quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

Tiro Certeiro

A casa estava praticamente às escuras. Desorientado, Antunes percorre o corredor no silêncio da noite. Ouve um barulho. O coração dispara. Um homem mascarado surge do nada e aponta-lhe uma arma. Acorda agitado, mais uma vez. Já tivera aquele sonho no hospital e não conseguia descortinar o seu significado, como era hábito nos sonhos. No seu caso, no entanto, era mais do que isso: os médicos tinham-no informado de que teria problemas causados pelo traumatismo craniano que sofrera. Não se sabia se esses mesmos problemas seriam definitivos. Aliados às outras sequelas físicas, o diagnóstico era simples: ele, Diogo Antunes,  43 anos, investigador privado, divorciado e falido, estava uma merda.
Pegou na garrafa quase vazia que tinha debaixo da cama. O whisky queimou-lhe a garganta, mas era a única forma que tinha de conseguir pensar. Estava no seu minúsculo apartamento que lhe servia de escritório. Não tinha luz nem água. Estava a um ponto de ser posto na rua: seria mais um mendigo na população de sem-abrigo de Lisboa. Pelo menos já conhecia alguns.
Levantou-se penosamente. Arrastou-se para o quarto-de-banho onde usou a água de um balde para se lavar. O plano para aquele dia era simples. Usar o saldo que ainda tinha no telemóvel para ligar aos clientes que lhe deviam dinheiro. Contactar amigos.
Amigos?
A palavra provocava-lhe o riso. Enquanto estivera internado só fora visitado por um tio que vivia afastado. Estar sozinho no mundo tinha uma vantagem: podia sempre saber com o que podia contar. Sentou-se à secretária e começou a telefonar. Uma e outra vez. O saldo diminuía assustadoramente. Tinha apenas dinheiro para mais uma chamada. José Calado era um industrial do ramo do calçado que desconfiava que a mulher o estava a trair. Diogo aceitou o serviço e descobriu que Inês Calado, mulher deslumbrante, ex-modelo, tinha, efectivamente, um amante. O estranho, neste caso, foi que o amante desaparecera do mapa pouco tempo depois de Diogo descobrir.
Marcou o número. Esperava ouvir uma voz masculina, mas em vez disso ouviu uma voz sedutora.
– Sim?
– Daqui fala Diogo Antunes, sou um conhecido do senhor José Calado. Será que poderia falar com ele? É um assunto privado.
– Eu sei, Diogo, mas o meu marido não pode atender. Por favor, não volte a ligar para este número.
– Mas… – tal como ela ameaçara, a ligação telefónica foi cortada, deixando-o bastante confuso. Ela sabia? Ele tinha a certeza de ter falado com Inês Calado, a quem perseguira durante uma semana. Sabia tudo sobre ela. Tinha-se apaixonado secretamente pela morena alta de olhos negros profundos que enfeitiçavam qualquer homem. Ele conhecia-lhe a voz.
Ela sabia?
Diogo meditou sobre o assunto e depois abanou a cabeça. Tomou a decisão de falar com José Calado. Era a sua única hipótese de ganhar dinheiro. Foi no carro que o tio lhe tinha emprestado até ao Carregado, onde ficava a sede da empresa de José Calado. Ali, pediu na recepção para falar com ele. A menina pareceu surpreendida e informou-o de que José Calado estava numa viagem prolongada aos Estados Unidos. Abatido, Diogo regressou a Lisboa. Havia ali qualquer coisa que não estava bem, pensou, enquanto o motor do carro resmungava pelo caminho.
Parou num café. Carregou a bateria do telemóvel e acedeu à internet da rede WIFI. Pediu um café e um pão com queijo enquanto pesquisava nas redes sociais. Tal como pensava, José Calado não tinha viajado. Ninguém sabia do seu paradeiro e Inês Calado tinha assumido temporariamente o seu cargo nas empresas.   
Um homem menos desesperado teria desistido, mas Diogo Antunes não o fez.
– Posso falar consigo? – perguntou Diogo à funcionária da empresa que o tinha atendido. Ela tinha pouco mais de vinte anos, um aspecto quase angelical e estava genuinamente surpreendida – afinal, não era todos os dias que um desconhecido a abordava no corredor dos congelados no supermercado.
– É o senhor que perguntou pelo Sr. Calado? Não contava vê-lo aqui.
– E eu contava vê-lo a ele naquele dia. Posso pagar-lhe o café?
Ela aceitou. Sentaram-se no café que ficava no mesmo quarteirão do supermercado.
– Por que razão o procura?
– Posso ser franco consigo? É uma questão de vida ou morte. Da minha vida ou morte. Ele contratou-me para seguir a esposa e nunca me chegou a pagar.
Ela abriu muito a boca.
– Parece mais surpreendida do que eu esperava.
– Posso estar a fazer confusão, mas o Sr. Calado enviou o cheque para um investigador privado. Foi de uma conta privada, mas eu tenho acesso. A D. Inês nunca soube disto e também nunca contei à polícia. O Sr. Calado pediu-me para guardar segredo absoluto, mas não sei se fiz bem. Ele continua desaparecido, a polícia já esteve em todo o lado. Pode ser importante.  
– Precisava da cópia do cheque.
Ela acedeu. Combinaram no mesmo café, no dia seguinte. Trazia um envelope fechado.
– Encontre-o, por favor. Não consigo trabalhar com a D. Inês. O Sr. Calado era um bom patrão.
Diogo não prometeu nada. Abriu o envelope e leu a cópia do cheque. Conhecia bem a empresa Silva Esteves. Eram concorrentes dele. A data do cheque era posterior ao serviço que Diogo lhe tinha prestado.
