terça-feira, 5 de maio de 2015

Sapos, princesas e tudo mais



- Diz-me que não puseste o nome DELE no saco, Ana! Se me calha a mim, eu… eu… - gritou a Inês. Depois afagou a raiva com um gole de cerveja. Estavam as três no quarto da Maria, com os Muse aos berros. O vizinho de cima já tinha chamado a atenção mas a Maria estava-se nas tintas para ele. Que chamasse a polícia e a GNR, ela não se importaria, pensou a Inês. Com a bebedeira com que estava, até podiam vir os bombeiros, que a filha da dona da casa não se importaria. Mas era isso que a Inês mais gostava na loucura da amiga de cabelo roxo. 
A Ana era mais discreta mas, mesmo assim, quando lhe dava para descarrilar também fazia estragos. As três eram inseparáveis, cada uma com 18 anos feitos há pouco. Faziam por não ter nada na cabeça. A escola não lhes interessava: sabiam que haveria um dia de lhes aparecer um marido rico e estupidamente bonito para as sustentar. 
- Vou ser a primeira – anunciou a Ana. Afinal, a ideia tinha sido dela. Tirou um papel do saco e guardou-o na mão sem ler. Depois estendeu o saco à Maria, que fechou os olhos e tirou, por sua vez, um papel. A Inês foi a última. No saco tinham posto os nomes de todos os rapazes da turma. E todas rezavam para que não lhes tivesse calhado na rifa o Borbulhas, mais conhecido por Sapo, pela configuração da cabeça, estranhamente parecida com a de um sapo. 
- Portanto, vamos ter de andar com quem nos calhar na rifa, durante uma semana, e depois abandoná-lo da forma mais humilhante possível.  – relembrou a Maria. Fazendo um brinde, as três beberam mais uma cerveja.  
A Ana abriu o papel dela, leu o nome que lá estava escrito e respirou de alívio. Entre os anormais da turma, tinha-lhe saído o mais normal, o Rodrigo. A seguir, leu a Maria o dela. Tinha-lhe saído o Rui. O desportista por quem todas as raparigas da escola suspiravam. Tinha namorada, mas a Maria sabia todos os truques. Foi então que a Inês leu o nome que estava no papel dela e as amigas viram que ela mudara de cor. 
- Merda… saiu-me o Sapo. 

