quarta-feira, 11 de outubro de 2023

O monstro precisa (mesmo) de amigos

 Eu nasci sem entender
A forma certa de viver
Até que a vida me ensinou
(Ornatos Violeta)


João regressava a casa com aquilo que se podia chamar de “humor de cão”. Conhecia a expressão, mas desconhecia a sua origem. Todos os cães que conhecia tinham mais sorte do que ele e mesmo os que viviam na rua tinham a felicidade de conhecer a liberdade. Tinha doze anos, estava no sétimo ano de uma escola básica na Maia. Era pequeno para idade e desajeitado. Na escola os mais velhos e até os mais novos implicavam com ele. Hoje tinham ido mais longe e rasgaram-lhe o casaco. O seu único casaco. Não tinha dúvidas do que ia acontecer quando chegasse a casa. 

As coisas eram diferentes quando a mãe estava em casa, mas agora já não estava em casa. Fugira de casa e desaparecera. Estava há dois anos sozinho com o pai. Os piores anos da sua vida, o que é uma coisa terrível de se pensar quando se tem apenas doze anos. Era mais feliz antigamente, com as discussões constantes? Não, mas tinha saudades de estar com a mãe, de ir com ela para o parque e comer um gelado – sempre dos mais baratos, porque o dinheiro sempre faltou naquela casa. Agora com o pai de baixa médica por motivos de saúde, não havia dinheiro para nada. O casaco tinha sido oferecido e o João gostava dele, mesmo parecendo um anão com ele vestido. Era quente e estava a borrifar-se para o que os outros pensavam. 

Entrou no prédio num passo lento. O elevador estava avariado, pelo que subiu os quatro andares. Parou algum tempo na porta do apartamento, indeciso entre ir para casa e fugir. Se calhar era o que fazia de melhor. Encheu o peito com a pouca coragem que lhe restava e abriu a porta. A televisão debitava futebol a altos berros. Cheirava a vomitado. O João apressou-se a ir para o quarto, mas o pai apanhou-o a meio. Tinha um sexto sentido para os problemas. Era grande e forte. Os braços tinham quase a grossura da cintura do João. Viu o rasgão no casaco e a chapada atirou o menino para o chão. Não adiantava explicar. O bafo a cerveja sentia-se no corredor, mas o pior era o ódio que o João lhe via nos olhos. Como se ele tivesse culpa de existir. Correu para o quarto, subiu para a cama e chorou.   

No dia seguinte não tinha aulas. A bochecha estava roxa, pelo que ele não queria estar com ninguém. Também não podia fazer queixa. Não tinha mais ninguém. Deambulou pela cidade, evitando as outras pessoas. Deu consigo em frente à casa. Não tinha outro nome. Era a “casa”. Estava fechada há muito tempo. Dizia-se que habitava nela um demónio e que por vezes desapareciam pessoas. Ele sentiu-se enfeitiçado pela casa. Esgueirou-se por um buraco no portão, pequeno demais para uma pessoa adulta, mas ele era pequeno. Atravessou o jardim, que agora não passava de mato. Arranhou-se todo, mas sabia que tinha de continuar. A porta da frente estava entreaberta. Foi com uma maior certeza que empurrou a porta do que tinha aberto a porta de casa no dia anterior.  Sentia-se estranhamente calmo, como se pertencesse àquele lugar. Espirrou com o pó. Havia partes do tecto que tinham caído, pelo que podia ver o céu coberto de nuvens. Subiu as escadas, que rangiam a cada passo. Sentia que no andar de cima estava alguma coisa que o chamava. O demónio, talvez? No fundo do corredor havia uma porta fechada. Forçou a maçaneta e a porta abriu-se. O quarto estava escuro. O que aconteceu a seguir foi rápido. Mãos projetaram-se para fora do quarto e puxaram-no para dentro. Sentia os pulsos a latejar de dor, mas não gritou. A coisa estava ali dentro. Conseguia vê-la quando os seus olhos se habituaram à penumbra. Grande, grotesca. Olhos vermelhos famintos, cheiro pestilento. Um barulho de respiração que enchia o quarto, a boca aberta cheia de dentes e exalando um hálito nojento. 

E o João continuava calmo. A criatura parou. 

– Não tens medo de mim? – Perguntou o demónio, numa voz gutural.

O João abanou a cabeça e explicou: estava farto de ter medo. Aquilo não era pior do que o seu dia-a-dia. O monstro largou-o e coçou a cabeça. Era novidade para ele. Normalmente as pessoas tinham medo e fugiam, ou conseguia apanhá-las antes de fugirem e serviam de snack. Mas não ter medo dele? Aquele inseto falante não tinha medo dele? Aqueles eram tempos terríveis, pensou. Devia começar a pensar na reforma. Será que a Segurança Social atendia demónios? 

– Tens nome? – perguntou o João. Aquela era outra novidade. Normalmente o demónio não perdia tempo nem a falar nem a brincar com a comida.

– Não.

– Sou o João. Vivo com o meu pai a dois quarteirões daqui.

– Ele deve estar preocupado contigo.

– Há pais que não se preocupam com os filhos. Se soubesse que eu tinha morrido, provavelmente fazia uma festa, mas não dizia a ninguém para continuar a receber o “abrono”.

– “Abono”, João.

– Tu ias comer-me?

– Sim.

– Porquê? O que é que eu te fiz?

– Não fizeste nada. Tinha fome.

– E agora?

– Agora continuo com fome, mas já não te vou comer.

– Porquê?

– Porque és meu amigo. E porque tens coragem.

O João riu-se. Nunca ninguém tinha dito que ele tinha coragem. Mas afinal ali estava, a dar gargalhadas com a besta. Foi-se embora com a promessa de voltar e voltou. Trazia carne que pedia nos talhos para dar ao seu cão. “De que raça é?”, perguntavam, e ele dizia que era um rafeiro grande. O demónio deleitava-se com a carne. Isso impedia-o de comer pessoas, mas ele nunca tinha gostado dessa parte da sua natureza. O ser humano já tinha um fardo demasiado pesado com as suas breves vidas, a lidar com a precariedade no emprego, o custo da habitação e a falência do Sistema Nacional de Saúde. Ainda tinham de lidar com outros demónios? Não, disse o demónio. Agora tinha um amigo. Um único amigo, e isso bastava-lhe. 

Foi numa sexta-feira. O pai até tinha estado bem a semana toda, mas começou a beber na quinta-feira e na sexta-feira mal se aguentava de pé. Foi por um motivo qualquer que o João recebeu a estalada. Mas ele não fugiu como costumava fugir. Deitou um olhar desafiador ao pai e foi para o quarto num passo lento. Isso irritou de sobremaneira o pai, que foi atrás dele. A porta fechada à chave foi aberta ao pontapé. Tirou o cinto e bateu uma e outra vez. O João tremia. Sentia a dor mas mantinha-se calmo.

Foi à quarta chicotada que uma força imensa atirou o pai para fora do quarto. Ele ali estava, o demónio. Olharam os dois para o corpo inerte do pai do João. 

– Posso comê-lo? – perguntou o demónio.

O João ainda hesitou antes de recusar. Havia muitas crianças na sua situação que tinham amigos imaginários, mas quantos teriam demónios guarda-costas?