Ele tinha-lhe pago a eles, mas não a ele. Diogo tentou ignorar esse facto. A cabeça doía-lhe terrivelmente. Voltou para casa e tomou um analgésico com mais uma dose de whisky. A última. Atirou a garrafa vazia para o lixo. Tentou pensar. O que ia fazer a seguir era perigoso, mas viver era um risco. Foi a pé até à Silva Esteves para poupar o combustível do carro, era noite cerrada e tinha começado a chover. Diogo levava a gabardina cinzenta escura do seu kit de detective, como costumava chamar-lhe a ex-mulher. Ela tinha umas piadas interessantes, que agora contava a outro.
Abriu a porta da entrada com uma gazua. Subiu as escadas internas. Já tinha estado ali antes, mas nunca à luz da lanterna. Entrou no arquivo e vasculhou até encontrar o que procurava, uma pasta com o nome “José Calado”. Tirou fotografias a todos os documentos com o smartphone e saiu.
A fotografia mostrava Inês Calado a sair de um restaurante com um homem de barba e bigode. Tinham evidente cumplicidade, mas o homem não era o amante que Diogo tinha descoberto. Leu os relatórios. Além da fotografia, eles não tinham descoberto nada. O homem era hábil a evitar deixar vestígios. Um autêntico fantasma. Quanto mais lia, mais Diogo ficava intrigado. Na prática, tinha voltado à estava zero. Só havia uma pessoa que poderia saber do paradeiro de José Calado: a própria esposa. Ninguém lhe conseguia tirar da cabeça de que ela deveria estar implicada no seu desaparecimento. Decidiu segui-la, como faziam nos filmes em Hollywood. O problema é que a realidade do investigador privado era bem menos romântica do que nos filmes. Ele nem dinheiro tinha para se alimentar em condições. Foi com todo o esforço e dedicação que seguiu Inês Calado até ao ponto de lhe conhecer todas as rotinas, nunca descobrindo o misterioso amante. Para todos os efeitos, Inês Calado era uma esposa devota de um marido desaparecido. Repartia o seu tempo entre a empresa, a casa e a igreja onde ia regularmente. Aqui e ali ia ter com amigas a um salão de chá da baixa.
Diogo estava nas últimas, tal como o depósito do carro. Seguiu Inês num sábado à tarde. Ela saiu de Lisboa, passou por Sintra e foi para norte, junto à costa. Ele não tirava os olhos do ponteiro do combustível. Tinha a certeza de que teria de voltar a pé. Não se importou com isso. Se fosse necessário voltaria à boleia, não seria a primeira vez.
A casa ficava no meio do nada, a poucas centenas de metros de uma costa com mar revolto e falésias profundas. A chuva não parava. Diogo parou o carro e seguiu a pé. Caiu um relâmpago que iluminou a casa. Ele espreitou pela janela. No interior, Inês parecia estar sozinha. Diogo deixou-se ficar à chuva. Lá dentro, Inês olhava para o smartphone e parecia divertida. A certa altura, levantou-se, aproximou-se da garrafeira, encheu dois copos e Diogo deixou de a ver. Seria o amante? Seria José Calado? Diogo tirou a pistola da algibeira e destravou-a.
– Isso é para mim? – Perguntou Inês Calado. Ela estava a dois metros dele, com dois copos na mão. A água colava-lhe a roupa ao corpo, o olhar era sensual, irresistível. Chamava por ele como um demónio do inferno. O que é que ele tinha a perder? Aceitou o copo e seguiu-a para o interior da casa.
Ela mostrou-lhe no smartphone a imagem das câmaras de vigilância do exterior. Enquanto ele tinha estado à chuva, ela tinha-se divertido à sua custa.
– O Zé comprou-me esta casa pelo meu aniversário. É o meu refúgio. Fazes-me companhia?
Na mesa da sala havia uma travessa de carne fumegante.
– Estava à minha espera.
– Está como sei que gostas.
Diogo olhou para a carne e reconheceu que ela estava certa. A cada passo tinha um deja vu, aquela sensação incómoda de se sentir que estamos a viver uma situação já vivida. Ele já tinha estado ali.
– Pareces surpreendido, Diogo. Deixamos as perguntas para depois? Estou cheia de fome.
Jantaram. Ele abriu uma garrafa de vinho que sabia ser caro. Olhou para a parede em frente enquanto abria o vinho. Aquela era a parede que via no seu sonho e tinha um espelho. Ao ver a sua imagem reflectida descobriu que o ladrão que via no sonho era ele próprio. Lentamente ia desenrolando toda a história.
– Eu matei-os. – Concluiu Diogo.
– O Inácio era um imbecil que julgou que me podia chantagear. Ninguém sente a falta dele.
– Eu fiz-te um favor.
– Tu fizeste-nos um favor, amor. Tenho pena de que não te lembres.
Ela levantou-se e aproximou-se dele. Fizeram um brinde e beijaram-se. Ele envolveu-a nos seus braços e pegou nela.
– Eu sei o caminho. – Disse ele, subindo as escadas com a cabeça dela encostada à sua. Pelo caminho, revivia o que tinha acontecido. Ele, com uma máscara na cabeça, a fazer-se passar por um ladrão. Subiu as escadas, percorreu o corredor com a arma na mão. Abriu a porta e ali estava José Calado, que dormia ao lado de Inês. Ele apontou a arma à cabeça do industrial e disparou.
Ele tinha matado José Calado. Depois tinham desfeito o corpo num tanque de ácido na garagem, tal como tinham feito antes com Inácio. A cabeça doía-lhe. Sentia um misto de confusão e arrependimento. O que é que isso interessava quando se tinha a mulher dos nossos sonhos a olhar para nós como Inês Calado olhava para Diogo Antunes? Ele cedeu completamente à tentação, ignorando todos os sinais de aviso. Fizeram amor como dois animais no cio. Quando, finalmente, se deram por satisfeitos, ela adormeceu nos braços dele.