O difícil, pensou a Inês, não era conquistar o Diogo. Ela sabia que ele gostava dela, mas isso não conseguia fazer com que esquecesse a boca desmesurada e as borbulhas que ele tinha semeadas pela cara. Invejava os rapazes que tinham calhado na sorte às amigas. Elas ainda se iam conseguir divertir. Ela, por outro lado, teria de fazer o sacrifício inimaginável. Se ao menos conseguisse ficar a mais de um metro dele. Decidiu tentar sem olhar para a cara dele. Se o fizesse, sabia que perderia a coragem. Arranjou forma de ficar sozinha com ele. Fingiu precisar da ajuda dele. Ele, sempre atencioso, parecendo bastante surpreso com a oportunidade, ajudou-a, levando-lhe o saco até ao bar. Ela tinha dado um mau jeito às costas.
- Queres que te faça uma massagem? – perguntou ele. 
- Não. Dispenso. – disse ela. 
O Diogo riu-se. 
- Estava a brincar. Ainda te punha pior. A minha irmã disse-me que sou a pior pessoa a fazer massagens que ela conhece. Sabes, tenho muita força nas mãos e … 
Estavam no bar. Ela deixou que ele lhe pagasse o lanche, sempre sem tirar os olhos da mesa. Não acreditava no que estava a acontecer. Ele voltou com um prato com croissants e dois sumos. Ela agradeceu. 
 - O que dirias se te convidasse para sair, logo?
“Sair? O Diogo, afinal, era apenas feio”, pensou a Inês, que já se imaginava num qualquer bar de Braga.
- Pode ser. Onde vamos? – respondeu ela. Viu, pela expressão do corpo do Diogo, que ficara eufórico com a notícia. 
 - É surpresa. – respondeu. 
Combinaram às 20h. Ele foi buscá-la a casa, conforme prometido. Nem nesse momento ela teve coragem para olhar para a cara dele. Estava a ser melhor do que ela pensara, não queria estragar tudo com a visão das borbulhas. Só a ideia repugnava-a.
- Onde vamos? – perguntou ela. Na sua cabeça via perfeitamente a lista de sítios onde queria ir, mesmo que o facto de aparecer lá com o Diogo pudesse estragar a sua reputação. Ela reparou que ele olhava para a roupa dela.
- Desculpa. Queria fazer-te uma surpresa, mas já vi que devia ter-te explicado. Nós não vamos a nenhum bar nem a nenhuma discoteca. Eu faço voluntariado. Pensava que quisesses vir comigo. Vamos distribuir comida pelos sem-abrigo. 
A Inês levou algum tempo até digerir completamente as palavras do Diogo. Depois, percebeu que tinha a noite estragada e que era bom que a semana passasse depressa. A Maria mandou-lhe uma mensagem. A Inês leu, com toda a raiva acumulada, que a Maria e o Rui estavam num bar. Enviou-lhe uma mensagem com um palavrão e, depois, decidiu sacrificar-se. Os sem-abrigo que viessem e que a noite passasse rapidamente. Seguiu o Diogo até à sede da instituição. Ali, a Inês conheceu a Sara, uma mulher dos seus trinta anos, extremamente simpática. Tinha os braços tatuados. A Inês gostou imediatamente dela. Era-lhe estranhamente familiar. Alguma vantagem teria de ter daquele frete. Os três meteram-se numa carrinha e foram pelas ruas de Braga, a distribuir comida às pessoas que os esperavam nos sítios habituais. Contrariamente ao que tinha pensado antes, a Inês até que estava a gostar da experiência. Ao fim de algum tempo, já convivia com as pessoas, que, além de comida, precisavam também de alguma atenção. Nunca a Inês pensaria estar a fazer aquilo. 
“O q fazes com o anormal?”, perguntou, por SMS, a Maria. 
“Tou a ajudar os pobres”, respondeu ela. 
“Tas o quê?!?!?! :)”, respondeu a Maria. 
E, a partir daí, a Inês deixou de olhar para o telemóvel. Terminou a noite cansada mas estranhamente feliz. Tinha ouvido histórias, tinha visto sorrisos em quem pensara não puderem existir, um calor humano intenso. No final, a Sara, o Diogo e ela foram beber uma cerveja a um bar. Então, enquanto a Sara ia ao WC, o Diogo perguntou-lhe apenas: 
- Reconheces a Sara? 
- Não. 
- É a vocalista das X-Women. 
O queixo da Inês caiu. Conhecia-a como Sarah X, mas andava sempre com maquilhagem muito carregada. Nunca lhe passaria pela cabeça da Inês que passara a noite com a vocalista do grupo de Braga preferido dela. Quando a Sara regressou do WC, com o seu sorriso simples de sempre, a Inês procurou à pressa um papel e uma caneta. 
- Dá-me um autógrafo, por favor. Sou tua fã, ... eu … 
Foi só naquele momento em que a Inês estava mais nervosa que calhou olhar para a cara do Diogo. E teve um choque. 

- O que aconteceu à tua cara, Diogo? – perguntou a Inês no regresso para casa. 
- Foi por isso que não olhaste para mim uma única vez, hoje? Aliás, creio que nunca olhaste. Os tipos como eu são invisíveis para as raparigas, Inês. Com o tempo, habituamo-nos a isso. Deixamos de sonhar, mesmo com a rapariga que nos povoa os nossos sonhos. Sabes o que eu senti hoje de manhã, quando aceitaste sair comigo? O tratamento que fiz não vai mudar quem sou. Vai apenas fazer com que as raparigas como tu deixem de falar de mim como falam. Pensas que eu não sei?
A Inês não sabia onde se meter. Estava perante um rapaz completamente diferente da ideia que tinha feito dele. Despediu-se, envergonhada, e foi para casa. 

