quarta-feira, 30 de maio de 2012

Amor em tempo de crise (Rui)


         Rui divorciara-se há pouco tempo. Comprou um T1 na baixa e procurou uma empregada para o ajudar das lides domésticas, coisa para a qual ele não tinha a mínima queda. Teve várias, cada qual com a sua particularidade que ele abominava, até que surgiu Diana, que ele considerou perfeita a todos os níveis. Era de tal forma surpreendente que o Rui, que namorava com uma mulher linda mas sem o mínimo espírito, começou a sentir-se cada vez atraído por Diana, e tinha a certeza de que o sentimento era recíproco. Sabia que era errado, mas estava-se a borrifar para o que os outros diziam. A vida era dele. Diana foi uma surpresa em todos os sentidos, e o Rui deixou-se levar por um sentimento que já não sentia há muito tempo.
Mas a sua paixão por Diana estava comprometida. Havia um segredo que ela não contava, que a impedia de ser dele a tempo inteiro, para sempre. Rui, obcecado pela ideia de descobrir o segredo de Diana seguiu-a até uma casa de aspecto velho, na zona mais pobre da cidade. Tocou à campainha. Trazia na mão um casaco dela. O seu coração estava acelerado. Tudo lhe dizia que aquilo que ele estava a fazer era errado. Diana tinha direito a ter os seus segredos. Ele arriscava-se a perdê-la, e isso seria inimaginável.
         A porta foi aberta por um homem da idade do Rui, em cadeira de rodas.
         “Boa tarde. Eu sou o patrão da Diana, ela deixou isto lá em casa” , disse o Rui, sem saber onde se meter, mostrando o casaco que Diana deixara lá em casa.
         O homem, de aspecto jovial, pegou no casaco de Diana.
         “Entre, entre. A minha mulher fala muito de si. Eu chamo-me Filipe.”, disse  o marido de Diana. E o Rui, sentindo-se miseravelmente, entrou. Filipe serviu-lhe um cálice de Vinho do Porto, uma das poucas garrafas que tinham guardado para as ocasiões festivas, como aquela visita do patrão de Diana. Ela estava visivelmente incomodada, mas menos do que o Rui, que não sabia o que dizer nem onde se meter. Falaram essencialmente sobre futebol e sobre carros. Filipe tinha pena de não poder correr (dava alguns passos, mas a muito custo). A doença roubara-lhe o corpo, mas não a dignidade, dizia ele. Era fácil ver que Diana amava o marido. Rui via isso na intimidade do gesto e do olhar. Na forma como falavam, o Rui via-se como um intruso. Sentia-se francamente mal. O Filipe saiu da sala para ir à casa de banho. Rui olhou para Diana, mas esta não olhou para ele, enquanto arrumava a louça. “Podias ter-me dito”, disse ele. Diana olhou finalmente para ele, e o olhar disse-lhe tudo aquilo que as palavras poderiam falar. Filipe veio antes do tempo. Ouvira eventualmente as palavras do Rui. Se ouviu, o Rui nunca chegou a saber. Queria sair dali. Ir-se embora para o seu mundo, onde não era enganado pela mulher que amava. Olhou para o relógio e apresentou uma desculpa qualquer. Cumprimentou o Filipe e Diana acompanhou-o à porta. Beijou-a na face, ela acariciou-lhe o braço, para lhe acalmar a fúria. Ele não sabia o que pensar, mas lia no olhar dela uma certeza estranha. “Acalma-te, tudo se vai resolver”, pediu ela, numa voz suave que o acalmou instantaneamente. “Segunda-feira”, disse ela, apenas, antes de fechar a porta. O Rui desceu a escada, com alguma amargura, mas uma pequena luz de esperança a iluminar-lhe o caminho.

         Diana ouviu o Rui a descer a escada, mesmo com a porta fechada (merda de material, costumava dizer o marido). O Filipe fitava-a muito sério.
“Gostei dele”, disse. E depois continuou com uma frase que a fez chorar: “Tens muito jeito para escolher amantes.”
Diana deixou-se escorregar pela parede a baixo, junto à cadeira de rodas de Filipe. As mãos apoiadas na roda, numa atitude de súplica. Não adiantava esconder, porque o marido conseguia percebê-la, como nenhum homem conseguira antes. Entendia-lhe todos os sentidos das palavras que ela dizia, todos os silêncios. Percebia os gestos. Por isso mesmo, ele percebia a razão da tristeza dela, do abatimento constante, do choro nocturno quando ela pensava que ele já dormia. Maldita Esclerose que lhe tinha roubado o corpo, ainda em vida.
“Tu ainda és nova e cheia de vida”, disse ele. Propôs-lhe então o divórcio. Ele sacrificava-se para que ela fosse feliz. Diana rejeitou essa hipótese. O marido dela era ele, não o queria abandonar.
“Então, tenho algo a propor”, sugeriu ele.

