segunda-feira, 4 de maio de 2015

Capuchinho Vermelho revisitado




Vitória ou Vicky, como gostaria que os amigos a chamassem, se ela porventura tivesse amigos, era uma rapariga enigmática, dos seus vinte e muitos anos. Mudara-se há pouco tempo para aquele bairro de Gondomar e não conhecia ninguém. Era tímida, mas, mesmo assim, dava nas vistas sempre que andava pela rua com a sua mini-saia justa ao corpo perfeito (Deus tinha sido generoso quando a criara – as más línguas, no entanto, diziam que era obra do demónio). Não tardou a ser o alvo dos piropos de todos os homens das redondezas. A todos ignorou, até que as pessoas começaram a duvidar da sua sanidade mental, tal era o alheamento que cultivava em redor de si própria. Ninguém lhe conhecia amigos nem amigas. A ninguém dirigia a palavra. Costumava voltar para casa num passo lento, sempre sem se desviar do caminho, por vezes de noite. 
Outra particularidade da Vitória era o facto de andar sempre, quer fizesse um calor abrasador ou um frio tremendo, vestida com um casaco vermelho de cabedal com um capucho gigantesco. Começaram a gozá-la por causa disso. Era a “capuchinho vermelho”. Ela ignorava-os, como fazia quando lhe lançavam piropos. E assim se passaram meses, até que, movido pela curiosidade, um rapaz mais atrevido lhe resolveu montar o cerco. Sabia sempre a que horas ela passava e ele ficava a esperá-la, tentando meter conversa. Vitória capuchinho vermelho continuava sempre a ignorá-lo, até que, finalmente, ela parou e disse:
- A minha avó disse que eu não devo falar com estranhos.
O rapaz sorriu, deitou o cigarro ao chão, apagando-o vigorosamente com o pé num gesto estudado. 
- Eu sou o Henrique. Chamam-me Lobo. 
A Vitória, muito séria, não disse nada. Continuou a andar. O rapaz seguiu-a até que ela parou e virou-se para trás. 
- Ouve, Lobo, escuta-me, a sério: eu não te quero conhecer. Ou melhor, tu não me queres conhecer. Eu sou uma pessoa muito perigosa.
O Lobo deu uma gargalhada. 
- Pois. Imagino. Mas repara, tu tens um capuchinho vermelho, eu sou o Lobo. Fomos feitos para estarmos juntos. – disse ele, acendendo um novo cigarro. Ofereceu-lhe um a ela, que aceitou. O Lobo acendeu o cigarro dela num ritual como tinha visto no cinema. 
- Sabes que a coisa não correu muito bem para o Lobo, nessa história, não sabes?
O Lobo encolheu os ombros. Vitória ficou com a noção exacta de que ele não conhecia mesmo a história. 
- Henrique, a sério: estás convencido de que eu vou ser conquistada por alguém que me segue na rua com atitudes infantis?
Henrique ficou em silêncio. Por fim respondeu, apenas:
- Estou.
E Vitória foi-se embora, para o seu apartamento no prédio mais sujo que havia no bairro.

Na noite seguinte, Henrique esperava-a novamente no caminho. Ela passou por ele, ignorando-o de novo. 
- O Lobo comeu a Capuchinho Vermelho e a avó, depois veio o caçador e abriu o lobo, salvando as duas. Depois puseram pedras dentro do lobo e ele morreu ao tentar beber água do poço.
Vitória virou-se para trás e sorriu-lhe, mas sem afrouxar o passo.
- Fizeste o trabalho de casa. Parabéns. 
Ele foi atrás dela, apressando o passo. 
- Sabes, esta história não tem lógica. 
Vitória parou.
- É uma fábula, Lobo. Ensina que as meninas devem ter cuidado, e não falar com estranhos. Muito menos com Lobos. 
Henrique provou, então, que não era fácil desarmá-lo. 
- Vejamos: em primeiro lugar, tu já sabes o meu nome, embora eu não saiba o teu. Em segundo lugar, embora já esteja com sede, não gosto de água. 
Henrique esperou que Vitória esboçasse um sorriso, por mais pequeno que fosse. Mas não tinha conseguido nada. Absolutamente nada. 
- Não vais desistir, pois não?
Henrique abanou a cabeça. Não sabia o que era desistir, porque pensava que se escrevesse “dezistir”.
- Até conseguir sair contigo, não desisto. 
- Muito bem. Um dia, Lobo. Talvez um dia. 
Henrique fez um gesto de vitória, escancarado, mesmo à frente dela. 
- Ainda bem que te fiz feliz. Chamo-me Vitória. Vicky, para os amigos. Categoria na qual não te enquadras, entendido? 
Henrique fez sinal de ter entendido. Todos os dias esperaria por ela, durante uma semana, mas Vitória, Vicky para os amigos, nunca lhe dava as notícias que ele esperava. Até que um dia, quando ele já estava prestes a “dezistir”, ela disse, simplesmente: 
- Vamos?
E foram, Henrique transformado repentinamente no mais feliz dos homens. Jantaram, depois foram para um bar no Porto, de onde podiam apreciar toda a vista nocturna. 
- Eu posso ser a pessoa mais perigosa que já tenhas conhecido. Tens certeza de que te queres aproximar de mim? – perguntou ela, mas Henrique já estava enfeitiçado. Já não era mais Lobo, era um chihuahua amestrado, pronto a fazer tudo o que a dona mandasse. Voltaram para Gondomar no carro alterado dele, a lembrar os bólides da Velocidade Furiosa. Foi com Vitória até à porta do prédio onde ela morava, Henrique completamente obcecado por ela. Aceitou, sem pensar, o convite de Vitória para subir ao seu apartamento.
E o Henrique nunca mais foi visto desde então.

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