sexta-feira, 3 de novembro de 2023

O inferno do meliante Pacheco

Foi em pleno inverno, no reinado de el-rei D. Dinis, que Frei Vicente se fartou das vilanias do meliante Pacheco, que atazanava as gentes da sua terra, lá prós lados de Coimbra. Munido de artes esquecidas, que o mandariam para a fogueira em menos tempo que o diabo levava para esfregar o olho, Frei Vicente mandou o bandido para o Inferno. Convencido do seu feito, foi comemorar com um bom jantar, dado que a gula era o seu maior defeito. Pacheco, no entanto, enganou-se no destino e, como as malas nos aviões, foi parar a outra parte. Viu-se de repente de muita gente cercado. Que inferno seria aquele? Labaredas, nem vê-las. Mas Belzebus, Capetas e Demos havia ali com fartura, cada um mais estranho do que o outro. E que línguas eles falavam? Pacheco pouco pescava do que o Demo ali falava. Pareciam curiosos pela sua aparição. Alguns, mais risonhos, colocavam moedas a seus pés. Outros batiam palmas. Pacheco apanhou as moedas. Que estranho lugar era aquele onde o dinheiro nascia no chão? E que pequena moeda era aquela? Euro? 2023? Felizmente havia uma língua conhecida. Foi em inglês que num café da Baixa de Coimbra pediu pão, mas logo descobriu que tantas moedas que tinha não chegavam para o pagar. E o empregado, apercebendo-se da sua desorientação, foi a correr contar ao patrão, e Pacheco em três tempos estava na prisão. Contou logo a sua história, omitindo ser ladrão. Tinha sido mandado para o inferno pelo Frei Vicente, que o Demo o tenha como sua meretriz. Pediram-lhe documentos, ele mostrou os bolsos vazios. Não era ninguém, explicou depois ao juiz. Mas todos têm de ser alguém, respondeu o magistrado. Começou então o tormento, e foi tanta a burocracia, que Pacheco para ser pessoa se sentiu um verdadeiro jumento. Seria aquele o verdadeiro inferno, de caos encapotado, onde se corre toda a vida para se chegar a parte nenhuma? Depois de deixar de ser ninguém, Pacheco decidiu ser alguém. Pôs de parte as suas artes de meliante e foi procurar trabalho. Analfabeto, sem perceber a sua própria língua, sem habilitações de qualquer espécie, rapidamente se cansou e tentou voltar a ser ladrão. Cedo percebeu que em 2023 até para ser meliante é preciso ter talento. Viu tanta sacanice, tanta corrupção, que depressa se fartou. Resolveu então estudar. Aprendeu a ler e a escrever. Passou anos na escola. Riu-se dos erros da História, mas não falou disso a ninguém, para não dar parte de maluco. E quando finalmente se viu com o canudo na mão, sabedor de todas as leis, enveredou pela política, encontrando a sua vocação.

quarta-feira, 11 de outubro de 2023

O monstro precisa (mesmo) de amigos

 Eu nasci sem entender
A forma certa de viver
Até que a vida me ensinou
(Ornatos Violeta)


João regressava a casa com aquilo que se podia chamar de “humor de cão”. Conhecia a expressão, mas desconhecia a sua origem. Todos os cães que conhecia tinham mais sorte do que ele e mesmo os que viviam na rua tinham a felicidade de conhecer a liberdade. Tinha doze anos, estava no sétimo ano de uma escola básica na Maia. Era pequeno para idade e desajeitado. Na escola os mais velhos e até os mais novos implicavam com ele. Hoje tinham ido mais longe e rasgaram-lhe o casaco. O seu único casaco. Não tinha dúvidas do que ia acontecer quando chegasse a casa. 

As coisas eram diferentes quando a mãe estava em casa, mas agora já não estava em casa. Fugira de casa e desaparecera. Estava há dois anos sozinho com o pai. Os piores anos da sua vida, o que é uma coisa terrível de se pensar quando se tem apenas doze anos. Era mais feliz antigamente, com as discussões constantes? Não, mas tinha saudades de estar com a mãe, de ir com ela para o parque e comer um gelado – sempre dos mais baratos, porque o dinheiro sempre faltou naquela casa. Agora com o pai de baixa médica por motivos de saúde, não havia dinheiro para nada. O casaco tinha sido oferecido e o João gostava dele, mesmo parecendo um anão com ele vestido. Era quente e estava a borrifar-se para o que os outros pensavam. 

Entrou no prédio num passo lento. O elevador estava avariado, pelo que subiu os quatro andares. Parou algum tempo na porta do apartamento, indeciso entre ir para casa e fugir. Se calhar era o que fazia de melhor. Encheu o peito com a pouca coragem que lhe restava e abriu a porta. A televisão debitava futebol a altos berros. Cheirava a vomitado. O João apressou-se a ir para o quarto, mas o pai apanhou-o a meio. Tinha um sexto sentido para os problemas. Era grande e forte. Os braços tinham quase a grossura da cintura do João. Viu o rasgão no casaco e a chapada atirou o menino para o chão. Não adiantava explicar. O bafo a cerveja sentia-se no corredor, mas o pior era o ódio que o João lhe via nos olhos. Como se ele tivesse culpa de existir. Correu para o quarto, subiu para a cama e chorou.   

