quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Fome de Ti

“Sempre” não é tempo suficiente para que te consiga ler o olhar e saber tudo o que és. Preciso de mais: o meu “sempre”, em matrimónio perfeito com o teu, até que não existam mais ondas para morrer suavemente na nossa praia, num murmúrio nunca banal. Que saudades do tempo em que nos enganávamos um ao outro, jurando amor eterno: o amor não pode ser jurado sem mentir, o passado já passou, o futuro não é nosso, só o presente é uma surpresa e nos pertence, daí o nome. Só prometo amar-te agora e tentar acordar todos os dias com a vontade de renovar essa promessa. Provarei todas as noites uma migalha de ti, satisfazendo a fome que me corrói e regressa logo depois. Promete-me que nunca serás absolutamente minha, tal como nunca serei completamente teu: serás a minha conquista de todos os dias, redescobrindo-te ao primeiro raio de sol; seduz-me a cada manhã, como se fosse a primeira vez. Dá-me como presente um presente sempre diferente, a cada sorriso quente com que me recebes, quando volto do trabalho e a cada beijo apaixonado que partilhamos quando pensamos que o silêncio é nosso. À noite, quando nos deitamos, misturamos os corpos e sonhamos o mesmo sonho, como devem ser sempre os sonhos das pessoas apaixonadas, prontas e expectantes para transformar o amanhã num novo presente. Sempre.     

segunda-feira, 29 de julho de 2013

Texto 7

Nunca deixar morrer o sonho é o primeiro passo para sermos felizes. Mesmo que o mundo dos outros nos berre e nos deixe sozinhos no caminho, com um rasto deixado pelos nossos erros e fragmentos dos sonhos perdidos. Somos nós que desenhamos o horizonte do nosso mundo e prendemos as amarras aos mundos dos outros, aqueles que vemos construir os seus mundos pessoais à distância e que nos enriquecem a existência.

Nasci com o meu mundo vazio, impoluto, com uma única e grande amarra a ligar-me ao ser que me deu a vida, uma corda de titânio indestrutível, construída ainda no seu interior, quando compúnhamos uma única pessoa. Depois de nascer, construí outra grande ligação. Do meu pequeno mundo observava os seus dois mundos, ligados também entre si por uma amarra, mais ou menos estável, que se renovava diariamente. Desde o primeiro momento comecei a construir o meu mundo, observando e aprendendo como os meus pais cuidavam e melhoravam os seus próprios mundos pessoais, ajustando os horizontes em função da minha existência.

Durante a infância construí montes e planícies, neste meu mundo pessoal, fazendo um lento percurso através deles, percurso esse que ainda hoje continuo. Ao longo da caminhada, neste solo de areia macia com partes dolorosas de granito cortante, construo as amarras aos mundos de familiares e de amigos que entram e saem da minha vida, deixando sempre algo deles próprios como rastos de amarras antigas. Nesta altura começo a definir os meus horizontes, sempre muito altos. Com a idade, aprendo a baixá-los. Já não sonho ser astronauta, quero ser médico. Depois, quando os sonhos começam a perder-se, dissolvidos pela crueza da realidade, baixo ainda mais os horizontes. Ou melhor, aprendo a elevá-los: quero apenas ser feliz e germinar novas amizades, infinitamente sólidas e enriquecedoras. Os seus mundos brilhantes gravitam ao lado dos pequenos mundos individuais dos animais de estimação que me rodearam e rodeiam: o dos cães tem no centro uma árvore e um terreno para escavar; o dos gatos tem apenas um novelo de lã e uma caixa de cartão vazia. As suas amarras são fortes, duras como o aço e perduram muito além da sua vida.


Podemos desistir dos nossos sonhos e ambições. Passar a viver apenas pelo gosto da caminhada, nos nossos mundos pessoais, apreciando cada passo de uma forma quase orgásmica. O que não podemos é deixar de caminhar, mesmo que já não tenhamos força nas pernas. Nunca.   

quarta-feira, 24 de julho de 2013

Texto 6

Porque a solidão existe. Perfura-nos. Congela-nos num estado embrionário, granítico. É como uma casca que nos envolve e que só a vontade dos outros pode quebrar. A tua vontade. A tua existência. A tua imagem. Simples, deslumbrante. Cada gesto com que rasgas suavemente o ar, sinto que é para mim. O meu teatro pessoal, onde és a actriz principal de uma peça que eu sempre esperei – nela representas para mim, só para mim, em todos os dias em que te vejo, e também nos outros em que só habitas os meus sonhos. Só tu existes. Que se cale o mundo cego que só vê as diferenças, quando eu nem o tempo sinto quando estás perto. Que interessa se nasci antes, se nasci para te embalar a alma e te fazer rir e te limpar as lágrimas. Anda. Apanhemos o sonho das 7h30. Não, é muito cedo: gostas de dormir até tarde. Será antes o das 11h15, o dos bancos forrados a veludo. Levamos os nossos livros. Não. Não precisamos de livros: eu leio-te, e tu lês-me. Só o teu livro me interessa. Não me interessam os poemas, quando o meu poema és tu, a rima incerta que invade o meu mundo e me rompe a casca dessa solidão onde me escondi, onde me escondo de um mundo que já não percebe nada de amor, apenas da confusão dos corpos. Porque o amor puro é a minha única dádiva, sincera e absoluta. És tu. Sempre foste. Espalho o que sinto num rectângulo de papel A4. Imaculado. Como tu.