Segunda-feira. Rui começou a ficar nervoso – não era do feitio da Diana atrasar-se. Isso poderia significar que o marido não concordava com que ela trabalhasse na casa dele. Ou não: a porta a bater anunciou a chegada de Diana.
“Pensava que já não vinhas”, disse ele. Ela abanou a cabeça, com um sorriso nos lábios: “Nunca”. E explicou o acordo que fizera com o seu marido. Algo que era completamente imoral, mas ainda mais imoral seria fazer três pessoas sofrer. Ela amava o marido, e enquanto ele fosse vivo, não queria separar-se dele, mas enquanto mulher precisava do Rui, que ficou algum tempo a meditar no que ela acabara de propor: na prática, por amor à esposa, o marido de Diana aceitava ser corno. 
“Consegues viver assim?”, perguntou ela, ansiosa, 4 segundos antes do Rui a beijar.

terça-feira, 29 de maio de 2012

Amor em tempo de crise (Inês)



            Inês trabalhava na fábrica de calçado quando conheceu o Manuel. Sentiu algo de diferente desde o momento em que o viu pela primeira vez, o secreto desejo de o tornar no seu mundo, de ser dela. Para isso tinha de lutar com a cobiça das suas próprias colegas, que não podiam ver alguém mais giro, para começarem a invejar. Mas primeiro, Inês tinha de enterrar mágoas antigas. Ainda adolescente, fugira para Espanha com o namorado da altura. Quando voltou, sozinha e esfomeada, nunca mais seria a mesma, e o mesmo podia dizer da confiança dos pais. Tinha sido uma aventura estúpida, com remorsos que levariam anos a curar. E agora aparecera alguém que a podia fazer esquecer tudo. Investiu o pouco que tinha no cabeleireiro e na secção de roupa do hipermercado, insinuou-se discretamente, como tinha visto os predadores caçarem as suas presas nos documentários na televisão, muito diferente do espalhafato que as suas colegas faziam perante ele. Tal como o predador reconhece os outros predadores, ela reconhecia as colegas que estavam à caça do Manuel, especialmente pelo perfume barato e roupas decotadas. Mas Inês sabia que ele não gostava de mulheres excessivamente provocantes. Com o tempo, os olhares dele denunciavam o seu interesse – daí ao primeiro beijo passaram-se alguns dias, e no fim desse mesmo mês, o Manuel revelava-lhe os seus talentos como amante. A presa caíra, mas festejavam juntos, em união de vidas e de corpos.
Pelo fim do ano já viviam no mesmo apartamento. O Pedro seria a nova aquisição da equipa, ela grávida e feliz, ele expectante, muito mais nervoso do que ela.