No dia seguinte não tinha aulas. A bochecha estava roxa, pelo que ele não queria estar com ninguém. Também não podia fazer queixa. Não tinha mais ninguém. Deambulou pela cidade, evitando as outras pessoas. Deu consigo em frente à casa. Não tinha outro nome. Era a “casa”. Estava fechada há muito tempo. Dizia-se que habitava nela um demónio e que por vezes desapareciam pessoas. Ele sentiu-se enfeitiçado pela casa. Esgueirou-se por um buraco no portão, pequeno demais para uma pessoa adulta, mas ele era pequeno. Atravessou o jardim, que agora não passava de mato. Arranhou-se todo, mas sabia que tinha de continuar. A porta da frente estava entreaberta. Foi com uma maior certeza que empurrou a porta do que tinha aberto a porta de casa no dia anterior.  Sentia-se estranhamente calmo, como se pertencesse àquele lugar. Espirrou com o pó. Havia partes do tecto que tinham caído, pelo que podia ver o céu coberto de nuvens. Subiu as escadas, que rangiam a cada passo. Sentia que no andar de cima estava alguma coisa que o chamava. O demónio, talvez? No fundo do corredor havia uma porta fechada. Forçou a maçaneta e a porta abriu-se. O quarto estava escuro. O que aconteceu a seguir foi rápido. Mãos projetaram-se para fora do quarto e puxaram-no para dentro. Sentia os pulsos a latejar de dor, mas não gritou. A coisa estava ali dentro. Conseguia vê-la quando os seus olhos se habituaram à penumbra. Grande, grotesca. Olhos vermelhos famintos, cheiro pestilento. Um barulho de respiração que enchia o quarto, a boca aberta cheia de dentes e exalando um hálito nojento. 

E o João continuava calmo. A criatura parou. 

– Não tens medo de mim? – Perguntou o demónio, numa voz gutural.

O João abanou a cabeça e explicou: estava farto de ter medo. Aquilo não era pior do que o seu dia-a-dia. O monstro largou-o e coçou a cabeça. Era novidade para ele. Normalmente as pessoas tinham medo e fugiam, ou conseguia apanhá-las antes de fugirem e serviam de snack. Mas não ter medo dele? Aquele inseto falante não tinha medo dele? Aqueles eram tempos terríveis, pensou. Devia começar a pensar na reforma. Será que a Segurança Social atendia demónios? 

– Tens nome? – perguntou o João. Aquela era outra novidade. Normalmente o demónio não perdia tempo nem a falar nem a brincar com a comida.

– Não.

– Sou o João. Vivo com o meu pai a dois quarteirões daqui.

– Ele deve estar preocupado contigo.

– Há pais que não se preocupam com os filhos. Se soubesse que eu tinha morrido, provavelmente fazia uma festa, mas não dizia a ninguém para continuar a receber o “abrono”.

– “Abono”, João.

– Tu ias comer-me?

– Sim.

– Porquê? O que é que eu te fiz?

– Não fizeste nada. Tinha fome.

– E agora?

– Agora continuo com fome, mas já não te vou comer.

– Porquê?

– Porque és meu amigo. E porque tens coragem.

O João riu-se. Nunca ninguém tinha dito que ele tinha coragem. Mas afinal ali estava, a dar gargalhadas com a besta. Foi-se embora com a promessa de voltar e voltou. Trazia carne que pedia nos talhos para dar ao seu cão. “De que raça é?”, perguntavam, e ele dizia que era um rafeiro grande. O demónio deleitava-se com a carne. Isso impedia-o de comer pessoas, mas ele nunca tinha gostado dessa parte da sua natureza. O ser humano já tinha um fardo demasiado pesado com as suas breves vidas, a lidar com a precariedade no emprego, o custo da habitação e a falência do Sistema Nacional de Saúde. Ainda tinham de lidar com outros demónios? Não, disse o demónio. Agora tinha um amigo. Um único amigo, e isso bastava-lhe. 

Foi numa sexta-feira. O pai até tinha estado bem a semana toda, mas começou a beber na quinta-feira e na sexta-feira mal se aguentava de pé. Foi por um motivo qualquer que o João recebeu a estalada. Mas ele não fugiu como costumava fugir. Deitou um olhar desafiador ao pai e foi para o quarto num passo lento. Isso irritou de sobremaneira o pai, que foi atrás dele. A porta fechada à chave foi aberta ao pontapé. Tirou o cinto e bateu uma e outra vez. O João tremia. Sentia a dor mas mantinha-se calmo.

Foi à quarta chicotada que uma força imensa atirou o pai para fora do quarto. Ele ali estava, o demónio. Olharam os dois para o corpo inerte do pai do João. 

– Posso comê-lo? – perguntou o demónio.

