou isto lá em casa” , disse o Rui, sem saber onde se meter, mostrando o
casaco que Diana deixara lá em casa.
O homem, de aspecto jovial, pegou no
casaco de Diana.
“Entre, entre. A minha mulher fala
muito de si. Eu chamo-me Filipe.”, disse
o marido de Diana. E o Rui, sentindo-se miseravelmente, entrou. Filipe serviu-lhe um cálice de Vinho do Porto, uma das
poucas garrafas que tinham guardado para as ocasiões festivas, como aquela
visita do patrão de Diana. Ela estava visivelmente incomodada, mas menos do que
o Rui, que não sabia o que dizer nem onde se meter. Falaram essencialmente
sobre futebol e sobre carros. Filipe tinha pena de não poder correr (dava
alguns passos, mas a muito custo). A doença roubara-lhe o corpo, mas não a
dignidade, dizia ele. Era fácil ver que Diana amava o marido. Rui via isso na
intimidade do gesto e do olhar. Na forma como falavam, o Rui via-se como um
intruso. Sentia-se francamente mal. O Filipe saiu da sala para ir à casa de
banho. Rui olhou para Diana, mas esta não olhou para ele, enquanto arrumava a
louça. “Podias ter-me dito”, disse ele. Diana olhou finalmente para ele, e o
olhar disse-lhe tudo aquilo que as palavras poderiam falar. Filipe veio antes
do tempo. Ouvira eventualmente as palavras do Rui. Se ouviu, o Rui nunca chegou
a saber. Queria sair dali. Ir-se embora para o seu mundo, onde não era enganado
pela mulher que amava. Olhou para o relógio e apresentou uma desculpa qualquer.
Cumprimentou o Filipe e Diana acompanhou-o à porta. Beijou-a na face, ela
acariciou-lhe o braço, para lhe acalmar a fúria. Ele não sabia o que pensar,
mas lia no olhar dela uma certeza estranha. “Acalma-te, tudo se vai resolver”,
pediu ela, numa voz suave que o acalmou instantaneamente. “Segunda-feira”,
disse ela, apenas, antes de fechar a porta. O Rui desceu a escada, com alguma
amargura, mas uma pequena luz de esperança a iluminar-lhe o caminho.
Diana ouviu o Rui a descer a escada,
mesmo com a porta fechada (merda de material, costumava dizer o marido). O Filipe
fitava-a muito sério.
“Gostei
dele”, disse. E depois continuou com uma frase que a fez chorar: “Tens muito
jeito para escolher amantes.”
Diana deixou-se escorregar pela parede a baixo, junto à cadeira de rodas de Filipe.
As mãos apoiadas na roda, numa atitude de súplica. Não adiantava esconder,
porque o marido conseguia percebê-la, como nenhum homem conseguira antes.
Entendia-lhe todos os sentidos das palavras que ela dizia, todos os silêncios.
Percebia os gestos. Por isso mesmo, ele percebia a razão da tristeza dela, do
abatimento constante, do choro nocturno quando ela pensava que ele já dormia.
Maldita Esclerose que lhe tinha roubado o corpo, ainda em vida.
“Tu
ainda és nova e cheia de vida”, disse ele. Propôs-lhe então o divórcio. Ele
sacrificava-se para que ela fosse feliz. Diana rejeitou essa hipótese. O marido
dela era ele, não o queria abandonar.
“Então,
tenho algo a propor”, sugeriu ele.
Segunda-feira.
Rui começou a ficar nervoso – não era do feitio da Diana atrasar-se. Isso
poderia significar que o marido não concordava com
que ela trabalhasse na casa dele. Ou não: a porta a bater anunciou a chegada
de Diana.
“Pensava
que já não vinhas”, disse ele. Ela abanou a cabeça, com um sorriso nos lábios:
“Nunca”. E explicou o acordo que fizera com o seu marido. Algo que era
completamente imoral, mas ainda mais imoral seria fazer três pessoas sofrer.
Ela amava o marido, e enquanto ele fosse vivo, não queria separar-se dele, mas
enquanto mulher precisava do Rui, que ficou algum tempo a meditar no que ela
acabara de propor: na prática, por amor à esposa, o marido de Diana aceitava ser corno.
“Consegues viver assim?”,
perguntou ela, ansiosa, 4 segundos antes do Rui a beijar.