Anália
(com N) encontrou a morte numa noite fria de Outono. Ou a morte
encontrou-a já caída na rua, o sangue escorrendo abundantemente de
sete feridas profundas provocadas pelo punhal de um amante em fúria.
O dia começara estranhamente feliz, eles num estreito abraço onde o
mundo parecia fazer sentido para a caixa de supermercado de 27 anos.
Ela tinha um segredo. Guardara-o em silêncio durante
as últimas semanas,
receosa da reacção de Fábio. Mas como se guarda o silêncio da
vida que lhe crescia no ventre? Naquela noite contar-lhe-ia e seriam
felizes, os três.
Na
esplanada da Brasileira, Manuel releu o que tinha escrito. Aquele era
o início de um livro policial que tinha em mente há alguns meses.
Cravou o isqueiro à empregada de cabelo multicolor que sem o saber
seria uma das personagens do livro. Ele limitou-se a agradecer no seu
cinismo habitual que a crítica não lhe poupava. Diziam
que nas veias dele já não jorrava sangue mas apenas tinta, mas ele
estava-se a cagar: desde que os livros vendessem, podia-lhe jorrar no
sangue até a vodka com que se encharcava todas as noites.
Uma
rapariga aproximou-se. Era magra, tinha uma tatuagem grosseira no
braço. Os olhos eram pequenos, quase sumidos. Estavam fixos nele e
transpareciam uma raiva imensa. “Porreiro, mais uma leitora
ofendida”, pensou Manuel, apenas um segundo antes que ela se
sentasse à sua frente.
–
Desculpe, mas não me lembro de a conhecer nem de a convidar a
sentar-se. – Exclamou, com uma raiva evidente.
–
Chamo-me Anália. Aquela que acabou de matar.
Manuel
ficou em silêncio durante alguns segundos.
–
Estou, portanto, à frente de uma personagem de um dos meus livros.
Ou será isto uma brincadeira de mau gosto?
–
O Fábio ama-me. Pode ter os seus defeitos, como todas as pessoas.
Mas o senhor, como monstro que é, decidiu que eu devo morrer logo à
noite, depois de lhe contar que estou grávida.
–
É apenas uma história de ficção.
–
Uma história de
ficção, uma grandecíssima ova! Eu estou viva. Sou real. Pelo menos
até logo à noite.
–
Já percebi. E o que pretende?
–
Pretendo o que toda a gente quer: a felicidade. Quero poder viver e
ser mãe. Só isso.
Manuel
olhou para ela. Para a personagem do seu livro que estava
perfeitamente desesperada. A ideia de alterar o livro era
perfeitamente disparatada – ele precisava de um crime. Só assim
fazia sentido um livro policial. Não estava no ADN dele fazer
histórias cor de rosa ou numa gradação de cinzento. Acreditava
piamente que, por algum motivo, estava à frente da personagem do seu
livro. Convivia com a ficção diariamente, pelo que não lhe custava
pensar nessa possibilidade. Via até a possibilidade dele próprio
não passar de uma personagem de um texto de um autor qualquer de
qualidade duvidosa.
–
Muito bem, deixe-me pensar nisso. A sua personagem vai viver, não
sei muito bem como. Tenho de alterar tudo.
Anália
sorriu e levantou-se. Deu a Manuel um beijo na face e afastou-se.
Manuel acendeu finalmente o cigarro
e consultou o relógio. Estava a ficar atrasado. Fechou o portátil e
guardou-o na pasta de couro Louis Vuitton que comprara em Paris no
Natal passado. Pagou e dirigiu-se ao parque de estacionamento. Sentiu
passos atrás de si. Pensou que fosse um dos muitos turistas que
calcorreavam Braga em qualquer altura do ano. Virou-se e deu de caras
com um homem novo, dos seus trinta e poucos anos, que investiu sobre
ele. Manuel sentiu uma pressão enorme na barriga. Viu
o sangue e o aço da navalha a sair-lhe do corpo, depois de lhe
rasgar a carne. O agressor deu-lhe mais seis golpes antes de
aproximar a boca do ouvido de Manuel e sussurrar-lhe:
“Isto é para aprender a não se meter com a mulher dos outros”.
FIM