O João ainda hesitou antes de recusar. Havia muitas crianças na sua situação que tinham amigos imaginários, mas quantos teriam demónios guarda-costas?  

sábado, 3 de junho de 2023

Tempo perdido

Peço desculpa por não revelar o meu nome. Este desabafo vai ser anónimo. A última coisa que eu quero é ter a CNN ou a CM TV a querer encher tempo de antena com o meu estranho caso. Adiante.

Sou talvez a pessoa mais perdida que alguma vez existiu. Por pior situação em que as outras pessoas perdidas se encontrem, sabem sempre que o dia seguinte será apenas outro dia, a menos que faleçam pelo caminho. Eu não. Por algum motivo que desconheço, a normal sequência temporal é algo que não me assiste. Sempre que acordo estou com uma idade diferente, numa época diferente da minha vida.

Acordar com trinta e cinco anos, ao lado de uma mulher bonita, até poderia ser interessante se, na realidade, não tivesse apenas 12 anos. Estão a ver o drama? E quando acordo nem tenho uma ideia precisa do que aconteceu, do meu passado. Finjo-me de tolo, fujo das pessoas. O que quero, na realidade, é pegar na minha consola e jogar. O que é isso de IRS? E o trabalho? Quem inventou os horários? Pensava que a escola era um tédio, mas não passava de uma preparação para o que vinha a seguir: uma escola diferente, sem professores mas com chefes. Na realidade, a diferença não era muita.

Chegava a casa física e psiquicamente arrasado, depois de conduzir hora e meia (esta até seria a parte mais divertida, não fosse o fato de estar a maior parte do tempo parado numa interminável fila de trânsito). Beijava a minha mulher (outra parte divertida, que me deixava completamente eufórico), e cumprimentava as minhas duas filhas gémeas, que tinham, exatamente, a minha “verdadeira” idade. Por vezes jogávamos os três consola, e eu ganhava, para espanto delas. No entendimento das duas, os cotas não podiam saber jogar, nem gostar de hip-hop, nem contar anedotas, nem dizer palavrões. Essa era a melhor parte, o olhar de espanto de quem amamos. No dia seguinte acordava no momento do nascimento delas, de quando as beijei pela primeira vez.

Tenho apenas duas dúvidas neste meu estranho caso:

(1) Porque é que isto me aconteceu? (Será que sou o único a padecer este mal?)

(2) Como é que ainda não enlouqueci. Passado algum tempo, passei a achar normal acordar com uma idade diferente.

Ainda me lembro da primeira vez que aconteceu. Adormeci com 12 anos, acordei com 24. Ainda vivia na mesma casa, mas estava na universidade. Num único dia tive de lidar com a mudança do meu corpo, uma voz desconhecida, a ver as coisas de outro ângulo, mais elevado (não muito, infelizmente). Imaginem passar a adolescência num único dia. Se calhar até não perdi nada. Por algum motivo, aceitei com alguma naturalidade a situação. Tenho de reconhecer que tem algumas coisas boas: dificilmente os dias eram iguais e conseguia satisfazer aquele desejo estúpido que as crianças têm, de querer desesperadamente ser adultos. Descobri que esse desejo não passava de um logro: a infância é, de longe, a melhor das idades.

No dia seguinte, quando esperava continuar com 24 anos, acordei com 73 anos. Vivia numa casa maior, numa zona dos arredores de Braga. Imaginem acordar com uma mulher que tinha idade para ser minha avó. Fiz-me de desorientado. Levantei-me e notei que o meu corpo não respondia como costumava responder. Era como se vestisse um corpo para além do meu corpo. Estava gordo, careca e míope. Ela levantou-se lentamente. Percebi que o tempo também lhe tinha cobrado o seu preço. Sorriu-me e no seu olhar de cumplicidade percebi o que realmente importava. Depois vieram as surpresas. Tinha dois netos, lindos de morrer. Foi um dia estranho, cheio de emoções profundas.

De manhã acordei ainda mais velho e estranhamente sozinho. Sabia a razão. Mitigava a viuvez com as saudades do sorriso dela. O dia foi um interminável suplício. Fui para a cama arrastando comigo o peso de uma solidão incomensurável.

