sexta-feira, 3 de novembro de 2023

O inferno do meliante Pacheco

Foi em pleno inverno, no reinado de el-rei D. Dinis, que Frei Vicente se fartou das vilanias do meliante Pacheco, que atazanava as gentes da sua terra, lá prós lados de Coimbra. Munido de artes esquecidas, que o mandariam para a fogueira em menos tempo que o diabo levava para esfregar o olho, Frei Vicente mandou o bandido para o Inferno. Convencido do seu feito, foi comemorar com um bom jantar, dado que a gula era o seu maior defeito. Pacheco, no entanto, enganou-se no destino e, como as malas nos aviões, foi parar a outra parte. Viu-se de repente de muita gente cercado. Que inferno seria aquele? Labaredas, nem vê-las. Mas Belzebus, Capetas e Demos havia ali com fartura, cada um mais estranho do que o outro. E que línguas eles falavam? Pacheco pouco pescava do que o Demo ali falava. Pareciam curiosos pela sua aparição. Alguns, mais risonhos, colocavam moedas a seus pés. Outros batiam palmas. Pacheco apanhou as moedas. Que estranho lugar era aquele onde o dinheiro nascia no chão? E que pequena moeda era aquela? Euro? 2023? Felizmente havia uma língua conhecida. Foi em inglês que num café da Baixa de Coimbra pediu pão, mas logo descobriu que tantas moedas que tinha não chegavam para o pagar. E o empregado, apercebendo-se da sua desorientação, foi a correr contar ao patrão, e Pacheco em três tempos estava na prisão. Contou logo a sua história, omitindo ser ladrão. Tinha sido mandado para o inferno pelo Frei Vicente, que o Demo o tenha como sua meretriz. Pediram-lhe documentos, ele mostrou os bolsos vazios. Não era ninguém, explicou depois ao juiz. Mas todos têm de ser alguém, respondeu o magistrado. Começou então o tormento, e foi tanta a burocracia, que Pacheco para ser pessoa se sentiu um verdadeiro jumento. Seria aquele o verdadeiro inferno, de caos encapotado, onde se corre toda a vida para se chegar a parte nenhuma? Depois de deixar de ser ninguém, Pacheco decidiu ser alguém. Pôs de parte as suas artes de meliante e foi procurar trabalho. Analfabeto, sem perceber a sua própria língua, sem habilitações de qualquer espécie, rapidamente se cansou e tentou voltar a ser ladrão. Cedo percebeu que em 2023 até para ser meliante é preciso ter talento. Viu tanta sacanice, tanta corrupção, que depressa se fartou. Resolveu então estudar. Aprendeu a ler e a escrever. Passou anos na escola. Riu-se dos erros da História, mas não falou disso a ninguém, para não dar parte de maluco. E quando finalmente se viu com o canudo na mão, sabedor de todas as leis, enveredou pela política, encontrando a sua vocação.