sexta-feira, 14 de maio de 2021

O edifício

O edifício desenhava-se na noite, ao mesmo tempo imponente e sóbrio. Olhei para os lados, antes de atravessar a rua pela parte menos iluminada. Ao contrário do que era habitual, não se via ninguém - nem pessoas, nem carros. O silêncio incómodo era o meu único companheiro. Sabia os riscos que corria se fosse apanhado pela polícia. O meu pai teria sido contra esta ideia, tal como tinha sido contra a maioria das minhas ideias. Eu era Ateu praticante. Apreciava a prosa profana de Bukowski e a instabilidade poética de Pessoa. Ele, Comunista convicto, tinha como sagrados apenas três livros: a Constituição da República Portuguesa, o Manifesto Comunista e o Novo Testamento. Ao contrário de alguns dos seus co-religionários, aceitava Cristo como o primeiro dos Comunistas. Eu era adepto do Benfica, ele fanático do Sporting, que só não pintou de verde todo o nosso pequeno apartamento de Algés porque a minha falecida mãe bateu o pé. Ex-militar de Abril, lutara por essa mesma liberdade que agora tínhamos perdido, no Estado de Emergência pandémico que atravessávamos. Se eu fosse apanhado na rua, depois da hora do recolhimento obrigatório, teria de pagar uma multa para a qual não tinha dinheiro – por conseguinte, problema resolvido. Se fosse apanhado dentro do edifício que me propunha invadir, seria preso e faria as primeiras páginas dos matutinos. 

Magda esperava por mim na esquina, conforme combinado. Entraria como se eu fosse, tal como ela, um funcionário do turno da noite. Mesmo à luz fraca do candeeiro da rua, conseguia ver o cansaço acumulado no seu rosto. Era uma boa amiga, porque só os bons amigos se comprometem quando estamos desesperados: e eu estava. 

Entrei com ela à socapa, pela porta menos vigiada do edifício. Indicou-me o vestiário. Eu trazia o uniforme num saco de plástico. Lá dentro, um homem trocava de roupa. Cumprimentei-o com naturalidade. Por dentro, o meu coração parecia explodir. Vesti o uniforme e saí do vestiário e segui Magda pelos corredores do hospital. O bulício contrastava com a desertidão do exterior. Ninguém tinha tempo para reparar em mim, vestido, tal como eles, com a bata, a touca e a máscara. Magda indicou-me o quarto onde o meu pai estava ligado ao ventilador, em coma induzido. Banhado em lágrimas, dei-lhe um abraço. O último.

quinta-feira, 1 de abril de 2021

A Estátua Infinita

     O poeta pensa na vida, na sua estranha imobilidade tensa. O pálido sol bate-lhe na cabeça, o vento abana os ramos do carvalho debaixo do qual pararam a sua cadeira de rodas. O poeta ainda é novo, como todos os poetas. O seu pensamento perde-se no infinito, longe do seu corpo atrofiado pela esclerose. Ainda sonha, ao contrário de muitos que abandonaram a luta. Cada dia é um novo dia. Regressa do infinito. Dá um toque no comando da cadeira, que se mexe exactamente cinco centímetros na direcção certa, e a estátua em que se transformou há dez anos mexe-se. Esboça um ténue sorriso. Uma criança passa a correr. Pára. Interroga-se sobre aquele estranho velho, sentado na cadeira, com as finas pernas amaradas uma à outra. O contraste é evidente e emociona o poeta. A poesia e o sonho são as únicas coisas que têm de comum. Imagina uma estrofe. A mais bela de todas. Nela se interliga a vida, o sonho e a vontade de viver. Um sonho infinito, tal como é infinita a vontade de ser. A criança desaparece. Sentado no seu pedestal, o poeta acredita mesmo que nunca terá existido. Não passa de uma miragem num deserto sem gente. 

    A sua atenção prende-se agora num jovem que se senta num banco de jardim à sua frente, a atenção dominada pelo seu telemóvel, num autismo voluntário. O mundo resumido a um rectângulo de 5” na diagonal. O poeta abana a cabeça. Rezaria pelas almas desatentas e pelos destinos perdidos, caso não se tivesse divorciado de Deus aos 15 anos, numa sexta-feira de chuva. O ateu é um triste solitário que só tem diálogos internos com ele próprio. Ouve música. Uma batida constante, irritante, neutra, intoxicante. Pum. Pum. Pum. A alma dilacera-se, desintegra-se a cada pum. Um casal senta-se ao lado do poeta. São pouco mais velhos do que o jovem que levanta o olhar para se fixar no decote avantajado da rapariga. Sempre há esperança, pensa o poeta. O namorado dela não gosta da brincadeira. Insinua uma cena, a rapariga acalma-o, o jovem faz um gesto apaziguador. Nada acontece. A música continua. O poeta percebe que vem da mochila do namorado da rapariga.  Não consegue pensar. Eles riem. Beijam-se. Acariciam-se. Para eles, o poeta não passa de uma estátua, não existe. Refugia-se novamente no infinito. Os ecos da música tornam-se efémeros, distantes. Estranhamente agradáveis. Ele está de pé. No infinito, o corpo obedece a todos os pedidos. A juventude é o infinito, percebe o poeta. Gostaria de conseguir falar para explicar ao jovem casal esta epifania, mas percebe, pelo silêncio, que eles já não estão lá. O poeta percebe que o jovem fixa o seu olhar nele. Vê-lhe o brilho da curiosidade. Há esperança, pensa o poeta, mais contente. 

    A menina regressa, com os pais. Faz uma festa ao passar pelo poeta. Ele sorri. Há algo de puro na infância que perdemos ao longo da vida. O amadurecimento é uma armadilha, um logro. A velhice uma fraude. A infância é a única fase das nossas vidas onde somos, realmente, nós próprios. 

    Viemos do pó e, no final, somos todos transformados em poeira cósmica. No infinito. 


Jorge Santos
1 de Março de 2021