Quando acordei, estava na mesma sozinho, mas era uma solidão diferente. Era mais novo. Talvez tivesse cinquenta e poucos anos. A recordação da separação recente tomou conta do meu espírito. Uma questão de egos, uma discussão por motivos banais. Saí de casa e perdi-me nas ruas da cidade que, no fundo, desconhecia. Onde estavam os prédios e as ruas da minha infância? E o que é que isso importava? Apenas importava que ela fizesse parte da minha vida, e eu dela. Tudo o resto era acessório. Resolvi contar-lhe tudo, a razão da minha constante desorientação. Só num aspeto tinha certeza: amava profundamente a minha mulher e as minhas filhas. Estava disposto a fazer tudo. E tinha de o fazer num único dia, antes de acordar numa época diferente. Os problemas resolvem-se, não se adiam. Especialmente quando não nos podemos dar ao luxo de procrastinar. Estava a ficar maluco. Corri desesperadamente para onde sabia que ela estava. Entrei no prédio onde trabalhava. A fila para o elevador era gigantesca e não queria esperar. Subi pelas escadas os dez andares. Bati na porta do gabinete dela. O coração num galope tremendo. Não precisei dizer nada. Não conseguia. Caí redondo no chão e, segundo dizem, fui levado de emergência para o hospital. Acordei no dia seguinte no hospital, ligado às máquinas. No peito sentia a pressão de uma pedra gigantesca. Ela veio ver-me. Sorriu-me. No olhar via-lhe a preocupação sincera e evidente. Queria contar-lhe tudo, mas não podia falar. Não precisava. Para que servem as palavras quando o amor chega para dizermos tudo o que temos para dizer? No dia seguinte,continuava no hospital. O que quer que os médicos tivessem feito, curou o meu problema. O meu espírito tem 13 anos. O meu corpo 52. Ela está comigo. Sei o que vai acontecer no futuro, mas não vou contar a ninguém. Tenho num sítio seguro o número do euromilhões que vai sair daqui a cinco anos, dois meses e três dias. As minha filhas não vão ter problemas financeiros. Mas agora, o que realmente interessa é que vou ali brincar com o meu neto. Queria apenas que soubessem o que aconteceu. Pode ser que tenha acontecido a alguém. Se aconteceu, gostava que essa pessoa soubesse que é apenas uma vida diferente, sem tempo perdido.

domingo, 4 de dezembro de 2022

Triplo Oh



Sentado na cama branca do hospital psiquiátrico, Jeremias esperava. Não se podia dizer que mostrasse algum tipo de ansiedade. A quem lhe perguntasse a razão da sua espera, ele responderia apenas com um “ninguém”. Era o utente mais calmo do serviço, quase não precisando da medicação que transformava todos aqueles que por ali passavam em estátuas apáticas, incapazes de sentir qualquer tipo de emoção. Na hora das visitas, observava atento a chegada dos familiares dos outros utentes, respondendo com um sorriso amável a todos os que sorriam para ele. De resto, era conhecido pelo seu comportamento exemplar e afável: sempre que possível, tentava acalmar e ajudar. 

Dele apenas se conhecia o primeiro nome. Não tinha documentos, nem dinheiro, nem família. Trazia apenas a roupa que vestia na altura da sua apreensão pela polícia. Nos bolsos, tinha apenas um pedaço de giz vermelho e um lenço imundo. Para o enfermeiro Simões, era uma verdadeira incógnita. Mesmo que tivesse anos de experiência, e tivesse visto muitos casos semelhantes de sem-abrigo que tinham ido parar à ala masculina do hospital psiquiátrico, alguns deles por vontade própria, para escapar da fome e/ou do frio, Jeremias era um caso à parte. Extremamente educado, calmo, divertido. Sempre pronto a ajudar o próximo. Onde estava o homem furioso que desatara a partir a decoração natalícia do Centro Comercial e que deixara em prantos as crianças com a visão de bonecos do Pai Natal degolados e de renas com as pernas decepadas e de uma destruição sem fim? O homem estava ali, à sua frente sentado na cama. Calmamente à espera por um Godot anónimo. 

“Sente-se bem, Senhor Jeremias?”, perguntou Simões. Jeremias respondeu afirmativamente, com um sorriso aberto. 

“E do que está à espera?”

“Estou à espera que os sonhadores voltem a sonhar, Senhor Enfermeiro Simões. Que dia é hoje?”.

  “23”

“Amanhã é o dia da ilusão. As pessoas tentam redimir-se nas prendas de um ano inteiro de ausências. Ainda se lembra de celebrar o Natal quando era criança, Simões?”

“Sim. Não havia dinheiro. Nunca tinha aquilo que desejava, mas era uma altura mágica. Lembro-me do cheiro a canela e das rabanadas. E dos meus tios que cantavam, felizes. Agora sei que estavam bêbados. Mas fazia parte. Quanto a amanhã, vamos ter a ceia de natal. Não se esqueça.”

Ele riu-se de uma forma matreira. 

“Já não vou estar aqui.”

Simões estranhou a resposta, mas despediu-se e foi à sua vida sem pensar muito no assunto. Se fizesse caso de todas as coisas estranhas que os utentes diziam, desconfiava que em pouco tempo seria um deles.

No dia seguinte, Simões foi acordar Jeremias, tendo bem presente o que este tinha dito. Antes de colocar a chave na fechadura, imaginou encontrar uma cama vazia. Mas ele estava lá. Ainda a roncar como um desalmado. Simões aproximou-se e tocou-lhe no braço. 

“Acorde, Jeremias.”

O utente virou-se para o outro lado. 

“Acorde. Afinal ainda está cá.”

“É hoje?”

“Sim. Hoje é hoje. Véspera de Natal.”

“Então é hoje que me vou embora. As pessoas precisam de mim.”

Simões abanou a cabeça. 