Depois do nascimento do Pedro, houve um descuido chamado Simão. Se o Pedro tinha um ar de safado encantador, o mesmo ar do pai, já o Simão era mais calmo e pensativo. Foram anos de muita luta. Entre o trabalho dos dois na fábrica, o tratar dos filhos e da casa, sobrava pouco para Manuel e Inês, mas o pouco que sobrava era bem aproveitado e valia a pena o tempo roubado ao descanso. O corpo agradecia na mesma, e talvez em dobro. Inês sentia-se feliz, não imaginando a tempestade que estava para vir. Os sinais eram evidentes: subsídios por pagar, depois vencimentos em falta. Por todo o lado ouviam as mesmas notícias, era óbvio que a empresa estava a atravessar um mau momento. Em Agosto, depois das férias, os funcionários encontraram as portas fechadas. Conheceram assim o real significado das palavras “Insolvência” e “Assembleia de Credores”. De funcionários tinham-se tornado credores da firma. Para Manuel e Inês, parecia que o paraíso acabara. O subsídio de desemprego sabia a pouco e não dava para comer. Manuel só arranjava alguns biscates, insuficientes para garantir a comida na mesa. Com tempo, tudo se agudizou. A renda ficara por pagar, o subsídio de desemprego era usado para pagar a luz, a água e o gás.
Manuel encontrou então uma oportunidade de trabalho no Porto. Saía de manhã cedo, apanhava o primeiro comboio, e voltava ao fim do dia. O primeiro vencimento foi festejado com um jantar no McDonalds, para regozijo dos miúdos.
A partir do primeiro mês, Inês notou uma diferença no comportamento do Manuel. Uma tristeza estranha, uma melancolia sem sentido. Aparecia com dinheiro fora do fim do mês. Por vezes trazia os bolsos cheios de comida, algo que Inês estranhava. Até que Matilde tocou à campainha da porta. O Pedro foi abrir a porta. Inês notou o súbito nervosismo do Manuel e antecipou-se a ele. Deu de caras com uma senhora alta e bem parecida. Era bastante elegante, mas não se podia dizer que fosse especialmente bonita. Apresentou-se como amiga do Manuel. “Amiga, uma ova!”, pensou a Inês, a ferver por dentro. Por momentos, voltou a sentir-se a predadora dos tempos em que lutava pela atenção do Manuel. Convidou-a para lanchar. Estava a divertir-se com a mais-do-que-evidente atrapalhação do seu macho. Como se ela não soubesse já que ele tinha outra. Mais: desconfiava que era ela que lhes pagava as contas lá em casa. Mas ele voltava sempre para Inês, e ele sabia que ele a amava, pelo que fechava os olhos. Confiava cegamente nele, mas pelo sim, pelo não, mantinha os olhos abertos. Era uma confiança cega, de olhos abertos.
Matilde era uma pessoa simples, mas tinha dinheiro. Tinha sido abandonada pelo marido, que saíra do país há anos. Inês sentiu estranhamente que podia confiar nela. Um sentimento de cumplicidade que não podia explicar. Sabia que Matilde nunca lhe tiraria Manuel. Sentia-se sozinha, solitária. Sentiu-lhe a tristeza e o abandono; fez o que nenhuma das amigas da Inês alguma vez faria: fechou os olhos. Mesmo quando o Manuel lhe anunciou que iria trabalhar para Lisboa e que só viria aos fins-de-semana, Inês percebeu, e confiou.

E fingiu viver feliz para sempre.  

Amor em tempo de crise


Não restava qualquer dúvida, ao Manuel, de que amava Inês. Como não havia dinheiro para casarem, alugaram um apartamento pequeno nos arredores; tiveram dois filhos e eram felizes até que ficaram, os dois, desempregados. Depois disso continuaram felizes, mas com uma sombra de incerteza muito grande em cima da cabeça deles. Com várias rendas em atraso, contas por pagar e sem dinheiro para pôr comida na mesa, Manuel sentiu que tinha de sair; foi procurar trabalho numa cidade próxima. Encontrou Matilde, uma mulher divorciada a quem ocultou o facto de ter uma família. Quando podia, regressava em segredo para junto de Inês, trazia dinheiro e comida da despensa de Matilde, até ao dia em que tocaram à porta da sua casa, que partilhava com Inês e os dois filhos - foi um deles que foi abrir, contrariando a vontade do pai, mas ele era assim. “Quem é, Pedro?”, perguntou Manuel, chegando junto à porta onde deu de caras com Matilde. Ela olhou para ele, com um sorriso matreiro. Inês chegou ainda antes dele poder falar com ela.
         “Quem é?”, perguntou Inês, a limpar as mãos ao avental. Manuel responde que é uma amiga. Não consegue disfarçar o nervosismo na voz. Matilde ajuda-o: “Conhece-mo-nos no comboio. Ele esqueceu-se disto... (trazia na mão um casaco de malha que Inês não via há muito tempo)". Inês comentou que já tinha dado pela falta do casaco. Manuel estava a um ponto de ter um ataque, enquanto que Inês convida Matilde para lanchar. Para desespero do Manuel, esta aceita; entra na casa deles, observando com interesse todos os detalhes. A casa do Manuel e da Inês era tão diferente da casa dela, como da água para o vinho. Os filhos não abrandavam a algazarra, estavam excitados por terem uma visita, ainda por cima uma senhora tão bem vestida e vistosa como Matilde. Sentaram-se à mesa da sala. Inês trouxe chá, tostas e umas latas pequenas.
“O Manuel diz que isto é bom”, diz ela, abrindo as latas e colocando-as na mesa.
“É caviar”, explicou Matilde, “eu também gasto desta marca.”
Manuel não sabia onde se meter. Não abriu a boca o tempo todo. Inês discutia pormenores sobre os filhos. Matilde estava genuinamente interessada em saber. Pareciam dar-se bem.
A campainha tocou. Um dos filhos deles foi abrir. Anunciou uma visita, e Inês foi até à porta. Manuel ouviu-a a falar e percebeu que ia demorar.
“O que é que estás aqui a fazer?”, perguntou, quando percebeu que Inês estava longe e os miúdos entretidos a ver televisão.
Matilde serviu-se do caviar, do caviar que era DELA.  
“Eu não convivo bem com a falsidade. Queria saber quem tu eras. Agora já sei: és um pulha.”
Manuel não podia refutar o óbvio.
“Vais dizer-lhe?”, perguntou ele, o coração aos saltos.
“Tem calma. Eu sei o que custa um lar desfeito. Creio que podemos chegar a um acordo. Se me responderes a uma pergunta”
“Diz”, disse ele, enquanto ouvia a Inês a dar uma gargalhada histérica.
“Tu sentes-te atraído por mim? Já sei que amas a Inês. Mas é importante, para mim, saber isto. Eu não vou contar nada, qualquer que seja a tua resposta.”
Manuel disse que sim. Não a amava, mas sentia uma atracção forte por ela.
“Muito bem. Eu consigo viver sozinha, mas não absolutamente sozinha. E gosto muito de ti, muito mais do que qualquer outro namorado que tive, desde que o palhaço do meu marido me abandonou. O acordo é este.”
Matilde explicou o acordo, em voz baixa, pressentindo o regresso de Inês. Manuel ficou de pensar.

