domingo, 19 de novembro de 2017

O Caçador de Dragões (2)


3

Sim, respondeu Jorge. Foi uma resposta instintiva, dita na antiga língua dos dragões, incompreensível a qualquer humano que porventura estivesse por ali a ouvi-los. Mas eles estavam sozinhos, enfiados numa gruta da montanha mais alta. Afastada de tudo e de todos. Ali viviam o seu amor, escondidos de um mundo que não os compreendia. A Jorge bastava-lhe um vislumbre do reflexo da lua nos olhos verde-esmeralda de Ilda para compreender que aquele era o seu lugar. O seu mundo era ali. E como acontecia desde sempre, ela anunciou-lhe uma noite que teriam crias. Esse foi o momento mais feliz da existência de Jorge. Tão feliz que esticou as grandes asas e saiu para voar, tão alto como lhe foi possível voar. Era um gesto imprudente – ele sabia-o. Mas para que serviam as asas, se não podia voar? Regressou renovado para a toca, disposto a festejar a boa nova e ignorando o facto de ter sido filmado. Maldita tecnologia. Longe vão os tempos dos boatos e das lendas. Agora, acaba tudo no youtube, com dois milhões e meio de visualizações. Foi este o número de visualizações, mais milhar, menos milhar. Finalmente o mundo sabia.
Jorge cedo reparou que algo tinha acontecido. De um momento para o outro, apareceram pessoas no sopé da montanha, helicópteros e drones. E eles deixaram de ser só dois.
- Temos de fugir.
Ele reconheceu que Ilda tinha razão. Teriam de fugir da montanha que era deles, a montanha onde seriam felizes e onde criariam os filhos que não tardariam a nascer. Numa noite de lua nova, Ilda reuniria toda a sua magia e juntos fugiriam num manto de neblina. Refugiaram-se numa montanha ainda mais longínqua. Ali, tudo era feio e agreste. Nem ele nem ela gostavam do sítio, mas durante semanas não sentiram qualquer presença humana. Aquele lugar seria deles, suspirou Ilda. Esgotara quase toda a sua magia. Não poderia voltar a usá-la para encobrir a sua fuga.
- Não precisaremos de o voltar a fazer.
- Como sabes?
- Tenho fé. Não viemos de tão longe para não encontrarmos o nosso lugar.
Ela sorriu. Foi um sorriso amarelo, provocado pelo enjoo de uma gravidez já avançada. Dentro de alguns dias poria os seus ovos. Depois chocá-los-ia. Depois, a caverna onde viviam encher-se-ia de pequenas vidas esvoaçando por todo o lado. Seriam felizes, tão felizes como qualquer outra família em fuga poderia esperar ser.
Esse era o sonho de Ilda.
Mas não foi assim que tudo se passou. Uma manhã, Jorge acordou e sentiu uma presença na entrada na caverna. Pata ante pata, subiu pelo sinuoso caminho (que saudades da sua antiga caverna). Reconheceu pelo olfacto a pessoa, ainda antes de ver o seu vulto desenhado contra a luz da alvorada.
Era Cornélio, o seu mestre na arte de caçador de dragões.




