domingo, 3 de julho de 2022

O Executivo




O Jaguar atravessou a selva citadina num passo rápido, com a segurança própria de quem sabe que a cidade lhe pertence. No interior do habitáculo impecavelmente climatizado, o executivo tinha pressa em chegar a casa, depois de mais um dia de massacrantes reuniões. Ter uma conta bancária com sete dígitos implicava algumas cedências. Sorriu. Um som indicou uma chamada. Uma voz feminina fez-se ouvir no sistema de som, substituindo o Konzert für 2 violinen de Bach. A esposa ia sair novamente com as amigas. A filha estava em Espanha. O filho no Algarve. Era um dos raros momentos em que podia dizer que estava sozinho e, ao contrário do comum dos mortais, o Executivo considerava a solidão como sendo um bem precioso. 

Tinha sido assim desde sempre, sem tempo para nada. Os pais queriam que ele fosse o melhor em tudo. Piano, Inglês, Francês, explicações. Ao fim de semana tinha de os acompanhar nos eventos sociais onde era apresentado às pessoas mais desinteressantes que pensava existirem no mundo. Ao crescer deu-se conta do seu erro: o número de pessoas desinteressantes era infindável, enquanto que as pessoas realmente interessantes era ridiculamente pequeno e raramente consideravam os executivos como pessoas minimamente interessantes. Para as pessoas que o surpreendiam, o dinheiro, o poder, o carro ou a casa eram completamente irrelevantes. No mundo dele, eram essas as únicas coisas que interessavam.  

Chegou ao portão da casa, que abriu pelo telemóvel. Abriu também a porta da garagem, onde normalmente estava o Mercedes da mulher e o BMW eléctrico da filha. Estranhou os espaços vazios, mas era uma estranheza agradável. Reconheceu a falta do vazio na sua vida, tal como tinha notado antes a falta de solidão. Estacionou o Jaguar e saiu. Percorreu o corredor que automaticamente acendia as luzes à sua passagem. Afinal, não estava sozinho, havia outra entidade inteligente em casa. Por mais artificial que fosse a sua inteligência, era sempre diferente do que falar para as paredes. Pelo menos a casa respondia-lhe. 

Percorreu os corredores luxuosos até chegar ao seu destino, uma porta com um teclado numérico. Digitou o código com a mão direita, tapando-a com a mão esquerda como fazia normalmente, não fosse haver uma câmera escondida. Entrou numa divisão relativamente pequena, cuja luz acendeu manualmente. Ali, o técnico que tratara dos automatismos da casa não tivera acesso. Nem sequer a mulher ou os filhos, quanto mais o técnico… Tinha sido indicado no contrato que tinha feito com a esposa. Ele tinha de ter uma divisão da casa só para ele. Tinha de ter direito aos seus segredos. Ela fartara-se de reclamar, mas o Executivo mostrou a mesma fibra que demonstrava nas reuniões dos Conselhos de Administração.  

Tirou a gravata, deixando-a espalhada pelo chão. Isso seria um sacrilégio no entendimento da esposa, bem como a cerveja gelada que tirou do frigorífico. Para ela, só podia haver vinho naquela casa. Cerveja era coisa de gente pobre. Ele sorriu. Depois abriu a garrafa com um isqueiro. Simulou um brinde à esposa e aproximou-se da mesa onde estava uma construção gigantesca feita de Legos. Sentou-se, tirou algumas peças coloridas de uma caixa e, depois de algum planeamento, dedicou-se à sua actividade favorita: a recuperação da infância.