No fim do lanche, Manuel ficou aliviado ao ver as curvas sedutoras da Matilde a sair de casa. Inês esperou que ela desaparecesse na rua, e olhou furiosa para ele. Nada que ele já não esperasse.
“Eu não sei o que se passou aqui, mas esta serigaita não é tua amiga, coisíssima nenhuma. Ai de ti se trazes alguma amante cá para casa outra vez. Não me importa o que faças com ela: esta é, e será sempre, a nossa casa. Eu sou, e serei sempre, a tua mulher.”
Novamente, Manuel não conseguiu refutar o óbvio. Nunca mais Inês ouviu falar em Matilde, que se mudou para Lisboa e arranjou por lá um trabalho para o Manuel. O trabalho de sonho, que ele sempre ambicionara. Inês, no entanto, não queria saber em ir viver para Lisboa.  Ao dia de semana, Manuel vivia secretamente em Lisboa com a Matilde, e vinha ao fim de semana para casa.

E viveram, os três, estranhamente felizes para sempre.




segunda-feira, 28 de maio de 2012

Mais uma página em BRANCO


Mais uma página em BRANCO
Bolas, mais uma página em BRANCO, e agora? É do caraças. Toca a inventar uma personagem - branca, como a página. Mas também poderia ser negra, azul ou às pintinhas. No dia em que o milímetro de epiderme definir a pessoa pelo seu todo, as galinhas terão dentes, e pelo mesmo motivo: o da estupidez, pura e dura. Mas adiante. A minha personagem chamar-se-á Pedro. Tem um pequeno escritório de contabilidade, vive sozinho num apartamento normalíssimo. Aliás, toda a sua vida é absolutamente normal, tão normal que ele tem a impressão de não ter vida. Talvez seja essa a razão dele não conseguir ter um relacionamento mais estável: a sua insustentável normalidade de pessoa normal, heterossexual assumido, algo quadrado nas atitudes. Gosta de música dos anos 70 e 80, abomina o que é tocado nas discotecas e bares. Por essa e por outras, Pedro sente-se sozinho e tem tendências para a depressão. Até brinca com isso: “Mais deprimido do que eu, só mesmo a situação económica do país”, matuta ele, enquanto termina mais um modelo 22. Mas ainda mais adiante: Pedro está apaixonado. Descobriu há pouco tempo, e mudou completamente o seu mundo cinzento. A culpada chama-se Céu Vermelho. Não, não é brincadeira. Ele está apaixonado por um perfil anónimo que habita no seu Facebook. Nunca viu sequer uma fotografia dela, mas todas as conversas que tiveram deu-lhe essa certeza, a certeza de ter conhecido a sua alma gémea. Não se trata apenas da concordância de gostos, mas também a concordância nos maus gostos, ainda mais importantes. Os dois gostavam das mesmas coisas, coisas essas que as outras pessoas pensavam não ter valor absolutamente nenhum. Foi com espanto, por exemplo, que Pedro descobriu que Céu Vermelho tinha, como ele próprio, um fascínio pelos filmes pornográficos do início dos anos 80. Nunca tinha conhecido uma mulher que gostasse daquilo, mas Céu Vermelho gostava, e isso tinha feito o clique: Pedro passou o seu estado civil para SOLTEIRO, MAS APAIXONADO. Quando chegou a essa conclusão, passou a tentar, de todas as formas, encontrar-se com ela. Sabia que viviam na mesma cidade. Sabia que passavam pelos mesmos sítios. Mas ela não queria encontrar-se com ele. Continuava a mesma presença indefinida no seu Facebook. Se calhar, pensava ele, talvez fosse um fantasma. A rede social estaria habitada por fantasmas: almas gémeas não corporizadas, virtuais. Comentários seguintes deram-lhe, no entanto, pistas do contrário. Céu Vermelho conhecia-o pessoalmente. Sabia os seus hábitos. Isso limitava o seu âmbito de procura: do mundo, passou à cidade onde vivia, depois delimitou a zona da cidade, as ruas, até que finalmente chegou à conclusão, certa e definitiva, de que costumava ir ao café onde tomava o pequeno-almoço todos os dias. A partir desse momento, passou a observar tudo e todos no café: clientes, empregadas, baixas, magras, gordas, obesas, altas. Todas eram escrutinadas, e, por um motivo ou outro, postas de lado. Havia no entanto uma empregada por quem ele tinha especial fascínio. Talvez fosse pela sua forma simples de ser, pela sua simpatia genuína. Mas havia um senão: ela namorava. Seria a sua alma gémea comprometida? Que desperdício de gemelaridade. Ela não dava pistas, mesmo assim, pelo que ele abandonou a procura.