“O Dr. Álvaro ainda não deu alta. E, mesmo que saísse daqui, para onde iria? Lá fora está a chover e faz frio. Vai voltar para a rua, Jeremias?”

“Não estou aqui a fazer nada. Vou-me embora.”

“Fique connosco esta noite. Amanhã falamos com o Doutor.”

Simões saiu, com um sorriso dissimulado no rosto: o médico não poderia dar alta no dia seguinte, porque era feriado. Ele sabia disso, e desconfiava que Jeremias também sabia.

O sem-abrigo levantou-se, mas mantinha a mesma conversa. Foi à casa de banho. Lavou-se. Começou a cantar uma música de Natal no original, em alemão. Num sotaque irrepreensível. 


Stille Nacht, heilige Nacht

Alles schläft; einsam wacht

Nur das traute hochheilige Paar.

Holder Knabe im lockigen Haar,

Schlaf in himmlischer Ruh!

Schlaf in himmlischer Ruh!” 


Vestiu-se e saiu para o corredor branco. Ao contrário do que era seu hábito, quando passava os dias sentado na cama, à espera de algo que teimava em não acontecer, agora andava pelos corredores. Cumprimentava todos os que encontrava, com um ar mais ou menos alienado. Continuava a cantar, com um sorriso aberto nos lábios. Os olhos, outrora lisos de emoção, transformaram-se em duas pequenas estrelas. O seu bom humor todos contaminava, alguns tentavam acompanhar a música com a versão portuguesa. Até os enfermeiros cantavam. Aquilo poderia passar por ser um musical da Disney, mas era apenas mais um dia na ala do internamento masculino do hospital psiquiátrico. 

Simões chegou e viu imediatamente a diferença no ambiente. 

“Estou a gostar de ver, Jeremias. Ainda bem que não foi embora.”

“Ainda bem que AINDA não fui embora. Há pessoas a precisar de mim. Especialmente neste Natal. Já viu como a esperança desapareceu? A angústia das pessoas, o aumento do custo de vida, da miséria? E a guerra, Simões, a guerra. Devia ser proibida a guerra no Natal. E fora dele.”

“Jeremias, nós não podemos mudar o mundo. Pensamos que podemos, mas na maior parte das vezes nem conseguimos mudar os nossos próprios destinos.”

“Já tentou mudar o mundo, Simões?”

“Para ser verdade, nunca tentei.”

“Raios, homem! Nesse caso, como é que sabe que não é possível mudar? Pior: não impeça os outros de tentar mudá-lo! É quase como dizer ao sonhador para não sonhar. Mesmo sabendo que se não sonhar, a pessoa pura e simplesmente morre.”

E foi à sua vida. Durante o dia, Jeremias brincou, jogou, animou. Chegado à noite, juntaram-se todos no refeitório e tiveram a ceia possível. Jeremias era, de todos, o mais animado, não dando mostras da quantidade de medicamentos que tomava. Fizeram uma pequena troca de presentes. Coisas pequenas, camisolas, meias, gorros. Cada um que recebia o seu presente fazia uma festa, era quase como se recebesse um Rolex último modelo. No meio dos risos e das anedotas, Jeremias pediu para ir para o quarto. Simões abriu-lhe a porta, com a noção exacta de que seria a última vez que o faria. Era um pressentimento estranho, algo que sabia dever ser tomado como certo e definitivo. Jeremias despediu-se como fazia todas as noites, desta vez dando parte de cansado.

No dia seguinte, Simões abriu a porta do quarto e deu com a cama vazia. Ou melhor: havia um boneco que Simões reconheceu e enfiou imediatamente no bolso, num gesto dissimulado para que não fosse visível nas câmeras de vigilância dos quartos. Na parede havia uma porta toscamente desenhada a giz. Simões deu o alarme. O diretor pediu para ver o vídeo. Nele via-se Jeremias a entrar no quarto. Simões despede-se e fecha a porta. Jeremias senta-se na cama e espera até às 24h. No último segundo levanta-se, vai até à parede e desenha uma porta, não se esquecendo do puxador. Depois olhou para a câmera e disse adeus. Pousou a mão no puxador desenhado a giz e a porta abriu-se. Do outro lado veio uma luz imensa que fez com que não se visse nada na gravação. Quando desapareceu, levou com ela Jeremias. 

O diretor abanou a cabeça. 

“O que vamos dizer, senhor diretor?”, perguntou Simões. 

O diretor disse apenas: “Ele fugiu. Só precisam saber disso.”

“E quem era ele?”

O diretor não sabia. Tinha suspeitas que mantinha em segredo para não parecer ridículo. Simões foi para casa. No metro, não parava de pensar no assunto. Em cada rosto que via, parecia estar a ver Jeremias. O sorriso aberto, os olhos a brilhar. O Natal fazia aquilo às pessoas. Transformava-as. Só era pena que durasse tão pouco tempo.