terça-feira, 9 de julho de 2013

Ilusão


“Amo-te, Rosinha.”
O velho berrava ao telemóvel que alguém tinha posto em alta-voz, na barbearia. Do outro lado, uma voz feminina retribuiu e depois desligou. O barbeiro faz-me sinal: é a minha vez. Passo pelo velho enquanto me sento, o olhar iluminado, enquanto contava a sua história, espicaçado pelos barbeiros.
“Conheci-a na loja. Fiquei imediatamente apaixonado. Fizemo-lo de pé.”
“E depois Celestino, o que aconteceu nove meses depois?”, pergunta o barbeiro, a navalha a raspar-me a pele do pescoço.
“Depois, nasceu o Celestininho e a irmã. Fiz-lhe dois gémeos!”
O barbeiro limpa-me um pedaço de espuma no canto da boca, enquanto lhe pergunta: “E depois, o que aconteceu na garagem?”
O velho eleva ainda mais a voz. “Quando estive com ela na garagem, fiz-lhe mais dois filhos!”
O barbeiro ri-se.
“Dois casais de gémeos, Celestino. Você tem cá uma força! E cante baixinho o que lhe cantou na sacada.”
Pelo espelho, vejo o Celestino emproar-se e começar a cantar um fado, o Xaile da minha mãe. Tem boa voz, devo reconhecer. O barbeiro pega no telemóvel, marca um número, põe em alta-voz e passa-o ao Celestino: “Cante para ela, Celestino!”.
Do outro lado do telemóvel, ouço uma voz de mulher. Ele distancia-se, enquanto recomeça o fado triste, ainda com mais fôlego.
“Pobre coitado”, sussurra o barbeiro, “Antes, andava deprimido, queria matar-se. Depois inventou que tinha uma amante. Nós ajudamos na mentira, espicaçamo-lo. É assim que ele é feliz.”
“E a voz ao telemóvel?”
“É um mendigo que gosta de se meter com ele. Imita bem a voz de mulher.”
            Entra mais um cliente na barbearia. Celestino desconcentra-se, a voz fica trémula, por fim cala-se. Por momentos vejo-o como ele é: um homem solitário que vive na mentira. Não: um homem solitário que os outros gostam que viva na mentira. Sem saber, é o maior motivo de gozação do sítio. Ou mesmo sabendo. É assim que se é feliz, quando se perde a noção do que é a realidade.

            Enquanto volto para casa, mais leve, não consigo esquecer este momento. O que será melhor: sobreviver na triste realidade, ou viver uma mentira feliz? 

sexta-feira, 19 de abril de 2013

Como sair do buraco, em 10 lições




            Afundo-me lentamente num buraco. É essa a sensação que tenho: preso a mim próprio, longe de tudo, com vontade de me afastar do que sou. Nada me interessa. O horizonte parece-me longínquo. Lá fora o sol pode brilhar para os outros, mas cá dentro o escuro impera, prende-me os movimentos e a alma. Não importa os motivos que me prenderam aqui, no meu buraco pessoal. É meu. Cuscos! Se quiserem ter o vosso buraco pessoal, esqueçam os vossos sonhos, anulem os vossos objectivos de vida, as casas, os carros e o dinheiro. Deitem fora os contactos dos amigos e regulem a vossa auto-estima para o nível mínimo. Ou melhor, desliguem-na. Tornem-se espectadores, inconfortavelmente sentados, das alegrias alheias, enquanto escavam lentamente o vosso próprio buraco pessoal. Aquele em que se enterraram em vida, sem terem direito a flores, aquele em que se isolaram do mundo exterior, sem repararem que o mundo exterior é, na realidade vocês, convencidos que são os restos da sociedade.
            Querem saber como sair do buraco em 10 lições? 

            Cá vai:

Lição número 1: não existe buraco. Também não existem pessoas que sejam 100% felizes. Quando muito podem esforçar-se muito para o parecer. Todos têm os seus problemas, até o homem mais rico do mundo os tem. Aprende a viver com esses mesmos problemas, mas nunca pares de sonhar. Procura o teu lugar no mundo. Aprende uma coisa diferente todos os dias, até encontrares aquilo que te faz feliz e dedica-lhe todas as tuas forças, sempre com a noção de que vão existir sempre problemas. Rodeia-te de bons amigos, que te compreendem e te aliviam a carga. Liberta-te de tudo o que está a mais na tua vida. Ama. Ama com fartura. O coração é mais inteligente que o cérebro, e sabe bem o caminho que pretendes. Escuta-o e procura quem o queira escutar. Não encontrarás a felicidade no teu buraco pessoal, mas pode ser que a encontres dentro do buraco pessoal de outras pessoas que tenham, também elas, reduzido dramaticamente o seu nível da auto-estima. Ajuda-as a ser feliz. Porque a auto-estima tem esta coisa curiosa: alimenta-se da auto-estima das pessoas que te rodeiam, e cresce quando as fazes felizes.

Lição Número 2: não existem mais lições. Ninguém te vai ensinar a ser feliz, muito menos um texto parvo como este. É um caminho que tens de percorrer a solo, sempre com o ouvido no coração (recomendo um estetoscópio, um curso avançado de Yoga ou alguém com bom ouvido que te queira acompanhar – dá sempre prioridade a esta última opção). Sempre que precisares de mais textos parvos para te aliviar o percurso, eu estarei aqui, sentado inconfortavelmente no meu buraco pessoal.