            “Desisto”, escreveu ele no chat.
        “Desistes facilmente. Eu bem vejo que tu procuras. Mas não procuras no lugar certo”, foi a resposta, e ela não voltou a tocar no assunto.
         Não existe um lugar certo para se procurar aquilo que não se sabe que se procura. Entretanto, Pedro conversa cada vez mais com a empregada do café, quando esta está sozinha. É uma conversa estranha – ele a beberricar um café horrível (porque a simpatia da empregada era inversamente proporcional ao seu talento para tirar cafés), ela do outro lado do balcão a fazer coisa nenhuma, sempre em movimento, para que pareça estar a trabalhar à vista das câmaras que o patrão instalara. O assunto veio à baila quando ele se sentiu mais à vontade para falar dele:  perguntou-lhe abertamente se ela era a pessoa que usava a alcunha de “Céu Vermelho” no Facebook. Ela disse que não. Nem tinha Facebook. “E o que lhe faz pensar que é uma mulher?”, perguntou ela. Ele reconheceu que ela tinha razão. A sua alma gémea, fantasma da Internet, ou o que quer que fosse, nunca se tinha assumido como mulher, nem muito menos como homem. Mas sabia que ela(e) ia àquele café. As conversas entre ele e a empregada do café continuaram, tornaram-se mais frequentes e mais profundas. Ela não era a empregada de café típica. Aluna de letras, tinha sido obrigada a sair da universidade por não poder pagar as propinas – mas mesmo assim conseguia manter o encanto e o bom-humor. Concordou em tentar descobrir quem era Céu Vermelho. O Pedro abanou a cabeça, olhou para ela e disse-lhe para não o fazer. Para quê procurar quem não queria ser encontrado, se o que ele queria estava à sua frente? 


Pseudo-epílogo

Só muito mais tarde, já depois de morarem juntos, é que a empregada do café, a futura Sra. Pedro, lhe revelou a mentira. Céu Vermelho era ela, mas nunca acreditaria num homem que se apaixonasse por uma presença anónima numa rede social. Durante meses ela dera pistas do que sentia, mas ele não lhe prestava atenção. Esse Pedro de antigamente era bem burro, comentou o Pedro de agora, com a certeza de que, desta vez, seria feliz.

domingo, 20 de maio de 2012

Destino




Era o seu destino, aconteceu naquele dia. Tinha planeado ir a outro sítio, mas os amigos levaram-no aquele parque de diversões, que ele nem sabia que estava aberto. Mas era o seu destino ir lá, naquele preciso dia. Divertiram-se como era hábito deles, depois dispersaram-se. Ele, ao contrário dos outros, não namorava com ninguém do grupo. Aliás, estava, como ele costumava dizer, entre dois amores, só que começava a desesperar com a espera.

Viu então um cartaz que lhe chamou a atenção. “Veja o seu futuro”, podia ele ler no cartaz. Ele, que nunca acreditara nessas coisas, resolveu deixar as suas descrenças para trás e entrou na tenda, sentindo logo o intenso cheiro a algo que ele resolveu não perguntar o que era. A bruxa, de Iphone na mão e bola de cristal em cima da mesa, olhou para ele e disse-lhe, simplesmente: “Um momento, que estou a actualizar o meu perfil no facebook”. Ela escreveu uma mensagem, ou pareceu estar a escrever, fez um sorriso estranho, e olhou para ele.

