domingo, 4 de dezembro de 2022

Triplo Oh



Sentado na cama branca do hospital psiquiátrico, Jeremias esperava. Não se podia dizer que mostrasse algum tipo de ansiedade. A quem lhe perguntasse a razão da sua espera, ele responderia apenas com um “ninguém”. Era o utente mais calmo do serviço, quase não precisando da medicação que transformava todos aqueles que por ali passavam em estátuas apáticas, incapazes de sentir qualquer tipo de emoção. Na hora das visitas, observava atento a chegada dos familiares dos outros utentes, respondendo com um sorriso amável a todos os que sorriam para ele. De resto, era conhecido pelo seu comportamento exemplar e afável: sempre que possível, tentava acalmar e ajudar. 

Dele apenas se conhecia o primeiro nome. Não tinha documentos, nem dinheiro, nem família. Trazia apenas a roupa que vestia na altura da sua apreensão pela polícia. Nos bolsos, tinha apenas um pedaço de giz vermelho e um lenço imundo. Para o enfermeiro Simões, era uma verdadeira incógnita. Mesmo que tivesse anos de experiência, e tivesse visto muitos casos semelhantes de sem-abrigo que tinham ido parar à ala masculina do hospital psiquiátrico, alguns deles por vontade própria, para escapar da fome e/ou do frio, Jeremias era um caso à parte. Extremamente educado, calmo, divertido. Sempre pronto a ajudar o próximo. Onde estava o homem furioso que desatara a partir a decoração natalícia do Centro Comercial e que deixara em prantos as crianças com a visão de bonecos do Pai Natal degolados e de renas com as pernas decepadas e de uma destruição sem fim? O homem estava ali, à sua frente sentado na cama. Calmamente à espera por um Godot anónimo. 

“Sente-se bem, Senhor Jeremias?”, perguntou Simões. Jeremias respondeu afirmativamente, com um sorriso aberto. 

“E do que está à espera?”

“Estou à espera que os sonhadores voltem a sonhar, Senhor Enfermeiro Simões. Que dia é hoje?”.

  “23”

“Amanhã é o dia da ilusão. As pessoas tentam redimir-se nas prendas de um ano inteiro de ausências. Ainda se lembra de celebrar o Natal quando era criança, Simões?”

“Sim. Não havia dinheiro. Nunca tinha aquilo que desejava, mas era uma altura mágica. Lembro-me do cheiro a canela e das rabanadas. E dos meus tios que cantavam, felizes. Agora sei que estavam bêbados. Mas fazia parte. Quanto a amanhã, vamos ter a ceia de natal. Não se esqueça.”

Ele riu-se de uma forma matreira. 

“Já não vou estar aqui.”

Simões estranhou a resposta, mas despediu-se e foi à sua vida sem pensar muito no assunto. Se fizesse caso de todas as coisas estranhas que os utentes diziam, desconfiava que em pouco tempo seria um deles.

No dia seguinte, Simões foi acordar Jeremias, tendo bem presente o que este tinha dito. Antes de colocar a chave na fechadura, imaginou encontrar uma cama vazia. Mas ele estava lá. Ainda a roncar como um desalmado. Simões aproximou-se e tocou-lhe no braço. 

“Acorde, Jeremias.”

O utente virou-se para o outro lado. 

“Acorde. Afinal ainda está cá.”

“É hoje?”

“Sim. Hoje é hoje. Véspera de Natal.”

“Então é hoje que me vou embora. As pessoas precisam de mim.”

Simões abanou a cabeça. 

“O Dr. Álvaro ainda não deu alta. E, mesmo que saísse daqui, para onde iria? Lá fora está a chover e faz frio. Vai voltar para a rua, Jeremias?”

“Não estou aqui a fazer nada. Vou-me embora.”

“Fique connosco esta noite. Amanhã falamos com o Doutor.”

Simões saiu, com um sorriso dissimulado no rosto: o médico não poderia dar alta no dia seguinte, porque era feriado. Ele sabia disso, e desconfiava que Jeremias também sabia.

O sem-abrigo levantou-se, mas mantinha a mesma conversa. Foi à casa de banho. Lavou-se. Começou a cantar uma música de Natal no original, em alemão. Num sotaque irrepreensível. 


Stille Nacht, heilige Nacht

Alles schläft; einsam wacht

Nur das traute hochheilige Paar.

Holder Knabe im lockigen Haar,

Schlaf in himmlischer Ruh!

Schlaf in himmlischer Ruh!” 