No bolso trazia um boneco. Um action man. Exatamente igual ao que tinha pedido quando era criança. E ele sabia que já não estavam à venda. Foi com esse pensamento na cabeça que entrou no apartamento minúsculo onde vivia com Luísa e o filho de ambos, o Lucas, um autêntico dínamo de seis anos e um intenso cabelo vermelho. Simões tirou o boneco do bolso e ofereceu-o ao filho. 

“Gostas?”

“É giro, papá. Quem é que te deu?”

“Foi o Pai Natal.”, respondeu Simões, sem qualquer dúvida. E no sorriso aberto do filho reconheceu o sorriso de Jeremias.

domingo, 4 de setembro de 2022

A metamorfose de José da Conceição



Foi na festa do seu 40º aniversário que José da Conceição tomou consciência de nunca ter deixado que alguém o tratasse por “Zé”. Da mesma forma, e talvez por isso, ainda era virgem. Até chamar de “festa” a festa de aniversário era um exagero: não passava de um simples jantar com a mãe e a tia Januária, uma senhora com setenta e muitos anos que escapava à morte como o cu fugia à seringa.

O José vivia com a mãe, Maria da Conceição. O pai, António da Conceição, foi pedreiro até ao dia em que as costas o traíram. Quando se viu forçado a ficar em casa e a depender da mulher, António foi-se em menos de um ano, entregue a borracheiras que se tornaram lendárias na vizinhança.

José foi para o seminário para regozijo da mãe, beata por vocação. Tinha sérias dúvidas sobre a sua vocação para padre, mas não queria contrariar a mãe, que se sacrificara para o criar quando ainda estava em idade para procurar outros destinos. A única vez que o fez foi quando, poucos anos depois, decidiu desistir do seminário, após chegar à conclusão de que não gostava que lhe dissessem o que pensar, como pensar e onde pensar, a cada instante da sua vida. Deu por isso um desgosto à mãe, prometendo a ele próprio que nunca mais aconteceria na vida. Não se deu conta de que, a partir desse dia, seria a mãe a dizer-lhe o que pensar, como pensar e onde pensar, a cada instante da sua vida. 

Quando concluiu o ensino médio, empregou-se numa firma de construção civil como escriturário. Tinha um horário fixo e trabalho. Raramente falava com os colegas, preferindo ficar em silêncio o dia todo, matraqueando a máquina de escrever. Duas vezes por semana acompanhava a mãe à igreja e cantava no coro. Quando regressava a casa sozinho e era abordado pelas prostitutas, mantinha-se calado ou chegava mesmo a fugir. Tudo o que via na rua era o que a mãe apelidava de podridão e pecado. Preferia fechar os olhos e enterrar a cabeça numa areia virtual, como faziam as avestruzes, deixando que a vida lhe passasse ao lado, escorrendo lentamente, dia após dia, até este momento. Pode dizer-se que, aos 40 anos, José acordou de uma longa e auto-infligida letargia.

Entra em cena Madalena, recém-chegada de outras paragens. Prima de Luzia, namorada de Gastão, primo de José. Mais por brincadeira do que a sério, decidiram juntar os dois, sabendo de antemão que se tratava de duas pessoas de naturezas opostas. Ele, um beato convicto, a pessoa mais quadrada que alguma vez existira; ela, uma artista que vivia do que vendia na rua, um espírito livre. Tinha tido uma série de desgostos amorosos e não procurava ninguém que lhe terminasse a solidão. Vivia com o seu cão e isso chegava-lhe para armar a confusão.

Luzia e Gastão convidaram-nos para jantar em casa deles, inventando um pretexto qualquer. A mãe do José não quis ir, inventando, também ela, um pretexto qualquer. José sabia a verdadeira razão: Gastão e a Luzia não eram casados e já tinham um filho. Viviam, no entendimento da senhora, em pecado e em rota de colisão com Deus, direitos ao Inferno, sem passar pela casa de Partida nem receber 2000, como diziam no Monopólio.

No final do jantar são deixados a sós, apenas José e Madalena na pequena sala do igualmente pequeno apartamento de Loures.

– Estão à espera que nos conheçamos – disse José, para quebrar o incómodo silêncio que se instalara na sala de jantar.

Madalena ri-se. Tem um riso ingénuo, quase infantil. É o riso próprio de quem não tem de prestar contas a ninguém, pensou José.

– São uns queridos. E o José, o que faz?

– Sou escriturário. Agora brinco com janelas no computador. Aquilo dá-me cabo da cabeça. Preferia a máquina de escrever.

– Pois eu escrevo mesmo à mão, no papel que em própria faço. Sou artesã, trabalho com barro, metal e papel. Também pinto, mas não sou grande pintora.

– A minha mãe diz que a arte não é um emprego a sério.

– Não? E tem razão… Não é um emprego, é uma paixão. O José tem alguma paixão?

José ia dizer que não, mas depois voltou atrás.

– Gosto de música. O meu pai tocava acordeão e ensinou-me algumas coisas. Depois que ele morreu, o acordeão é meu, mas a minha mãe não gosta que eu toque.

– Deixe-me adivinhar: a música também não é um emprego a sério?

José sorriu.

– Para além disso, o som do instrumento lembra-lhe o meu pai.