- Vejo que pretende ver o seu futuro.

“Uau”, pensou ele, “ela é mesmo boa. Nunca pensaria isso. Talvez viesse comprar costeletas.”

- Prefira carnes brancas. – disse ela. E ele sentiu um arrepio na espinha e tentou não pensar em nada. Já estava arrependido de ter entrado ali.

- Não há nada a temer, à excepção da verdade – disse ela, olhando para a bola de cristal. – Ou se calhar até há.

- Vou morrer? – perguntou ele.         

Ela disse que sim.

- Mas todos morremos. Consegue ver quando vai ser? Eu gostava de ter tempo para ver os meus filhos crescer.

Ela olhou para ele com preocupação. Ele ficou aflito.

- Então, eu aconselhava que se despachasse, porque só tem 24 horas de vida – sentenciou ela.

Ele saltou imediatamente da cadeira.

- Você está doida! – gritou ele, saindo da tenda. Depois, apercebeu-se de que não tinha pago, e voltou para trás. Ela estava à espera dele, com a mão preparada para receber o dinheiro.

“Vou morrer nas próximas 24 horas”, pensou ele. “Ela está doida!”

Mas, mesmo pensando que ela pudesse estar doida, ele, que não contou a ninguém o sucedido para não alarmar ninguém, passou a ter cuidado com tudo e com todos. Não queria correr riscos absolutamente nenhuns. Esperava sempre que os carros parassem antes de passar na passadeira, evitou comer fora de casa, evitou insultar os outros condutores enquanto conduzia, se via um gato preto afastava-se, e, se via uma escada, rodeava-a. Foram as 24 horas mais aborrecidas que ele tinha vivido, sem correr riscos absolutamente nenhuns.

Voltou então à feira, quando estava quase a completar o prazo. Entrou na tenda quando faltavam poucos minutos para as 24 horas, e disse à vidente: “Como vê, ainda estou vivo.”

A vidente olhou para ele, muito séria, pegou na bola de cristal e atirou-a à cabeça dele, que caiu inanimado no chão.

“Eu não gosto que me contradigam”, foi a última coisa que ele ouviu.


sexta-feira, 18 de maio de 2012

O meu Novo EU

Quando vi no jornal a notícia, nem queria acreditar


O Meu Novo EU



Q
uando vi no jornal a notícia, nem queria acreditar. Era aquilo que eu procurava: “Saia de si próprio, mude de vida. Seja outro.” Era aquilo, sem tirar nem pôr. A Laura não se queixava, mas eu invejava secretamente a elegância e o aspecto dos outros. Queria deixar de usar os óculos grossos, de ser baixo, gordo e calvo. E músculos, queria ter músculos, não aquela massa amorfa de banha. A Laura não se queixava, mas eu sim. E agora aquele anúncio. Liguei de imediato, tão imediato que nem dei pelo facto de ter pegado no telemóvel e marcado o número. Do outro lado foram muito simpáticos e marcaram uma entrevista, como qualquer outro vendedor, quando pretende marcar uma entrevista para vender o que quer que fosse, e eu queria comprar – queria MUITO comprar um outro EU.

A entrevista correu bem. Explicaram-me que era um processo que estava na fase final dos testes, pelo que seria bastante barato. Ficaria a pagar uma mensalidade.

“E o que acontece se não puder pagar?”, perguntei eu. Eles responderam que me devolviam o meu antigo-EU. “Está bem, então”, disse eu, radiante, e sem querer saber o que eles iriam fazer com o meu antigo-Eu; mas eles explicaram-me o processo: o meu antigo-EU, biológico, seria colocado num congelador, enquanto que a minha personalidade e memórias seriam passadas, na íntegra, para um corpo sintético, absolutamente igual a um corpo biológico, só que sem a possibilidade de ter filhos (a Laura também não podia ter filhos, pelo que já tínhamos pensado em adoptar); além disso, seria eterno. Viveria para sempre. Essa possibilidade interessou-me de imediato: uma eternidade com um corpo decente, em vez de uma vida limitada com este corpo defeituoso. Aceitei de imediato. Faria uma surpresa à Laura com o meu corpo novo, um presente de aniversário (já lhe tinha comprado coisas mais caras, afinal).

Fizeram-me um questionário sobre o corpo que preferia. Olhos? Azuis. Cabelo? Castanho. Altura? 1 metro e oitenta.  Sexo? Masculino XXL. À medida que completava o questionário -parecia que estava na fila do McDonalds para escolher as opções do menu McEU-,  cheguei à conclusão que ficaria absolutamente perfeito.

