segunda-feira, 29 de julho de 2013

Texto 7

Nunca deixar morrer o sonho é o primeiro passo para sermos felizes. Mesmo que o mundo dos outros nos berre e nos deixe sozinhos no caminho, com um rasto deixado pelos nossos erros e fragmentos dos sonhos perdidos. Somos nós que desenhamos o horizonte do nosso mundo e prendemos as amarras aos mundos dos outros, aqueles que vemos construir os seus mundos pessoais à distância e que nos enriquecem a existência.

Nasci com o meu mundo vazio, impoluto, com uma única e grande amarra a ligar-me ao ser que me deu a vida, uma corda de titânio indestrutível, construída ainda no seu interior, quando compúnhamos uma única pessoa. Depois de nascer, construí outra grande ligação. Do meu pequeno mundo observava os seus dois mundos, ligados também entre si por uma amarra, mais ou menos estável, que se renovava diariamente. Desde o primeiro momento comecei a construir o meu mundo, observando e aprendendo como os meus pais cuidavam e melhoravam os seus próprios mundos pessoais, ajustando os horizontes em função da minha existência.

Durante a infância construí montes e planícies, neste meu mundo pessoal, fazendo um lento percurso através deles, percurso esse que ainda hoje continuo. Ao longo da caminhada, neste solo de areia macia com partes dolorosas de granito cortante, construo as amarras aos mundos de familiares e de amigos que entram e saem da minha vida, deixando sempre algo deles próprios como rastos de amarras antigas. Nesta altura começo a definir os meus horizontes, sempre muito altos. Com a idade, aprendo a baixá-los. Já não sonho ser astronauta, quero ser médico. Depois, quando os sonhos começam a perder-se, dissolvidos pela crueza da realidade, baixo ainda mais os horizontes. Ou melhor, aprendo a elevá-los: quero apenas ser feliz e germinar novas amizades, infinitamente sólidas e enriquecedoras. Os seus mundos brilhantes gravitam ao lado dos pequenos mundos individuais dos animais de estimação que me rodearam e rodeiam: o dos cães tem no centro uma árvore e um terreno para escavar; o dos gatos tem apenas um novelo de lã e uma caixa de cartão vazia. As suas amarras são fortes, duras como o aço e perduram muito além da sua vida.


Podemos desistir dos nossos sonhos e ambições. Passar a viver apenas pelo gosto da caminhada, nos nossos mundos pessoais, apreciando cada passo de uma forma quase orgásmica. O que não podemos é deixar de caminhar, mesmo que já não tenhamos força nas pernas. Nunca.   

quarta-feira, 24 de julho de 2013

Texto 6

Porque a solidão existe. Perfura-nos. Congela-nos num estado embrionário, granítico. É como uma casca que nos envolve e que só a vontade dos outros pode quebrar. A tua vontade. A tua existência. A tua imagem. Simples, deslumbrante. Cada gesto com que rasgas suavemente o ar, sinto que é para mim. O meu teatro pessoal, onde és a actriz principal de uma peça que eu sempre esperei – nela representas para mim, só para mim, em todos os dias em que te vejo, e também nos outros em que só habitas os meus sonhos. Só tu existes. Que se cale o mundo cego que só vê as diferenças, quando eu nem o tempo sinto quando estás perto. Que interessa se nasci antes, se nasci para te embalar a alma e te fazer rir e te limpar as lágrimas. Anda. Apanhemos o sonho das 7h30. Não, é muito cedo: gostas de dormir até tarde. Será antes o das 11h15, o dos bancos forrados a veludo. Levamos os nossos livros. Não. Não precisamos de livros: eu leio-te, e tu lês-me. Só o teu livro me interessa. Não me interessam os poemas, quando o meu poema és tu, a rima incerta que invade o meu mundo e me rompe a casca dessa solidão onde me escondi, onde me escondo de um mundo que já não percebe nada de amor, apenas da confusão dos corpos. Porque o amor puro é a minha única dádiva, sincera e absoluta. És tu. Sempre foste. Espalho o que sinto num rectângulo de papel A4. Imaculado. Como tu.

terça-feira, 9 de julho de 2013

Ilusão


“Amo-te, Rosinha.”
O velho berrava ao telemóvel que alguém tinha posto em alta-voz, na barbearia. Do outro lado, uma voz feminina retribuiu e depois desligou. O barbeiro faz-me sinal: é a minha vez. Passo pelo velho enquanto me sento, o olhar iluminado, enquanto contava a sua história, espicaçado pelos barbeiros.
“Conheci-a na loja. Fiquei imediatamente apaixonado. Fizemo-lo de pé.”
“E depois Celestino, o que aconteceu nove meses depois?”, pergunta o barbeiro, a navalha a raspar-me a pele do pescoço.
“Depois, nasceu o Celestininho e a irmã. Fiz-lhe dois gémeos!”
O barbeiro limpa-me um pedaço de espuma no canto da boca, enquanto lhe pergunta: “E depois, o que aconteceu na garagem?”
O velho eleva ainda mais a voz. “Quando estive com ela na garagem, fiz-lhe mais dois filhos!”
O barbeiro ri-se.
“Dois casais de gémeos, Celestino. Você tem cá uma força! E cante baixinho o que lhe cantou na sacada.”
Pelo espelho, vejo o Celestino emproar-se e começar a cantar um fado, o Xaile da minha mãe. Tem boa voz, devo reconhecer. O barbeiro pega no telemóvel, marca um número, põe em alta-voz e passa-o ao Celestino: “Cante para ela, Celestino!”.
Do outro lado do telemóvel, ouço uma voz de mulher. Ele distancia-se, enquanto recomeça o fado triste, ainda com mais fôlego.
“Pobre coitado”, sussurra o barbeiro, “Antes, andava deprimido, queria matar-se. Depois inventou que tinha uma amante. Nós ajudamos na mentira, espicaçamo-lo. É assim que ele é feliz.”
“E a voz ao telemóvel?”
“É um mendigo que gosta de se meter com ele. Imita bem a voz de mulher.”
            Entra mais um cliente na barbearia. Celestino desconcentra-se, a voz fica trémula, por fim cala-se. Por momentos vejo-o como ele é: um homem solitário que vive na mentira. Não: um homem solitário que os outros gostam que viva na mentira. Sem saber, é o maior motivo de gozação do sítio. Ou mesmo sabendo. É assim que se é feliz, quando se perde a noção do que é a realidade.

            Enquanto volto para casa, mais leve, não consigo esquecer este momento. O que será melhor: sobreviver na triste realidade, ou viver uma mentira feliz?