terça-feira, 1 de dezembro de 2020

Uma estrela amarela

 Tive o privilégio de entrevistar Ezra Manishewitz por ocasião do único concerto que o pianista deu no auditório da Aula Magna em Lisboa. Foi, talvez, a entrevista que mais me marcou na minha carreira de jornalista. Ezra já passava dos setenta anos de idade, mas tinha um olhar bastante jovial e uma energia invulgar que explodia quando se sentava ao piano. Ouvi-lo ao vivo foi uma experiência mesmerizante. Ele confundia-se com o piano, tornavam-se um ser único, mas nada disso importava, apenas a música que não conseguia deixar ninguém indiferente. Encontrámo-nos no bar do hotel onde ficara hospedado. Cumprimentei-o. A sua mão era extraordinariamente forte, quase um contra-senso para a sensibilidade musical que tinha. Mais parecia a mão calejada de um mineiro. Lucy, a sua intérprete de linguagem gestual, apresentou-se. Ezra sofria de surdez profunda desde a infância, isso não o impedia de ser um dos melhores pianistas do mundo. Respondeu às minhas perguntas com uma calma e um sorriso que nunca o abandonava. Quando terminámos, bebemos os três uma taça de champanhe francês. 

“O Sr. Ezra tem um pedido especial para lhe fazer”, disse-me Lucy. Fiquei surpreendido. Sabia que Ezra era uma pessoa reservada, bastante cioso da sua vida privada. 

“Ele tem uma dívida de gratidão para com o seu país. Gostaria de retribuir. E o senhor pode ter um papel importante nisso. Ele conhece a sua obra. Aceitaria fazer a sua biografia?”

Sabem quando alguém pousa um pote de ouro à nossa frente e ainda duvidamos da nossa sorte? Foi o que aconteceu comigo naquele dia. Por mais projectos que tivesse em curso, nunca se rejeita a oportunidade de fazer a biografia de alguém que é, ao mesmo tempo, tão famoso e misterioso como Ezra Manishewitz. Aceitei de imediato, e Ezra exibiu um sorriso de orelha a orelha. Combinámos que ele escreveria as suas memórias e que me enviaria por carta a partir de Nova Iorque. Ficou também combinado que o visitaria na Primavera, caso a sua agenda permitisse. Recebi a sua primeira carta duas semanas depois, e abri-a com uma excitação quase infantil. Tinha quase dez páginas, escritas num inglês básico e numa letra quase incompreensível. Resumo aqui as partes mais importantes.


Nasci a 16 de Abril de 1930, em Cracóvia. O meu pai era professor de piano. A minha mãe tinha sido aluna dele e também tocava muito bem. Comecei a tocar muito cedo. Lembro-me de que, aos cinco anos de idade, o meu pai organizou uma pequena audição privada para alguns conhecidos. Eu nem altura tinha para chegar aos pedais: toquei ao colo dele, sendo ele próprio a carregar nos pedais. Lembro-me da paz e serenidade que havia na altura. Pouco depois começou a ouvir-se os ecos de que alguma coisa se iria passar na vizinha Alemanha. Convencemo-nos de que a  França e a toda-poderosa Inglaterra  não iriam permitir que tudo voltasse a acontecer, mas parecia que o mundo tinha fechado os olhos. Em 1938 começaram a chegar notícias de perseguições ao meu povo na Alemanha. Chamaram-lhe o pomposo nome de Noite de Cristal. Sinagogas e negócios de Judeus foram queimados e milhares de pessoas foram presas. Eu tinha oito anos e lembro-me de que o meu pai reuniu toda a família para rezarmos uma oração pelos nossos irmãos na Alemanha. Uma noite ouvi-o dizer à minha mãe que os alemães iam invadir a Polónia e que o mais seguro seria fugirem para a Bélgica. Ela, que já na altura tinha uma saúde bastante debilitada, disse-lhe que ele deveria fazê-lo, para salvar os filhos. Ele percebeu que iria sozinho e, por amor, não o fez. 

Em 1939 Hitler invade a Polónia, forçando a Inglaterra a declarar guerra à Alemanha. Tudo mudou. Ficámos confinados a uma zona da cidade. O meu pai deixou de ter alunos e foi forçado a procurar trabalho numa fábrica. Chegava a casa cansado e amargurado. Nunca mais o ouvi tocar. 

Lembro-me da minha mãe estar a coser uma horrível estrela amarela na nossa roupa. Mesmo com a sua saúde debilitada, nunca a tinha visto chorar, mas nesse dia as lágrimas escorriam-lhe pela cara. Passado um mês, o meu pai não voltou para casa. Algumas pessoas avisaram a minha mãe. Tinham-no visto a ser preso por soldados da Wehrmacht.  Nunca mais o vi. O meu tio tomou conta de nós. A minha mãe continuou a dar-nos aulas de piano. Todos os dias tinha de tocar duas outras três horas, sempre com os olhos postos na porta, à espera que o meu pai entrasse para nos abraçar. Até que perdi a esperança de o voltar a ver. Isso foi pouco tempo antes de eu ser espancado na rua por um oficial da Wehrmacht. Tinham descoberto que eu levava dois pães escondidos debaixo do casaco. Queriam saber onde o tinha ido buscar, mas eu não disse, por isso deram-me pontapés na cabeça. Deixaram-me caído na rua, numa poça do meu próprio sangue. 