– Bom dia, amor.
Era já de dia. Diogo estava apenas coberto pelo lençol branco, deitado exactamente no mesmo sítio onde morrera José Calado. Era tudo claro na sua memória, especialmente o que acontecera depois. Mas nada disso interessava. Inês sorria-lhe e isso faria dele o homem mais feliz do mundo, não fosse a arma que ela lhe apontava à cabeça.
– Foste tu que provocaste o meu acidente. – Disse Diogo, surpreendentemente calmo.
– Não podiam haver pontas soltas. Eu consegui o que queria, livrar-me de um homem que eu odiava profundamente. Tu foste uma peça no puzzle, uma peça que ele próprio me enviou. A pessoa mais idiota que eu alguma vez conheci. Não é à toa que estás falido, Diogo. E nem sabes da aflição que me causaste quando sobreviveste ao acidente. Eu droguei-te. Depois foi só destravar o carro e fazê-lo cair na ravina. Mas tu sobreviveste, apenas com problemas de memória como numa novela de segunda categoria. Agora, tudo vai ficar resolvido. – Diz Inês, com o olhar carregado de ódio.
O tiro ecoou no quarto. O corpo nu de Inês tombou inanimado no chão. O tiro certeiro que Diogo disparara com a arma escondida por baixo do lençol.
– Sim. Já está tudo resolvido, amor.