Perfeito.

Assinei o contrato e paguei o sinal de entrada. Demoraria um mês a ficar pronto. Fiquei todo contente. Escondi todo o processo da Laura, e continuámos a nossa vidinha de sempre, sem lhe referir o facto de que iria ter uma versão renovada de MIM. Um MIM 2.0, muito melhor. Perfeito. Devastadoramente atraente. Só para ela.

Aquele mês demorou muitos meses a passar, até que, finalmente, o dia chegou. Observei o meu novo EU deitado, inerte, e senti-me orgulhoso. Eu iria passar a ser assim. Deitei-me e fui adormecido, de forma a ser feita a passagem das memórias e da personalidade.

Acordei e abri os olhos de imediato. Apercebi-me, imediatamente, de que estava diferente. Via, cheirava e ouvia muito melhor. Levantei-me e tentei dar alguns passos, sem grande dificuldade. Ainda vi levarem o meu corpo antigo (e parecia realmente feio e disforme). Vi-me ao espelho. Tinha realmente um bom aspecto.
Mas.

Havia sempre um mas, bem grande por sinal. A minha cara.

Observei-a mais de perto, ao espelho.

“Porque é que não consigo sorrir?”, perguntei, tendo logo outro susto ao ouvir a minha voz. Era fria, seca, muito diferente da minha voz antiga, bastante quente. Laura gostava da minha voz. Responderam-me que podiam ajustar a voz, e que os músculos da cara iriam ao sítio num par de dias.

Acreditei neles. Saí do edifício convencido de que Laura iria ter uma boa surpresa.
Mas não teve, tive muito trabalho para que ela acreditasse que era eu. E ela então disse-me que não gostava. Não era Eu. Ela amava o meu EU antigo, não aquele pedaço de borracha perfeito. Ela gostava das minhas imperfeições, sentia um arrepio na espinha sempre que ouvia a minha voz antiga. Não conseguia amar este novo EU. Perfeito demais. Seria como amar um manequim.

Tive a mesma reacção de toda a gente com quem falei. Apreciavam o meu EU anterior. Preferiam a minha imperfeição. A decisão estava tomada. Mesmo que as outras mulheres se sentissem visivelmente atraídas por este novo eu, a única que eu queria que se sentisse atraída não estava, pelo que a decisão seguinte era fácil de tomar: tirar o meu EU antigo do congelador, e voltar a vesti-lo.

terça-feira, 15 de maio de 2012

Questões

Existem questões
Existem questões
sem resposta, mas não existem
respostas sem questões. Perguntar é uma arte
que se aprende                                   bem cedo,
desde que
         nos aperce-
        bemos das
     diferenças
  e começa-
mos a duvi-
         dar das se-
      melhanças.
   Porque é
  que o mar
  é azul, e a
  terra casta-
  nha, e as fo-
  lhas das árvo-
  res são verdes?
  E por que é que
  no   Outono   as
  folhas mudam  de
  cor e caem? E por-
  que é que o avô é
  tão diferente do
   papá? E onde

          está a avó?
      E para que é esta
coisa que tenho no meio
das pernas? E  porque  é
 que   as   meninas    são  
   diferentes? E como
       é que eu nasci?


E porque é que os papás se casam com as mamãs? Tanta questão, e a escola só dá respostas, quando devia ajudar a fazer as perguntas. Em especial a grande pergunta: papá, já sabes tudo? E eu digo que não, mas sei fazer perguntas. A procura das respostas faz parte do meu caminho.

O Sonho

Penso que dormes

O Sonho



P
enso que dormes. Penso que durmo. Confundo sempre o sonho com a realidade, quando estou Contigo. A música envolve-me. Ninguém a ouve. Só eu. E tu. São músicas diferentes, sempre foram; até ao momento em que a ouvimos juntos. Olho para ti. Penso que dormes. Ou brincas, como é teu hábito. Mesmo assim ouço a tua música no contorno suave da tua pele. O leve sorriso revela-te. O olho abre-se. Contempla-me. Sequioso. A música sobe de tom. Toco-te. O mundo desaparece. Só existimos os dois, num abraço, pele com pele, carne com carne. A junção perfeita, ou mais que perfeita. Nada mais existe: és a minha pele, sou a tua carne, o mundo é irrelevante: não existe. O único som que ouço é o da nossa música. Os acordes perfeitos ao acordar. Todos os dias diferentes. Nossos. Não existe mais nada quando eu estou em ti. Nem tu, nem eu. Somos nós. Prolongamos o prazer muito para além do prazer, para não sentirmos, tão cedo, a irrelevância dos corpos, que um Deus cruel separou à nascença e que desejam estar sempre juntos.
Ou terei sonhado? Olho para ti.
Penso que dormes.






sábado, 12 de maio de 2012

A Princesa Valente

A princesa valente







A princesa valente

Uma história de desencantar














Último Capítulo










E o príncipe valente, vencendo o último monstro, libertou a princesa e regressaram ao Castelo, onde casaram e viveram felizes para sempre.











