segunda-feira, 11 de maio de 2015

Cho-co-la-te


“Chocolate”, pensou o João. Ele não tinha mais de dez anos e, àquela hora, deveria estar na escola. A verdade era que ele não gostava da escola, mas preferia estar lá do que naquele quarto a cheirar a bolor. 
“Chocolate”, pensou, novamente. Tinha acordado irritado, depois de sonhar que estava com os pais. Tinha saudades deles. Tinha saudades de tudo. A Maria mexeu-se. Dormia por baixo dos poucos cobertores que tinham e que cheiravam mal. O João tinha voltado a urinar todas as noites, desta vez, por um motivo válido: já não sabia há quanto tempo estava encerrado naquele quarto. 
E tudo por causa da porcaria do chocolate. O João tinha prometido a si próprio que, se escapasse daquela situação, nunca mais na vida comeria chocolate. 
Cho-co-la-te.
Lembrava-se de quando andava na escola a aprender a ler. Aquela tinha sido uma das palavras que lhe tinha dado mais prazer aprender. Ele era viciado. Preto, castanho, branco, com ou sem avelãs. Marchava tudo. A sua irmã era mais comedida. Dois anos mais nova, berrara constantemente nos primeiros dias, agora apenas soluçava, à medida que chegara à conclusão de que os nossos pais não os iam conseguir encontrar. 
Cho-co-te-la.
A loja ficava nos subúrbios da cidade, numa zona onde os pais nunca os deixariam ir sozinhos. Mas o João tinha de ir. Por azar, a Maria estava com ele. Ele lembrava-se de tudo, de entrar na estranha loja e de ficar maravilhado pela quantidade enorme de chocolates de todas as formas e feitios. Deitou a mão ao bolso e tirou todo o dinheiro que tinha trazido. A senhora, de aspecto louco e uma grande verruga no nariz, logo lhes apresentou uma amostra de um chocolate especial. 
“O melhor da casa”, dissera a senhora, dando-lhes dois grandes quadrados de chocolate. O João comeu. Nunca tinha comido nada tão bom. Mas foi sentindo cada vez mais sonolência. Quando olhou para o lado e viu a irmã no chão, já adormecida, o João deu-se conta de ter sido drogado. Depois, tudo se apagou, para acordar naquele quarto imundo. Eles berraram e bateram à porta. A senhora lá veio e disse-lhe que era o castigo por terem ido até ali, sozinhos. Se fizessem barulho, não teriam comida nem água. 
“Depressa vos soltarei, meus queridos.”, disse a senhora, com um estranho e desagradável ar angelical. 
As horas logo se transformaram em dias. Lá fora, o João ouvia o barulho da cidade, os carros, as ambulâncias, os tiros, as pessoas a gritar. 
Lá fora. 
Quando se está tanto tempo preso, e em especial quando se tem 10 anos, começamos a delirar. O João sentia que estava lá fora, a correr e a brincar com os amigos. Tinha saudades deles. Muitas. 
A Maria acordou. Olhou em volta. O João percebeu que ela tinha tido mais um sonho. Pouco falava, agora, e nunca sorria. Era o João que cuidava dela, que lhe repetia as frases aconchegantes que costumava ouvir à mãe (que saudades tinha dela). 
Porque tinha compreendido que era a única forma de conseguir fugir daquele sítio, ele fez-se amigo da senhora. A Maria não compreendeu a atitude, zangou-se com ele. Depois, pela primeira vez em dias, o João saiu do quarto. A senhora obrigou-o a trabalhar. A casa, antiga, tinha muito para limpar. Ele trabalhou arduamente. A senhora mantinha a irmã no quarto, pelo que ele nem sequer tentava fugir. Ao fim da tarde, com o corpo todo dorido, voltava para o quarto. A Maria voltava-lhe, então, as costas. No entendimento dela, o João já esquecera que tinha uma casa com um pai e uma mãe que não descansariam enquanto não os encontrassem. 
Na realidade, em momento algum o João se esquecia da casa e dos pais. Eram essas lembranças que o faziam esforçar-se ao máximo para conseguir ganhar a confiança da senhora. Com o tempo, desenvolvera um plano. Era perigoso, extremamente perigoso mesmo, mas devia funcionar. O João conhecia agora os cantos à casa, pelo menos os cantos que não estavam fechados à chave. A senhora carregava com ela um cadeado com as chaves todas. A casa era velha, de boa construção. A senhora estava sempre constipada. Sim, devia funcionar, pensou ele. Pelo menos nas séries que costumava ver, funcionava. Mas aquela era a realidade. Uma realidade cruel à qual queria, desesperadamente, escapar. 
Naquela noite fez as pazes com a irmã. Disse-lhe apenas que se escondesse no canto mais afastado da cozinha, e se cobrisse com as mantas e os cobertores. Ela, mesmo sem nada compreender, assim fez. 
No dia seguinte, a senhora veio chamá-lo, sem suspeitar do plano que o rapaz arquitectara. Ele tinha de limpar a cozinha, o que era exactamente o que ele queria. Assim que ela saiu, por momentos, ele ligou os bicos do gás do fogão. Depois, pegou num novelo de lã e mergulhou-o no petróleo de um candeeiro antigo que a senhora tinha na cozinha. Tal como pensara, a senhora não se apercebera do cheiro do gás. O João saiu, então, da cozinha. Estava nervoso. As mãos tremiam-lhe. Pegou no novelo ensopado em gasolina, fez uma funda com um pedaço de tecido que tinha escondido por trás de um móvel. Tirou um isqueiro que tinha encontrado e que tinha, também, escondido por trás desse mesmo móvel. Ateou fogo ao novelo e, com a funda, atirou-o para a cozinha, escondendo-se por trás da parede. Aninhado contra a parede, fechou os olhos e tapou com as mãos os ouvidos.
A explosão fez abanar tudo. O João nunca tinha sentido tanto medo na sua vida. Quando o fumo se dissipou, ele correu para a cozinha. Estava tudo negro e fumegante. Um corpo inerte jazia no chão. Fechando os olhos, o João procurou o bolso do avental daquela que tinha sido a sua captora durante aquelas semanas. Não sentiu a mínima pena, apenas uma alegria imensa quando, finalmente, conseguiu as chaves. Voltou num instante à porta do quarto onde tinha estado preso. Procurou rapidamente a chave certa. Lá fora, tentavam arrombar a porta. O João ouvia vozes aflitas. Mas a Maria ainda estava mais aflita. Ela correu para ele, a chorar, o corpo tremendo de medo. 
- Vai ficar tudo bem. – disse ele, por fim, com a confiança renovada. Mesmo assim, não queria ficar mais tempo naquela casa, pelo que se escapuliu pela porta dos fundos com a irmã, e com a firme decisão de nunca mais na vida tocar em chocolate.

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