– Portanto, o José não toca porque a sua mãe não quer. Há alguma coisa que o José faça que a contrarie?

José abanou a cabeça. Explicou a saída do seminário e a promessa que tinha feito.

– Ela é a mulher mais forte que conheço.

– Mas o José tem direito a viver a sua vida. Ela já vive a vida dela conforme ela quer e entende. Não tem direito a impedir-lhe as suas paixões.

No regresso a casa, depois de se despedir, o José ia com a cabeça carregada com pensamentos novos e a lembrança do sorriso puro de Madalena. Tudo o que ele gostava de fazer, fazia-o pela mãe. A forma de vestir, de comer, de agir, era tudo à medida da mãe. Ele não passava de uma sombra.  

Decidiu começar a mudança na manhã seguinte, sábado.

Primeiro, recusou acompanhar a mãe às compras. Desculpou-se dizendo que não se sentia bem. Ela estranhou, ficando com a pulga atrás da orelha, mas depois saiu de casa, batendo a porta com desconfiança. José tirou o acordeão da caixa onde estava fechado há três anos e trancou-se no quarto. Sentou-se na cama e pegou no acordeão. Limpou-o cuidadosamente, como o pai lhe tinha ensinado. Depois passou o braço pela alça de couro a cheira a bolor e sentiu os botões de madrepérola. Começou a tocar.

Os primeiros sons foram surpreendentes. Os gatos miaram, os cães dos vizinhos ladraram em coro com os berros de reclamação dos próprios donos. Ele sempre gostara de tocar, o que não significava que o fizesse bem. Afinal, uma paixão significa apenas uma promessa, um contrato emocional – não implica qualquer tipo de milagre. 

Passada uma hora, mais minuto, menos minuto, a mãe chegou das compras e bateu furiosamente à porta fechada do quarto

– José, pára imediatamente que os vizinhos vão chamar a polícia!

– Está bem, mãe.

José parou. Guardou o instrumento na caixa e abriu a porta.

– Desculpe, mãe.

José deu um beijo de reconciliação, mas, na primeira oportunidade, saiu de casa com a caixa do acordeão na mão, apanhou a camioneta para o monte mais próximo, onde só as cabras podiam protestar. Depois de algumas horas a praticar, teve de dar a mão à palmatória: era mau e sozinho nunca evoluiria, pelo que se inscreveu nas aulas de acordeão.

No dia seguinte, parou numa loja de roupa. Chegou a casa num estilo mais desportivo, que o tornava bastante mais novo. A mãe desconfiou logo da Madalena, que, segunda ela, era uma mulher da má vida, uma rameira que queria desviar o filho do caminho da virtude. Na realidade, Madalena era um pretexto para que José regressasse do trabalho pelo caminho mais longo. Duas vezes por semana tinha aulas de acordeão. Abandonou o coro, mas continuava a acompanhar a mãe à igreja.  

Numa tarde,  José pediu a Madalena que o ensinasse a trabalhar o barro.

– O meu avô era artífice. A minha mãe não gosta de recordar isso porque foi o que a minha avó lhe dizia, porque o dinheiro era sempre pouco naquela casa. Mas ele sempre amou a arte. Ensina-me.

– Vais-te sujar, José.

– Não importa… a água limpa.

Houve uma troca de risos. Algumas semanas depois, deram o primeiro beijo e partilharam a mesma cama. Ele tinha a perfeita noção de que estava a pecar. A questão era que o caminho da virtude ele já conhecia, mas nunca o levara a lugar nenhum.

A mãe berrou quando ele decidiu sair de casa. Tentou chamar-lhe a razão, mas ele estava decidido a mudar de vida. Foi viver com Madalena, saiu da empresa, tornou-se artista e músico de rua. Juntos, correram o país de lés a lés. Tiveram o primeiro filho em Reguengos, o segundo no Porto. Em todo o lado conhecia gente, que é o que normalmente acontece quando se escancara a porta para a vida. Agora é conhecido como o Zé do Acordeão e gosta de ser chamado assim.


domingo, 3 de julho de 2022

O Executivo




O Jaguar atravessou a selva citadina num passo rápido, com a segurança própria de quem sabe que a cidade lhe pertence. No interior do habitáculo impecavelmente climatizado, o executivo tinha pressa em chegar a casa, depois de mais um dia de massacrantes reuniões. Ter uma conta bancária com sete dígitos implicava algumas cedências. Sorriu. Um som indicou uma chamada. Uma voz feminina fez-se ouvir no sistema de som, substituindo o Konzert für 2 violinen de Bach. A esposa ia sair novamente com as amigas. A filha estava em Espanha. O filho no Algarve. Era um dos raros momentos em que podia dizer que estava sozinho e, ao contrário do comum dos mortais, o Executivo considerava a solidão como sendo um bem precioso. 

