sexta-feira, 8 de maio de 2015

A invisibilidade de Amélia

- Conta-me uma história, papá! – pediu o Pedro, já na cama, os olhos ainda vivos de tanta correria. Eu acedo, sentando-me a seu lado. 
- Que história queres? 
- A minha preferida, papá!
Eu sorrio. Ser pai também é isso, saber, como ninguém, quais são as preferências dos filhos. 
- Já não estás cansado de ouvir essa história?
Ele abana a cabeça. 
- Muito bem. Vou começar… 
Mas o Pedro interrompeu-me. Queria ser ele a começar. Um hábito que tinha há muito tempo. Pedia-me para lhe contar uma história, mas acabava sempre por ser ele a contar. E eu adormecia a seu lado na cama. Hoje não seria assim, prometi a mim mesmo, como costumava prometer sempre. 

Era uma vez uma rapariga chamada Amélia. Ela tinha perdido os pais num acidente e fora viver com a tia para um grande prédio em Oeiras. Esta vivia com as duas filhas gémeas que, desde o primeiro momento, torceram o nariz a semelhante intrusão e começaram a fazer a vida negra à pobre rapariga. Depois foi a própria tia que a convenceu de que devia pagar a sua estadia com o trabalho de casa. Rapidamente Amélia se viu transformada na escrava da casa, enquanto suas senhorias faziam vidas de marquesas. Ela limpava a casa, tratava da roupa e fazia a comida. E ai se fizesse alguma coisa mal. Como se isso não fosse pouco, a Amélia fora obrigada a parar de estudar. Durante os primeiros anos que viveu com a tia ainda foi às aulas. Ela gostava da escola e os professores quase imploraram para que a tia a deixasse continuar os estudos, mas, na opinião desta, a prioridade de Amélia deveria ser a lida da casa. Como não tinha mais nenhum sítio para onde ir, com o passar dos anos, Amélia acomodou-se à sua condição de escrava. Saía à rua apenas quando era necessária alguma coisa para casa. Não falava com ninguém. Tornou-se quase invisível, até mesmo para as primas que apenas pareciam notar pela existência dela quando precisavam de roupa passada. 

O Pedro respirou fundo. 
- Queres que continue eu?
- Não, papá. É a parte em que entra o príncipe. Mas já não existem príncipes. 
- Existem, sim, filho. Mas não entram nesta história. 
E, então, já com a respiração refeita, o Pedro continuou a história.

Um dia, entrou uma família mais endinheirada para o prédio. Tinha comprado o apartamento que ficava na cobertura, um T4 duplex com tantos quartos que era necessário um GPS para se orientarem lá dentro. Era um casal que tinha um filho com dezanove anos, que imediatamente começou a ser disputado por todas as raparigas que viviam no prédio e arredores – entre elas as primas de Amélia. A própria Amélia sentiu que o coração lhe caía ao chão no primeiro dia em que ele passou por ela. Mas ela estava invisível, com a roupa de trabalho e sem se arranjar minimamente. 

- E, agora, vem a parte da festa, papá. Parece a história da Cinderela, não parece? 
Eu confirmo a suspeita do meu filho. Parece, mas não é. Tinha sido bem real, mas ele não sabia. 
(Ou isso, ou éramos, apenas, personagens de um conto de qualidade duvidosa. Rapidamente afastei essa hipótese: nenhum autor seria tão sádico ao ponto de inventar a situação calamitosa na qual o país se encontrava.)
Mas vamos à festa. 

Os pais do rapaz, de nome Tiago, vinham de longe e estavam pouco habituados ao costume citadino de se fecharem em casa a sete chaves, sem conhecerem quem os rodeia. Para se apresentarem à vizinhança, decidiram fazer uma festa e convidaram tudo e todos. A tia da Amélia tinha já outros planos, mas mandou as filhas (nem podia ela fazer outra coisa, porque a partir do momento em que elas se aperceberam do grande acontecimento, não falavam de outra coisa – iriam mesmo sem ser convidadas).  
Quanto à Amélia, feia como se achava, rejeitou o convite. 

O Pedro parou no ponto em que Amélia rejeitava o convite. 
- Papá, na Cinderela entrava a fada madrinha, que usou a sua magia para transformar a Cinderela. Mas, na realidade, não há magia. Eu sei. 
Olhei para o meu filho. Não havia nada de tão triste como alguém tão novo e sem acreditar em magia. 
- A magia existe, Pedro. Está dentro de cada pessoa. Se estiveres atento vês como existem pessoas mágicas, que te surpreendem em cada atitude. 
O Pedro olha para mim, muito sério. 
- Eu sei, papá. Como a mamã. Quando estou doente, não são os remédios do doutor que me curam, são os mimos dela. 
- Sim, Pedro. Como a mamã. Vamos continuar a história. 
- Bora lá. Iniciando a magia. 
Eu sorrio. Não lhe digo que, também ele, é mágico. Há-de descobrir um dia. Por enquanto, a única coisa que interessa é a sua voz a inundar o quarto enquanto narra o conto. 

Logo depois de ter rejeitado o convite, Amélia foi devastada pela maior depressão que sentira na vida. Nada lhe interessava. Perdera a coragem para aturar as primas e a tia. Perdera a esperança. A tia não reparou, como era seu hábito. Afinal, ninguém repara nas pessoas invisíveis. Ninguém, a não ser uma senhora idosa que vivia no terceiro andar e tinha muitos problemas de saúde. Chamava-se Lurdes e tinha um carinho muito grande por Amélia. Para a D. Lurdes, ninguém era invisível, especialmente quem precisava, desesperadamente, de ser visto. Encontraram-se um dia, no átrio do prédio. A D. Lurdes notou, imediatamente, que algo se passava. Suspeitou que tivesse a ver com a festa e decidiu agir. Pediu à tia da Amélia que deixasse a rapariga acompanhá-la à esteticista. A tia resmungou, mas a D. Lurdes, mulher vivida, conseguiu dar-lhe a volta. 
E lá foram as duas, a Amélia desconhecendo que a ida à esteticista era ela, e não para a D. Lurdes, que já não tinha idade para pensar em festas. E a espantada Amélia lá foi tratar de si. Esteticista, cabeleireira, loja de roupa. Regressou feliz, surpreendentemente bonita e cheia de sacos, que escondeu em casa. Como era invisível, nem a tia nem as primas deram pela diferença. 

- E ela foi à festa. – disse o Pedro. A mãe entrou, nesse momento, no quarto. Sentou-se ao meu lado, na cama e, com um olhar mais firme, indicou que a hora do conto tinha terminado. 
- Mamã, estava a acabar a história… 
 - Pedro, tu já sabes como acaba. 
- Mas, mamã, achas que foram felizes para sempre? 
A mãe sorri para ele. 
- Não sei. Ainda não vivemos tudo. Que achas, Tiago? Teriam sido felizes? – pergunta-me Amélia, com um olhar de malícia.
Eu levanto-me, em silêncio. Qualquer resposta é irrelevante para quem já a tem gravada na alma.  

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