No dia seguinte, o Diogo fez-lhe uma proposta que ela considerou ainda mais estranha.
- Vem jantar a minha casa. 
Ninguém convida uma rapariga para jantar em casa, com os pais, no segundo dia em que saem, mas ela lá aceitou. Conheceu os pais dele, pessoas extremamente simpáticas. O jantar foi divertido. No fim, o Diogo fez-lhe um convite ainda mais estranho: queria mostrar-lhe o quarto. A Inês aceitou. 
- Fecha os olhos. Confia em mim. Vais gostar.
E a Inês fechou-os, sem hesitar. Depois ele puxou-lhe com delicadeza pela mão e orientou-a pelo quarto. Depois fez-lhe sinal para se sentar. Ela sentiu que estava na cama.
- Não vais fazer nada de esquisito, pois não? – perguntou ela, genuinamente divertida com a situação. 
- Depende do que entenderes por esquisito. Agora, não abras os olhos. Não imaginas o quanto eu sonhei com este momento. 
- Imagino. – deixou escapar a Inês, apenas um segundo antes de sentir a música a envolvê-la. Um violoncelo a interpretar o Highway to hell dos AC/DC. O Diogo tinha uma boa aparelhagem sonora, pensou, antes de abrir os olhos e ver como estava enganada: era o próprio Diogo que tocava o violoncelo, a um canto do quarto. O rosto concentrado, as duas mãos a executar movimentos precisos, vigorosos. A Inês imaginou, por momentos, aquelas mãos a percorrer-lhe o corpo e notou como, afinal, era bonito o rosto do Diogo.

“E agora?”, perguntou-se a Inês. Estava cada vez mais envolvida por ele. Nunca imaginara que houvesse uma Inês tão diferente da Inês que os outros estavam habituados a ver. Mesmo em casa, todos tinham notado a diferença. Até havia a ideia de fazer um ano de voluntariado antes de irem para a Universidade. E ela que nunca lhe passara essa ideia pela cabeça. Como dizer às amigas? A semana tinha acabado e elas continuavam com a sua ideia. 
Na sexta-feira, a Ana acabaria com o Rodrigo, à frente de todos. Pouco depois, a Maria faria o mesmo com o Rui, que era amigo do Diogo. Antes que a Inês pudesse falar com este último, o Rui falou com ele. 
Foi o Diogo que tomou a iniciativa de falar com a Inês. Ela já não conseguia ver nele o Sapo ou o Borbulhas. Tinha tomado mesmo uma decisão temerária. As amigas que a desculpassem, mas nenhum rapaz a fizera sentir-se tão assim. Queria dizer-lhe isso, mas ele antecipou-se.
- O Rui já me disse. Fiz papel de palhaço. Estava a achar sorte a mais. A rapariga dos meus sonhos, com um rapaz como eu? Onde é que eu estava com a cabeça. Estas coisas só acontecem em filmes. Ou em contos de qualidade duvidosa. Não quero falar mais contigo. – disse ele, virando depois as costas à Inês e afastando-se num passo decidido.

- E agora, a que é que vamos apostar? – perguntou a Maria. Havia novamente uma grande quantidade de cervejas pelo chão do seu quarto e a música aos altos berros. A Inês não conseguira, sequer, tocar numa cerveja. 
- O que estamos a fazer? – perguntou ela.
A Ana olhou para a amiga. Tinha o olhar vidrado. Tinha estado a fumar coisas estranhas com a Maria. A Inês não quisera tomar parte daquilo. 
- Estamos a divertir-nos. Que mais importa na vida? – perguntou a Maria. 
A Inês levantou-se e pegou na bolsa. 
- O que mais importa na vida? Para começar, a coisa que mais importa na vida é viver. – e bateu com a porta, saindo sem rumo pela cidade. Consultou o relógio. Sentia um vazio enorme por dentro e um arrepio de frio. Estaria, talvez, a ficar com gripe. Mas não seria por isso que não ficaria na rua. Passou por alguém conhecido. Um sem-abrigo que conhecera no primeiro dia em que saíra com o Diogo. Ele notara a tristeza dela e oferecera-lhe um sorriso. Quem não quase nada, oferece o pouco que lhe resta, pensou a Inês. Pouco tempo depois, eles começaram a aparecer. Cinco pessoas puseram-se em fila, entre eles um homem bem vestido mas com o olhar despido de esperança. Trazia uma menina pela mão. A Inês cumprimentou-os e pôs-se no fim da fila. 
A carrinha branca apareceu pouco tempo depois. Quando o Diogo saiu dela, esboçou para a Inês um sorriso. O primeiro de muitos.  

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