quarta-feira, 27 de maio de 2015

O Frio

        O frio entranha-se. Corrói. João olha em volta. Está sozinho, em baixo da ponte. A sua casa. Há quanto tempo é a sua casa? Desde sempre. Não. Desde sempre, não. Há demasiado tempo. Ou há tempo suficiente para lhe chamar casa. Branco. O solo está coberto por um manto branco, iluminado pelo candeeiro de rua, a única companhia que João tinha. Nunca vira tanta neve nem tanto frio. Antes ainda tinha cobertores, roubados por alguém que precisava tanto ou mais do que ele. Agora tinha apenas as folhas de papel de jornal para se cobrir e uma caixa de fósforos. Pegou numa folha. À luz do candeeiro, leu a página. Era sobre política, uma inauguração qualquer. O João lembrou-se do tempo de escola e da professora que tivera na altura. Ela queria que ele aprendesse, mas o João só se interessava pelo que estava fora da sala de aulas, pela bola e pela brincadeira. Acende um fósforo e pega fogo à página. Aquece-se no fogo durante algum tempo. Parece ver a antiga professora. Ele sorri. Na altura, não gostara dela. Agora, à distância, via que ela só o queria ajudar. Fica algum tempo a olhar para as cinzas. Pega noutra folha de jornal. Vê a fotografia de uma família com crianças. Imaginou-se a si próprio em criança. A excitação do Natal, a abertura dos presentes. O sorriso dos pais. As lembranças tornam-se amargas quando deixamos de querer sonhar, pensou o João.
        (Outro pensamento do João: aquela era a noite da consoada. As pessoas estavam nas suas casas. Partilhavam sorrisos e presentes. Ele partilhava aquele espaço com um candeeiro e algumas folhas de jornal.)
        Parece ver-se a si próprio e aos pais na chama efémera da folha de papel. Tantos sonhos que tinha na cabeça na altura. Bastou um desvio. Más companhias. A história tantas vezes repetida. O vício toma conta dos sonhos. A vida desaparece como areia entre os dedos. Praia, calor. Sonhos quentes numa tarde de verão. Um Cornetto de Morango comido na sombra da esplanada. Amigos. Tinha tantos amigos na altura. Desapareceram, tal como a areia. E, quando não havia mais ninguém interessado em lançar-lhe a mão, também o João desapareceu. Tornou-se areia. Invisível para a sociedade.
        O João pegou, então, na última folha. O frio começava a tomar conta dele. Quase não sentia as mãos. Tremia tanto que a certa altura lhe pareceu que tremer era a coisa mais natural do mundo. Obituário. Olhou para a fotografia de um senhor de idade que lhe recordou o seu avô. Costumava ir caçar com ele. Mentira: o avô não caçava, mas usava essa desculpa para passear pelos campos com o neto. Ele tinha confiança no João. Talvez a única pessoa que sempre confiara nele. Onde estás, avô? Ensina-me outra vez a diferença entre os cogumelos. Deixa-me cheirar a terra molhada nos dias quentes de Julho. Avô?
        O João sentiu sono. Mais sono do que sentira alguma vez na vida. Já não tinha jornais: encostou-se contra o betão da ponte, de forma a abrigar-se do vento gélido que, de repente, levantara. Sonhou que estava com o avô. Era novamente criança e percorria uma longa estrada ao sabor da voz dele.

        No dia seguinte, o corpo enregelado do João foi encontrado já sem vida e com um sorriso nos lábios.

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