Mais uma página em BRANCO
Bolas, mais uma página em BRANCO,
e agora? É do caraças. Toca a inventar uma personagem - branca, como a página.
Mas também poderia ser negra, azul ou às pintinhas. No dia em que o milímetro
de epiderme definir a pessoa pelo seu todo, as galinhas terão dentes, e pelo
mesmo motivo: o da estupidez, pura e dura. Mas adiante. A minha personagem
chamar-se-á Pedro. Tem um pequeno escritório de contabilidade, vive sozinho num
apartamento normalíssimo. Aliás, toda a sua vida é absolutamente normal, tão
normal que ele tem a impressão de não ter vida. Talvez seja essa a razão dele
não conseguir ter um relacionamento mais estável: a sua insustentável
normalidade de pessoa normal, heterossexual assumido, algo quadrado nas
atitudes. Gosta de música dos anos 70 e 80, abomina o que é tocado nas
discotecas e bares. Por essa e por outras, Pedro sente-se sozinho e tem
tendências para a depressão. Até brinca com isso: “Mais deprimido do que eu, só
mesmo a situação económica do país”, matuta ele, enquanto termina mais um
modelo 22. Mas ainda mais adiante: Pedro está apaixonado. Descobriu há pouco
tempo, e mudou completamente o seu mundo cinzento. A culpada chama-se Céu
Vermelho. Não, não é brincadeira. Ele está apaixonado por um perfil anónimo que
habita no seu Facebook. Nunca viu sequer uma fotografia dela, mas todas as
conversas que tiveram deu-lhe essa certeza, a certeza de ter conhecido a sua
alma gémea. Não se trata apenas da concordância de gostos, mas também a
concordância nos maus gostos, ainda mais importantes. Os dois gostavam das
mesmas coisas, coisas essas que as outras pessoas pensavam não ter valor
absolutamente nenhum. Foi com espanto, por exemplo, que Pedro descobriu que Céu
Vermelho tinha, como ele próprio, um fascínio pelos filmes pornográficos do
início dos anos 80. Nunca tinha conhecido uma mulher que gostasse daquilo, mas
Céu Vermelho gostava, e isso tinha feito o clique: Pedro passou o seu estado
civil para SOLTEIRO, MAS APAIXONADO. Quando chegou a essa conclusão, passou a
tentar, de todas as formas, encontrar-se com ela. Sabia que viviam na mesma
cidade. Sabia que passavam pelos mesmos sítios. Mas ela não queria encontrar-se
com ele. Continuava a mesma presença indefinida no seu Facebook. Se calhar,
pensava ele, talvez fosse um fantasma. A rede social estaria habitada por
fantasmas: almas gémeas não corporizadas, virtuais. Comentários seguintes
deram-lhe, no entanto, pistas do contrário. Céu Vermelho conhecia-o
pessoalmente. Sabia os seus hábitos. Isso limitava o seu âmbito de procura: do
mundo, passou à cidade onde vivia, depois delimitou a zona da cidade, as ruas,
até que finalmente chegou à conclusão, certa e definitiva, de que costumava ir
ao café onde tomava o pequeno-almoço todos os dias. A partir desse momento,
passou a observar tudo e todos no café: clientes, empregadas, baixas, magras,
gordas, obesas, altas. Todas eram escrutinadas, e, por um motivo ou outro, postas
de lado. Havia no entanto uma empregada por quem ele tinha especial fascínio.
Talvez fosse pela sua forma simples de ser, pela sua simpatia genuína. Mas
havia um senão: ela namorava. Seria a sua alma gémea comprometida? Que
desperdício de gemelaridade. Ela não dava pistas, mesmo assim, pelo que ele
abandonou a procura.
“Desisto”,
escreveu ele no chat.
“Desistes
facilmente. Eu bem vejo que tu procuras. Mas não procuras no lugar certo”, foi
a resposta, e ela não voltou a tocar no assunto.
Não
existe um lugar certo para se procurar aquilo que não se sabe que se procura.
Entretanto, Pedro conversa cada vez mais com a empregada do café, quando esta está
sozinha. É uma conversa estranha – ele a beberricar um café horrível (porque a
simpatia da empregada era inversamente proporcional ao seu talento para tirar
cafés), ela do outro lado do balcão a fazer coisa nenhuma, sempre em movimento,
para que pareça estar a trabalhar à vista das câmaras que o patrão instalara. O
assunto veio à baila quando ele se sentiu mais à vontade para falar dele: perguntou-lhe abertamente se ela era a pessoa
que usava a alcunha de “Céu Vermelho” no Facebook. Ela disse que não. Nem tinha
Facebook. “E o que lhe faz pensar que é uma mulher?”, perguntou ela. Ele
reconheceu que ela tinha razão. A sua alma gémea, fantasma da Internet, ou o que
quer que fosse, nunca se tinha assumido como mulher, nem muito menos como
homem. Mas sabia que ela(e) ia àquele café. As conversas entre ele e a
empregada do café continuaram, tornaram-se mais frequentes e mais profundas.
Ela não era a empregada de café típica. Aluna de letras, tinha sido obrigada a
sair da universidade por não poder pagar as propinas – mas mesmo assim
conseguia manter o encanto e o bom-humor. Concordou em tentar descobrir quem
era Céu Vermelho. O Pedro abanou a cabeça, olhou para ela e disse-lhe para não
o fazer. Para quê procurar quem não queria ser encontrado, se o que ele queria
estava à sua frente?
Pseudo-epílogo
Só muito mais tarde, já depois de
morarem juntos, é que a empregada do café, a futura Sra. Pedro, lhe revelou a
mentira. Céu Vermelho era ela, mas nunca acreditaria num homem que se
apaixonasse por uma presença anónima numa rede social. Durante meses ela dera
pistas do que sentia, mas ele não lhe prestava atenção. Esse Pedro de
antigamente era bem burro, comentou o Pedro de agora, com a certeza de que,
desta vez, seria feliz.