Vestiu-se e saiu para o corredor branco. Ao contrário do que era seu hábito, quando passava os dias sentado na cama, à espera de algo que teimava em não acontecer, agora andava pelos corredores. Cumprimentava todos os que encontrava, com um ar mais ou menos alienado. Continuava a cantar, com um sorriso aberto nos lábios. Os olhos, outrora lisos de emoção, transformaram-se em duas pequenas estrelas. O seu bom humor todos contaminava, alguns tentavam acompanhar a música com a versão portuguesa. Até os enfermeiros cantavam. Aquilo poderia passar por ser um musical da Disney, mas era apenas mais um dia na ala do internamento masculino do hospital psiquiátrico. 

Simões chegou e viu imediatamente a diferença no ambiente. 

“Estou a gostar de ver, Jeremias. Ainda bem que não foi embora.”

“Ainda bem que AINDA não fui embora. Há pessoas a precisar de mim. Especialmente neste Natal. Já viu como a esperança desapareceu? A angústia das pessoas, o aumento do custo de vida, da miséria? E a guerra, Simões, a guerra. Devia ser proibida a guerra no Natal. E fora dele.”

“Jeremias, nós não podemos mudar o mundo. Pensamos que podemos, mas na maior parte das vezes nem conseguimos mudar os nossos próprios destinos.”

“Já tentou mudar o mundo, Simões?”

“Para ser verdade, nunca tentei.”

“Raios, homem! Nesse caso, como é que sabe que não é possível mudar? Pior: não impeça os outros de tentar mudá-lo! É quase como dizer ao sonhador para não sonhar. Mesmo sabendo que se não sonhar, a pessoa pura e simplesmente morre.”

E foi à sua vida. Durante o dia, Jeremias brincou, jogou, animou. Chegado à noite, juntaram-se todos no refeitório e tiveram a ceia possível. Jeremias era, de todos, o mais animado, não dando mostras da quantidade de medicamentos que tomava. Fizeram uma pequena troca de presentes. Coisas pequenas, camisolas, meias, gorros. Cada um que recebia o seu presente fazia uma festa, era quase como se recebesse um Rolex último modelo. No meio dos risos e das anedotas, Jeremias pediu para ir para o quarto. Simões abriu-lhe a porta, com a noção exacta de que seria a última vez que o faria. Era um pressentimento estranho, algo que sabia dever ser tomado como certo e definitivo. Jeremias despediu-se como fazia todas as noites, desta vez dando parte de cansado.

No dia seguinte, Simões abriu a porta do quarto e deu com a cama vazia. Ou melhor: havia um boneco que Simões reconheceu e enfiou imediatamente no bolso, num gesto dissimulado para que não fosse visível nas câmeras de vigilância dos quartos. Na parede havia uma porta toscamente desenhada a giz. Simões deu o alarme. O diretor pediu para ver o vídeo. Nele via-se Jeremias a entrar no quarto. Simões despede-se e fecha a porta. Jeremias senta-se na cama e espera até às 24h. No último segundo levanta-se, vai até à parede e desenha uma porta, não se esquecendo do puxador. Depois olhou para a câmera e disse adeus. Pousou a mão no puxador desenhado a giz e a porta abriu-se. Do outro lado veio uma luz imensa que fez com que não se visse nada na gravação. Quando desapareceu, levou com ela Jeremias. 

O diretor abanou a cabeça. 

“O que vamos dizer, senhor diretor?”, perguntou Simões. 

O diretor disse apenas: “Ele fugiu. Só precisam saber disso.”

“E quem era ele?”

O diretor não sabia. Tinha suspeitas que mantinha em segredo para não parecer ridículo. Simões foi para casa. No metro, não parava de pensar no assunto. Em cada rosto que via, parecia estar a ver Jeremias. O sorriso aberto, os olhos a brilhar. O Natal fazia aquilo às pessoas. Transformava-as. Só era pena que durasse tão pouco tempo.

No bolso trazia um boneco. Um action man. Exatamente igual ao que tinha pedido quando era criança. E ele sabia que já não estavam à venda. Foi com esse pensamento na cabeça que entrou no apartamento minúsculo onde vivia com Luísa e o filho de ambos, o Lucas, um autêntico dínamo de seis anos e um intenso cabelo vermelho. Simões tirou o boneco do bolso e ofereceu-o ao filho. 

“Gostas?”

“É giro, papá. Quem é que te deu?”

“Foi o Pai Natal.”, respondeu Simões, sem qualquer dúvida. E no sorriso aberto do filho reconheceu o sorriso de Jeremias.