Quando acordei estava na minha cama, a minha mãe usava os restos de um lençol para me fazer o curativo. Mexia a boca e devia estar a falar, mas eu só ouvia um zumbido intenso. Senti o seu pânico quando se apercebeu do meu estado de surdez. Mais do que o meu próprio estado de ansiedade, queria sossegá-la. Eu tinha 9 anos, na altura, mas a guerra obriga-nos a crescer. Não saber do paradeiro do meu pai obrigou-me a crescer. Eu só tinha a minha mãe e os meus irmãos. Agora nem tinha sequer a minha música. Lembro-me da primeira vez que me sentei ao piano depois de ficar surdo. Carreguei numa tecla e não ouvi nada para além do maldito zumbido que se sobrepunha a todos os sons que amava. Já não conseguia ouvir a voz da minha mãe nem o riso dos meus irmãos. Não conseguia ouvir o som do piano. Com uma raiva imensa massacrei o teclado, tocando de memória uma peça de Mozart.  Percebi que, se não conseguia ouvir, o meu corpo conseguia sentir o som. Era como se estivesse a ouvir, mas não com os meus ouvidos. Sentia a vibração. Creio que renasci nesse dia e esse sentimento acompanhou-me toda a vida. 

(...)

Lembro-me do meu tio entrar pela porta dentro, já de noite, com um nervosismo que não conhecia. Percebi que os meus irmãos já estavam preparados para viajar. Íamos fugir. Lá fora estava um carro negro, onde já estavam os meus primos e a minha tia. Senti que havia algo que não estava bem, no olhar da minha mãe. Percebi que ela não iria e agarrei-me a ela, supostamente aos berros, porque nem os meus próprios berros conseguia ouvir. Tiveram de me arrancar dos braços dela à força. Foi a última vez que a vi. Ela estava triste, mas não chorava – secara as lágrimas de tanto chorar em segredo, nos últimos meses. Entrei para o carro com os olhos postos na nossa casa, até deixar de a ver na primeira curva do caminho. Fora dos limites da cidade juntámo-nos a um grupo chefiado pelo rabi Chaim Tzvi Kruger. Fomos para Bruxelas e depois percorremos diversos consulados portugueses, misturados na multidão de pessoas em fuga. A notícia que corria era a de que em Bordéus havia um cônsul português que estava a dar vistos temporários. Fomos para lá e ficámos diversos dias na fila, até que o rabi conseguiu convencer o cônsul, Aristides Sousa Mendes, a conceder vistos para todos, contrariando a sua vontade inicial que era a de conceder vistos apenas ao rabi e à sua família. Eu estava com os meus tios e observava toda a agitação sem perceber nada do que se passava. Assim que teve o seu visto na mão, o meu tio separou-se do grupo do rabi. Tinham decido tentar chegar a Portugal por sítios diferentes. O meu tio ficou mais alguns dias em França. Quando finalmente tentou passar a fronteira, descobriu que as autoridades espanholas tinham cancelado os vistos. O meu tio ficou destroçado. Estávamos todos na estrada, junto à fronteira, quando vimos chegar um carro com a bandeira portuguesa. Parou à nossa beira. O passageiro no banco de trás desceu o vidro. Reconheci o cônsul português imediatamente, no seu fato branco. Tinha o semblante carregado. Parecia doente. Falou com o meu tio. Olhou para nós. Nunca vou esquecer esse olhar. Quando dei por mim estávamos todos dentro do carro diplomático, a atravessar a fronteira. A minha vida começou naquele momento. Carregava comigo apenas as saudades dos meus pais, o cheiro do bolo de maçã que a minha mãe fazia e os longos passeios de bicicleta que dava com os meus irmãos. 

Chegámos a Lisboa e esperámos pelo avião que nos levaria para os Estados Unidos. 

(...)


 Terminei a leitura absolutamente exausto. Esperei ansioso por uma segunda carta, que chegou seis meses depois da primeira. Anunciava que Ezra tinha morrido durante a noite, com um ataque cardíaco fulminante. Estava, finalmente, em silêncio.



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Nota do autor: Embora Ezra Manishewitz seja uma personagem fictícia, nem o Rabi Chaim Tzvi Kruger nem Aristides Sousa Mendes são personagens fictícias. Escrevi este texto como uma singela homenagem a Aristides Sousa Mendes, um homem cujos princípios se sobrepunham às suas obrigações e ao sofrimento de um povo que nunca será demais recordar, para que nos sirva de lição.    

 

Jorge Santos 

Outubro de 2020