O Meu
Novo EU
Q
|
uando
vi no jornal a notícia, nem queria acreditar. Era aquilo que eu procurava: “Saia
de si próprio, mude de vida. Seja outro.” Era aquilo, sem tirar nem pôr. A
Laura não se queixava, mas eu invejava secretamente a elegância e o aspecto dos
outros. Queria deixar de usar os óculos grossos, de ser baixo, gordo e calvo. E
músculos, queria ter músculos, não aquela massa amorfa de banha. A Laura não se
queixava, mas eu sim. E agora aquele anúncio. Liguei de imediato, tão imediato
que nem dei pelo facto de ter pegado no telemóvel e marcado o número. Do outro
lado foram muito simpáticos e marcaram uma entrevista, como qualquer outro
vendedor, quando pretende marcar uma entrevista para vender o que quer que
fosse, e eu queria comprar – queria MUITO comprar um outro EU.
A entrevista correu bem. Explicaram-me que era um
processo que estava na fase final dos testes, pelo que seria bastante barato.
Ficaria a pagar uma mensalidade.
“E o que acontece se não puder pagar?”, perguntei
eu. Eles responderam que me devolviam o meu antigo-EU.
“Está bem, então”, disse eu, radiante, e sem querer saber o que eles iriam
fazer com o meu antigo-Eu; mas eles explicaram-me o
processo: o meu antigo-EU, biológico, seria colocado
num congelador, enquanto que a minha personalidade e memórias seriam passadas,
na íntegra, para um corpo sintético, absolutamente igual a um corpo biológico,
só que sem a possibilidade de ter filhos (a Laura também não podia ter filhos,
pelo que já tínhamos pensado em adoptar); além disso, seria eterno. Viveria
para sempre. Essa possibilidade interessou-me de imediato: uma eternidade com
um corpo decente, em vez de uma vida limitada com este corpo defeituoso. Aceitei
de imediato. Faria uma surpresa à Laura com o meu corpo novo, um presente de aniversário
(já lhe tinha comprado coisas mais caras, afinal).
Fizeram-me um questionário sobre o corpo que
preferia. Olhos? Azuis. Cabelo? Castanho. Altura? 1 metro
e oitenta. Sexo? Masculino XXL. À medida
que completava o questionário -parecia que estava na fila do McDonalds para escolher as opções do menu McEU-, cheguei à conclusão que ficaria absolutamente
perfeito.
Perfeito.
Assinei o contrato e paguei o sinal de entrada.
Demoraria um mês a ficar pronto. Fiquei todo contente. Escondi todo o processo
da Laura, e continuámos a nossa vidinha de sempre, sem lhe referir o facto de
que iria ter uma versão renovada de MIM. Um MIM 2.0, muito melhor. Perfeito.
Devastadoramente atraente. Só para ela.
Aquele mês demorou muitos meses a passar, até que,
finalmente, o dia chegou. Observei o meu novo EU deitado, inerte, e senti-me
orgulhoso. Eu iria passar a ser assim. Deitei-me e fui adormecido, de forma a
ser feita a passagem das memórias e da personalidade.
Acordei e abri os olhos de imediato. Apercebi-me,
imediatamente, de que estava diferente. Via, cheirava e ouvia muito melhor.
Levantei-me e tentei dar alguns passos, sem grande dificuldade. Ainda vi levarem
o meu corpo antigo (e parecia realmente feio e disforme). Vi-me ao espelho.
Tinha realmente um bom aspecto.
Mas.
Havia sempre um mas, bem grande por sinal. A minha
cara.
Observei-a mais de perto, ao espelho.
“Porque é que não consigo sorrir?”, perguntei,
tendo logo outro susto ao ouvir a minha voz. Era fria, seca, muito diferente da
minha voz antiga, bastante quente. Laura gostava da minha voz. Responderam-me
que podiam ajustar a voz, e que os músculos da cara iriam ao sítio num par de
dias.
Acreditei neles. Saí do
edifício convencido de que Laura iria ter uma boa surpresa.
Mas
não teve, tive muito trabalho para que ela acreditasse que era eu. E ela então
disse-me que não gostava. Não era Eu. Ela amava o meu EU antigo, não aquele
pedaço de borracha perfeito. Ela gostava das minhas imperfeições, sentia um
arrepio na espinha sempre que ouvia a minha voz antiga. Não conseguia amar este
novo EU. Perfeito demais. Seria como amar um manequim.
Tive a mesma reacção de toda a gente com quem
falei. Apreciavam o meu EU anterior. Preferiam a minha imperfeição. A decisão
estava tomada. Mesmo que as outras mulheres se sentissem visivelmente atraídas
por este novo eu, a única que eu queria que se sentisse atraída não estava,
pelo que a decisão seguinte era fácil de tomar: tirar o meu EU antigo do
congelador, e voltar a vesti-lo.