domingo, 18 de novembro de 2018

O Silêncio


O Silêncio




    Rute atirou a beata do cigarro para o chão. Sabia que não o devia fazer, mas o seu lado rebelde parecia obrigá-la. Sorriu com esse pensamento. Rute, a rebelde. As amigas rir-se-iam dela. No entendimento delas, a Rute não tinha nada de rebelde. Não passava de uma mulher solitária, a entrar nos famosos “entas”. Nos últimos anos o vazio agudizara-se e isso levara-a àquela instituição. Lembrava-se de quando iniciara o processo, há quase um ano. Entrara com receio e cheia de dúvidas. A ideia não era adoptar, mas acolher uma criança. Na primeira entrevista com a assistente social indicou que procurava um desafio. Rute ainda se lembrava de como os olhos da assistente social se abriram.
    O Ângelo era uma criança pequena para os seus sete anos. Pouco falava. Não havia um diagnóstico preciso, mas os psicólogos sugeriam que tinha sofrido um trauma profundo, tão comum nas crianças daquela instituição. Os exames médicos não tinham encontrado sinais de maus tratos e ele não se abria com ninguém. Rute ficou imediatamente cativada pelo rapaz de estranhos olhos claros que agora, passado o longo processo, iria com ela para casa.
    Já tinham feito algumas experiências. No primeiro fim-de-semana que o Ângelo tinha passado com ela, parecera uma estátua. Sentara-se numa cadeira a ver televisão e não dissera uma única palavra. Ela sentou-se ao lado dele a ler um livro e assim ficou durante duas horas antes de adormecer no sofá. Acordou sobressaltada, pensando que ele tinha fugido. Mas não. O Ângelo estava sentado ao seu lado. Tinha-a coberto com uma manta, porque o aquecimento não estava ligado.
    A segunda experiência correu melhor. Foram de metro até à praia e almoçaram por lá. O Ângelo ficou algum tempo a olhar para o mar, depois a atenção prendeu-se num bando de gaivotas que pareciam igualmente hipnotizadas pela presença dele. Estranho, pensou Rute, mas nunca ligou a esse pormenor até ao acontecimento de Coimbra, precisamente um ano depois - um ano de uma luta constante contra o silêncio e a apatia do rapaz. O desespero foi tomando conta dela, ao mesmo tempo que sentia que falhara redondamente. Depois começou a sentir que conseguia entrar no mundo dele. De uma forma lenta começou a compreender os seus silêncios e a deduzir o seu estado de espírito. Na escola, o silencioso Ângelo destacava-se por uma inteligência fora do normal. Só o facto de não interagir com ninguém o distinguia dos colegas que, por esse facto, o punham de lado. O Ângelo não tinha qualquer problema na fala, nem na audição. Não sofria de qualquer tipo de autismo. Isso ficou provado um dia em que a Rute foi falar com a professora e esta lhe mostrou uma composição do Ângelo. Ela sentiu as lágrimas a escorregarem pela face ao ler o que ela dizia dela. Ele era, apenas, silencioso.
    Pelo seu oitavo aniversário, ela organizou uma festa e tiraram uma fotografia. Rute tinha convidado as amigas. Algumas tinham trazido os seus próprios filhos, mas o Ângelo não se relacionou com ninguém, pelo que os outros também o ignoraram. Para todos os efeitos, era como se fosse invisível. Rute publicou a fotografia da festa no seu perfil do Facebook. Era a primeira fotografia do Ângelo que publicava e a reacção foi unânime, obtendo 96 “gostos”. Houve até quem partilhasse a fotografia e gabasse a beleza estranha do rapaz.
    Isso foi pouco tempo antes de Coimbra. O convite para irem passar o fim-de-semana a Lisboa tinha partido de uma amiga de infância de Rute e ela aceitou de imediato. Tencionava ir de comboio, como era seu hábito, mas havia um pré-aviso de greve. Ela não arriscou e foi de camioneta. Entrou para o veículo com um mau pressentimento que contrastava com a calma habitual de Ângelo, que passou parte da viagem a olhar para a paisagem.
    Rute enfiou os auscultadores nos ouvidos e concentrou-se na música. O mau pressentimento não a largava. Detestava viajar de autocarro. Incomodava-a o conjunto de factores que podiam pôr em perigo a viagem, desde o estado do condutor às condições da estrada. Preferia mil vezes o comboio.
    Ao passarem por Coimbra, o Ângelo desviou a atenção da paisagem para a própria Rute. Um gesto que ela estranhou. Ele encostou-se a ela e abraçou-a com os seus pequenos braços mas que pareciam ter-se agigantado. Também o corpo dele parecia ter-se tornado muito maior.
    – Amo-te, Rute.
    O sussurro foi dito ao ouvido dela, que não teve tempo para reagir à surpresa antes do pneu rebentar e o autocarro se despistar. A Rute sentiu a violência do impacto e tudo a andar às voltas. Ainda abraçada a Ângelo, perdeu os sentidos.