4

Cornélio subia a ladeira em direcção à entrada da caverna. No sopé da montanha estava uma multidão de gente, entre membros da comunicação social, polícias, bombeiros, meros curiosos e um ou outro político, à espera de tirar dividendos políticos da situação. Cornélio era o único caçador de dragões que conheciam, por isso o tinham chamado. Ele acedera imediatamente, de peito cheio. Na realidade estava bêbado, e na bebedeira acedera ao que lhe pediam.
Agora, enquanto subia a custo a ladeira, armado com uma espada e um escudo de lata, made in China, as pernas tremiam e o espírito contorcia-se de pânico. Queria gritar e assumir a verdade: era tudo uma farsa. Dizia ser um caçador de dragões com o único objectivo de tirar dinheiro aos poucos incautos que o procuravam. Depois de se ver nesta alhada, tentara pedir ajuda a alguns dos seus ex-alunos mas todos negaram, agora que tinham os olhos abertos. Jorge, o seu aluno mais promissor, estava desaparecido há meses – o mesmo acontecera a uma vizinha que vivia à sua frente. Quando as contas por pagar se acumularam, descobriram que ela desaparecera. A estranha coincidência fora tema de discussão pública durante dois dias e meio. Depois o Benfica ganhara 3-0 ao Sporting e o caso fora esquecido. Por isso Cornélio subia agora, sozinho, a ladeira.
Via no topo a entrada da caverna. E uma sombra. Seria a vista que o atraiçoava? A sombra movia-se. Era grande, enorme. Cornélio parou e engoliu em seco. Pressentiu a sua morte. A barriga fez barulho. Estava a sentir-se mal. Não, não ia borrar-se de medo. Covarde, sim, mas com a sua dignidade intacta. Voltou ao caminho. Colou o escudo ao corpo e avançou com a espada em riste. Ele ali estava. Medonho, grande, cheio de escamas. Olharam-se por um momento. O dragão, pensou Cornélio por um momento, até que não tinha um olhar feroz. Isso deu-lhe coragem e atacou a besta, cravando-lhe a espada na carne dura. Cornélio recuou, preparando-se para repelir a resposta da criatura, mas o dragão limitou-se a olhar para ele e a passar a unha no seu próprio sangue.
- Ataca! O que estás a fazer, criatura do Demo? Ataca! Agora que decidi deixar de ser covarde, não me atacas? Vamos!
Mas o dragão nada fez. Limitou-se a desenhar um símbolo na parede da caverna. Cornélio reconheceu-o. Era uma Mandala – o código que ensinara Jorge a fazer durante a formação. Cornélio percebeu. Deixou cair a espada e o escudo. Aproximou-se do dragão, observou a ferida. Foi nesse preciso instante que apareceu o segundo dragão, que investiu contra Cornélio. O suposto caçador de dragões caiu por terra, sem sentidos.
- Estás ferido. – disse Ilda, na língua dos dragões.
Jorge abanou a cabeça.
- É apenas um arranhão, meu amor.
- Deixa-me matá-lo.
- Não. Depois, virão outros. Continuarão sempre a vir.
- Nunca estaremos a salvo.
- Só porque somos diferentes. Eles não percebem.
- Não há solução.
- Há uma solução, minha querida Ilda.
- Eu já não tenho magia, Jorge. Estou demasiadamente fraca. E os nossos filhos não demoram a nascer.
- Tu não tens magia. Eu tenho. Tu ensinaste-me.
- Tem de ser assim?
- Não há solução, Ilda. Eu preferia que houvesse. Ficar a eternidade do teu lado. Mas o mundo não deixa.
Ilda reconheceu que Jorge tinha razão. Abraçaram-se uma última vez. Depois ela cravou-lhe a unha no braço.
- Assim, lembrar-te-ás de mim. – disse ela. Depois afastou-se.
Jorge tinha o corpo de Cornélio aos seus pés. Tentou arranjar, por uma última vez, uma solução. Não conseguiu. Ouviu ruídos, lá fora. Alguns, mais destemidos, subiam a ladeira em direcção à entrada da caverna. Jorge murmurou palavras mágicas, desenhou um símbolo no chão. Depois, fechou os olhos.

Quando Jorge acordou, viu-se num quarto de hospital. Cornélio estava à sua cabeceira. Uma enfermeira regulou o gotejar de uma garrafa de soro.
- Onde é que eu estou? – perguntou Jorge.
- Estás no hospital.
- E tu, o que fazes aqui?
- Eu… é uma história complicada. Convenceram-me a subir a uma caverna. Diziam que tinham visto dragões.
- Ah! Isso é estúpido. Os dragões não existem. Nem os dragões, nem os caçadores de dragões. Tu, Cornélio, és um aldrabão. Todos deviam saber disso.
Cornélio olha para os lados, tentando abafar a voz de Jorge. Afinal, ainda tinha uma reputação a manter.
- Alguma coisa aconteceu naquela caverna. Eu fiquei inconsciente. E depois tu, trouxeste-me pela ladeira abaixo. Nu.
Jorge fez um gesto de espanto.
- Não me lembro de nada.
- Pois. O que quer que tenha acontecido, nunca saberemos. Na caverna não há sinais de dragões.
- E agora?
- Agora temos de explicar o pouco que sabemos às autoridades e seguimos as nossas vidinhas.
Jorge concordou com Cornélio. Sentiu o braço a latejar. Tinha ali uma estranha ferida, em forma da “I”. Ao tocar-lhe sentiu-se feliz. Pressentiu a presença de alguém naquele quarto. Alguém além de Cornélio e da enfermeira. Uma presença que não soube explicar mas que lhe dava a certeza de nunca mais ser assolado pela solidão.
 
FIM