Tinha sido assim desde sempre, sem tempo para nada. Os pais queriam que ele fosse o melhor em tudo. Piano, Inglês, Francês, explicações. Ao fim de semana tinha de os acompanhar nos eventos sociais onde era apresentado às pessoas mais desinteressantes que pensava existirem no mundo. Ao crescer deu-se conta do seu erro: o número de pessoas desinteressantes era infindável, enquanto que as pessoas realmente interessantes era ridiculamente pequeno e raramente consideravam os executivos como pessoas minimamente interessantes. Para as pessoas que o surpreendiam, o dinheiro, o poder, o carro ou a casa eram completamente irrelevantes. No mundo dele, eram essas as únicas coisas que interessavam.  

Chegou ao portão da casa, que abriu pelo telemóvel. Abriu também a porta da garagem, onde normalmente estava o Mercedes da mulher e o BMW eléctrico da filha. Estranhou os espaços vazios, mas era uma estranheza agradável. Reconheceu a falta do vazio na sua vida, tal como tinha notado antes a falta de solidão. Estacionou o Jaguar e saiu. Percorreu o corredor que automaticamente acendia as luzes à sua passagem. Afinal, não estava sozinho, havia outra entidade inteligente em casa. Por mais artificial que fosse a sua inteligência, era sempre diferente do que falar para as paredes. Pelo menos a casa respondia-lhe. 

Percorreu os corredores luxuosos até chegar ao seu destino, uma porta com um teclado numérico. Digitou o código com a mão direita, tapando-a com a mão esquerda como fazia normalmente, não fosse haver uma câmera escondida. Entrou numa divisão relativamente pequena, cuja luz acendeu manualmente. Ali, o técnico que tratara dos automatismos da casa não tivera acesso. Nem sequer a mulher ou os filhos, quanto mais o técnico… Tinha sido indicado no contrato que tinha feito com a esposa. Ele tinha de ter uma divisão da casa só para ele. Tinha de ter direito aos seus segredos. Ela fartara-se de reclamar, mas o Executivo mostrou a mesma fibra que demonstrava nas reuniões dos Conselhos de Administração.  

Tirou a gravata, deixando-a espalhada pelo chão. Isso seria um sacrilégio no entendimento da esposa, bem como a cerveja gelada que tirou do frigorífico. Para ela, só podia haver vinho naquela casa. Cerveja era coisa de gente pobre. Ele sorriu. Depois abriu a garrafa com um isqueiro. Simulou um brinde à esposa e aproximou-se da mesa onde estava uma construção gigantesca feita de Legos. Sentou-se, tirou algumas peças coloridas de uma caixa e, depois de algum planeamento, dedicou-se à sua actividade favorita: a recuperação da infância.

sexta-feira, 14 de maio de 2021

O edifício

O edifício desenhava-se na noite, ao mesmo tempo imponente e sóbrio. Olhei para os lados, antes de atravessar a rua pela parte menos iluminada. Ao contrário do que era habitual, não se via ninguém - nem pessoas, nem carros. O silêncio incómodo era o meu único companheiro. Sabia os riscos que corria se fosse apanhado pela polícia. O meu pai teria sido contra esta ideia, tal como tinha sido contra a maioria das minhas ideias. Eu era Ateu praticante. Apreciava a prosa profana de Bukowski e a instabilidade poética de Pessoa. Ele, Comunista convicto, tinha como sagrados apenas três livros: a Constituição da República Portuguesa, o Manifesto Comunista e o Novo Testamento. Ao contrário de alguns dos seus co-religionários, aceitava Cristo como o primeiro dos Comunistas. Eu era adepto do Benfica, ele fanático do Sporting, que só não pintou de verde todo o nosso pequeno apartamento de Algés porque a minha falecida mãe bateu o pé. Ex-militar de Abril, lutara por essa mesma liberdade que agora tínhamos perdido, no Estado de Emergência pandémico que atravessávamos. Se eu fosse apanhado na rua, depois da hora do recolhimento obrigatório, teria de pagar uma multa para a qual não tinha dinheiro – por conseguinte, problema resolvido. Se fosse apanhado dentro do edifício que me propunha invadir, seria preso e faria as primeiras páginas dos matutinos. 

Magda esperava por mim na esquina, conforme combinado. Entraria como se eu fosse, tal como ela, um funcionário do turno da noite. Mesmo à luz fraca do candeeiro da rua, conseguia ver o cansaço acumulado no seu rosto. Era uma boa amiga, porque só os bons amigos se comprometem quando estamos desesperados: e eu estava. 

Entrei com ela à socapa, pela porta menos vigiada do edifício. Indicou-me o vestiário. Eu trazia o uniforme num saco de plástico. Lá dentro, um homem trocava de roupa. Cumprimentei-o com naturalidade. Por dentro, o meu coração parecia explodir. Vesti o uniforme e saí do vestiário e segui Magda pelos corredores do hospital. O bulício contrastava com a desertidão do exterior. Ninguém tinha tempo para reparar em mim, vestido, tal como eles, com a bata, a touca e a máscara. Magda indicou-me o quarto onde o meu pai estava ligado ao ventilador, em coma induzido. Banhado em lágrimas, dei-lhe um abraço. O último.