sábado, 3 de junho de 2023

Tempo perdido

Peço desculpa por não revelar o meu nome. Este desabafo vai ser anónimo. A última coisa que eu quero é ter a CNN ou a CM TV a querer encher tempo de antena com o meu estranho caso. Adiante.

Sou talvez a pessoa mais perdida que alguma vez existiu. Por pior situação em que as outras pessoas perdidas se encontrem, sabem sempre que o dia seguinte será apenas outro dia, a menos que faleçam pelo caminho. Eu não. Por algum motivo que desconheço, a normal sequência temporal é algo que não me assiste. Sempre que acordo estou com uma idade diferente, numa época diferente da minha vida.

Acordar com trinta e cinco anos, ao lado de uma mulher bonita, até poderia ser interessante se, na realidade, não tivesse apenas 12 anos. Estão a ver o drama? E quando acordo nem tenho uma ideia precisa do que aconteceu, do meu passado. Finjo-me de tolo, fujo das pessoas. O que quero, na realidade, é pegar na minha consola e jogar. O que é isso de IRS? E o trabalho? Quem inventou os horários? Pensava que a escola era um tédio, mas não passava de uma preparação para o que vinha a seguir: uma escola diferente, sem professores mas com chefes. Na realidade, a diferença não era muita.

Chegava a casa física e psiquicamente arrasado, depois de conduzir hora e meia (esta até seria a parte mais divertida, não fosse o fato de estar a maior parte do tempo parado numa interminável fila de trânsito). Beijava a minha mulher (outra parte divertida, que me deixava completamente eufórico), e cumprimentava as minhas duas filhas gémeas, que tinham, exatamente, a minha “verdadeira” idade. Por vezes jogávamos os três consola, e eu ganhava, para espanto delas. No entendimento das duas, os cotas não podiam saber jogar, nem gostar de hip-hop, nem contar anedotas, nem dizer palavrões. Essa era a melhor parte, o olhar de espanto de quem amamos. No dia seguinte acordava no momento do nascimento delas, de quando as beijei pela primeira vez.

Tenho apenas duas dúvidas neste meu estranho caso:

(1) Porque é que isto me aconteceu? (Será que sou o único a padecer este mal?)

(2) Como é que ainda não enlouqueci. Passado algum tempo, passei a achar normal acordar com uma idade diferente.

Ainda me lembro da primeira vez que aconteceu. Adormeci com 12 anos, acordei com 24. Ainda vivia na mesma casa, mas estava na universidade. Num único dia tive de lidar com a mudança do meu corpo, uma voz desconhecida, a ver as coisas de outro ângulo, mais elevado (não muito, infelizmente). Imaginem passar a adolescência num único dia. Se calhar até não perdi nada. Por algum motivo, aceitei com alguma naturalidade a situação. Tenho de reconhecer que tem algumas coisas boas: dificilmente os dias eram iguais e conseguia satisfazer aquele desejo estúpido que as crianças têm, de querer desesperadamente ser adultos. Descobri que esse desejo não passava de um logro: a infância é, de longe, a melhor das idades.

No dia seguinte, quando esperava continuar com 24 anos, acordei com 73 anos. Vivia numa casa maior, numa zona dos arredores de Braga. Imaginem acordar com uma mulher que tinha idade para ser minha avó. Fiz-me de desorientado. Levantei-me e notei que o meu corpo não respondia como costumava responder. Era como se vestisse um corpo para além do meu corpo. Estava gordo, careca e míope. Ela levantou-se lentamente. Percebi que o tempo também lhe tinha cobrado o seu preço. Sorriu-me e no seu olhar de cumplicidade percebi o que realmente importava. Depois vieram as surpresas. Tinha dois netos, lindos de morrer. Foi um dia estranho, cheio de emoções profundas.

De manhã acordei ainda mais velho e estranhamente sozinho. Sabia a razão. Mitigava a viuvez com as saudades do sorriso dela. O dia foi um interminável suplício. Fui para a cama arrastando comigo o peso de uma solidão incomensurável.

Quando acordei, estava na mesma sozinho, mas era uma solidão diferente. Era mais novo. Talvez tivesse cinquenta e poucos anos. A recordação da separação recente tomou conta do meu espírito. Uma questão de egos, uma discussão por motivos banais. Saí de casa e perdi-me nas ruas da cidade que, no fundo, desconhecia. Onde estavam os prédios e as ruas da minha infância? E o que é que isso importava? Apenas importava que ela fizesse parte da minha vida, e eu dela. Tudo o resto era acessório. Resolvi contar-lhe tudo, a razão da minha constante desorientação. Só num aspeto tinha certeza: amava profundamente a minha mulher e as minhas filhas. Estava disposto a fazer tudo. E tinha de o fazer num único dia, antes de acordar numa época diferente. Os problemas resolvem-se, não se adiam. Especialmente quando não nos podemos dar ao luxo de procrastinar. Estava a ficar maluco. Corri desesperadamente para onde sabia que ela estava. Entrei no prédio onde trabalhava. A fila para o elevador era gigantesca e não queria esperar. Subi pelas escadas os dez andares. Bati na porta do gabinete dela. O coração num galope tremendo. Não precisei dizer nada. Não conseguia. Caí redondo no chão e, segundo dizem, fui levado de emergência para o hospital. Acordei no dia seguinte no hospital, ligado às máquinas. No peito sentia a pressão de uma pedra gigantesca. Ela veio ver-me. Sorriu-me. No olhar via-lhe a preocupação sincera e evidente. Queria contar-lhe tudo, mas não podia falar. Não precisava. Para que servem as palavras quando o amor chega para dizermos tudo o que temos para dizer? No dia seguinte,continuava no hospital. O que quer que os médicos tivessem feito, curou o meu problema. O meu espírito tem 13 anos. O meu corpo 52. Ela está comigo. Sei o que vai acontecer no futuro, mas não vou contar a ninguém. Tenho num sítio seguro o número do euromilhões que vai sair daqui a cinco anos, dois meses e três dias. As minha filhas não vão ter problemas financeiros. Mas agora, o que realmente interessa é que vou ali brincar com o meu neto. Queria apenas que soubessem o que aconteceu. Pode ser que tenha acontecido a alguém. Se aconteceu, gostava que essa pessoa soubesse que é apenas uma vida diferente, sem tempo perdido.