    Depois do acidente, Rute esteve internada durante algumas semanas. Aos poucos, foi ganhando consciência de ter sido a única sobrevivente do acidente. Soube que tinha perguntado insistentemente por Ângelo. Percebeu que ele tinha morrido, mas o corpo do rapaz nunca foi encontrado. Desaparecera sem deixar vestígios depois de, aparentemente, ter salvo a vida de Rute.
    Ele previra o acidente e ela juntou esse facto aos outros factos estranhos que sempre tinham acontecido à volta dele, sendo que o seu silêncio era o menor deles. Rute sentiu-se uma privilegiada por ter tido aquele ano de felicidade - uma felicidade contida, feita de pequenos nadas.
* * *

    Paulo contactou-a dois meses depois do acidente. Tinha visto a fotografia do aniversário do Ângelo no facebook e tinha mandado uma mensagem privada a pedir a Rute um encontro. Encontraram-se face a face num café no Porto.
    – Quero mostrar-lhe uma coisa, Rute, mas devo avisá-la de que o conteúdo é forte.
    – Paulo, se o acidente não me matou, também não vão ser imagens que o vão fazer. Mesmo que não tenha comigo o Ângelo. Tem a ver com ele?
    – Sim. Veja, por favor.
Ele colocou três fotografias em cima da mesa. Duas a preto-e-branco, uma a cores. Todas de aspecto antigo. Em todas aparecia um rapaz parecido com Ângelo.
    – Estas fotografias são montagens? – perguntou Rute, bebendo o seu café.
    – Não. Uma é de 1924, outra de 1935. A última foi tirada na década de 60. Estados Unidos, Rússia e Itália. É ele.
    Rute abanou a cabeça. Por mais que estivesse habituada a aceitar os factos estranhos que rodeavam o Ângelo, aquela revelação era excessiva.
    – Não pode ser.
    – Eu sei que é difícil de acreditar, mas existem relatos da existência de outros como ele. Salvaram vidas de formas inexplicáveis.
    – Como um anjo da guarda?
    Paulo sorriu.
    – Precisamente.
    Rute reflectiu por um instante.
    – Vamos fingir que eu acredito nisso. Porque é que um anjo da guarda se interessou por mim?
    Paulo encolheu os ombros.
    – Isso tem de ser a Rute a descobrir.

    “Isso tem de ser a Rute a descobrir”.
    Ela mandou fazer 1700 cópias da fotografia do Ângelo e passou dois dias a colá-las nas paredes do apartamento. Havia um sentido para a sua existência? Deitou-se no chão, rodeada pelas fotografias. Apetecia-lhe fumar, mas deixara o vício. Era estúpido ter sido salva por um anjo da guarda para morrer de cancro de pulmão.
    O que é que ela tinha? Um emprego e um apartamento que devia valer uns bons milhares de euros, na baixa do Porto, herança dos pais.
    Apartamento.
    Milhares de euros.
    Olhou em volta. O olhar de 1700 Ângelos parecia fixado nela.

* * *

    – Chegámos?
    – Sim.
    Rute olhou em volta. Parecia-lhe estar no meio do nada. Apenas um amontoado de casas assinalava a presença da Missão naquela aldeia nos arredores da cidade da Beira, capital da província moçambicana de Sofala. O taxista pousou as malas no chão de terra vermelha, esperou impacientemente que ela lhe pagasse e depois partiu, deixando atrás de si uma onda de pó.
    A irmã Hertha, uma alemã com pouco mais de vinte anos, veio cumprimentá-la com um sorriso franco, olhar cansado e a pele queimada pelo sol. Atrás dela, surgiu um bando de crianças, de olhar vivo. Chegara a altura de Rute ser o anjo da guarda de alguém.