FIM











Epílogo




viveram felizes para sempre, UMA GRANDECÍSSIMA OVA!, PENSOU A PRINCESA, quando se fartou, finalmente, das  constantes saídas do príncipe. Aquela sua carreira de Salvador estava a dar cabo do casamento deles.
Estava farta.
Aquilo eram monstros, monstrinhos e monstrecos, que apareciam de tudo o que era lado.
E a vida sexual deles, quem a salvava? Perguntava-se ela, que desesperava por um filho.
Desanimada, desforrava-se em grandes Farras com as amigas. As bebedeiras eram TANTAS que a sorte dela era o CAVALO saber o caminho para o castelo.
-ENGANA-O! – dizia uma amiga, doutorada no assunto. O marido tinha um par de cornos de tal tamanho, que podia ser usados como bengaleiro.
Mas ela, apesar da distância, tinha apenas uma certeza: AMAVA-O.
E assim passava os seus dias, triste e desconsolada. Sabendo do seu estado, não eram poucos os oportunistas que tentavam a sua sorte. A todos ela dizia a mesma coisa: “Vão ter com a minha amiga, com ela terão melhor sorte. Eu, só penso no meu príncipe.”

Teve então uma ideia .
Não sabia como é que ainda não tinha pensado nisso. Ela era, de certo, princesa para isso e para muito mais. Procurou um soldado de confiança, coisa rara, nos dias que corriam - mas ele tinha sido amigo dela, e, muito embora a princesa fosse a mulher mais bela do reino, nunca trairia a sua amizade, por muito que, secretamente, a amasse.

“Ensina-me a ser valente”, pediu a princesa.

O soldado olhou-a com o seu único olho, e disse: “Mas já sois valente, minha princesa. A mulher mais valente do reino.”

“Então, ensina-me a ser valente como um homem, porque a minha valentia de mulher não me leva a lado nenhum.”, disse ela.       

O soldado, vendo que a vontade dela era grande, começou a treiná-la nas artes da guerra, a manejar a espada, a lança e a besta. E, se no princípio a princesa andava ali às aranhas, sempre a cair e a falhar, rapidamente começou a andar aos leões. A mestria dela era tanta, que 
o soldado já
não conseguia
ganhar-lhe.
Aconteceu que, a pedido da princesa, eles treinavam numa gruta perto do castelo. Os lavradores ouviam os barulhos dos gritos que vinham da montanha, e convenceram-se de que havia um monstro a habitar nela.
Com medo de assustar a princesa, falaram com o alcaide, que mandou secretamente chamar o príncipe, porque não queria, também ele, alarmar a princesa.
O príncipe chegou, alguns dias depois, secretamente, porque também ele não queria alertar a princesa. Nem o monstro.



A
peou-se junto da entrada da caverna, tirou a sua melhor espada e o escudo do alforge, e seguiu pelo carreiro que conhecia desde criança. Começou a ouvir os gritos do monstro que, ao contrário dos outros homens, que ficavam paralisados de medo ao ouvir semelhante grito, ainda lhe deu mais vontade de entrar.

Descobriu, rapidamente, a origem dos gritos, que ele conhecia perfeitamente das noites com a sua princesa. Encontrou-a vendada, a lutar com um dos seus soldados de confiança. Fez-lhe um sinal para manter silêncio, e trocaram de posições, passando a ser o príncipe a lutar com a princesa. O soldado, para que ela não estranhasse, continuava a dar recomendações, e ela, embora estranhando a alteração na forma do seu professor lutar, continuava a dar os seus gritos.
  
“Achas que o meu príncipe vai ficar orgulhoso de mim?”, perguntou ela, parando de lutar, arfando, toda suada, mas sem tirar a venda.

“O teu príncipe já está orgulhoso de ti”, disse o príncipe, enquanto lhe tirava a venda dos olhos.


O príncipe reconheceu a sua falha, e a mulher passou a acompanhá-lo nas suas aventuras, até que nasceu o primeiro de muitos monstros. Digo, filhos.
Com quem eles lutaram muito. Digo, amaram.

E foram realmente felizes para sempre.








AGORA, sim, É o FIM.