domingo, 10 de maio de 2015

A gótica e a ervilha

D. Matilde Vaz Sarmento era uma viúva riquíssima, cuja família descende da alta nobreza portuguesa. Tem como única riqueza, além de diversas propriedades e participações em empresas, o seu filho Carlos Vaz Sarmento. Este está prestes a fazer 30 anos. Nunca nenhuma das suas namoradas teve a aprovação da sua mãe. Foi, por isso mesmo, com bastante apreensão que ele decidiu apresentar Marta a D. Matilde. Tinha-a conhecido na faculdade. Depois de desistir do curso de Direito, Carlos decidira-se, finalmente, pelo curso de História da Arte. Foi então que conheceu Marta, uma artista plástica já relativamente conhecida no nosso país e no estrangeiro. 
- Tens certeza? – perguntou Marta. 
Se tinha a certeza? Carlos só tinha certeza de duas coisas: tinha certeza da força do amor que sentia por Marta e de que ela era exactamente o oposto da pessoa que a mãe esperava para noiva do filho. Marta tinha o corpo cheio de tatuagens, o cabelo negro com nuances em três cores, um conjunto de piercings nas orelhas e por cima das sobrancelhas. Vestia-se sempre de negro e usava uma maquilhagem carregada, numa onda gótica.
- Tenho, Marta. Ela não é assim tão má, e vai ser apenas um fim-de-semana. Depois, temos toda a vida à nossa frente. 
- Ela vai ter um ataque quando me ver. Tens a noção disso, não tens, amor?
O Carlos tinha a noção disso. Já tinha preparado o caminho. Dissera à mãe que ela era ligeiramente diferente das raparigas que a D. Matilde considerava ser as “raparigas da condição dela”, e que o Carlos achava sumamente entediantes, de uma superficialidade atroz. Torcia para que, desta vez, a mãe aceitasse. 
- Não te preocupes. Lembra-te do que falámos. 
- Sei. Eu tenho boa memória, tu sabes disso. Só não gosto do facto de ter de dormir sozinha. A sério, amor? Eu já não me lembro da última vez que dormi sem ti. Tu sabes disso. Tenho medo… 
O Carlos abraçou-a. 
- Tens medo de quê?
- Tenho medo de ti e da tua reacção.
- Não tens confiança em mim, amor? 
A Marta não respondeu. Não precisava. 

A D.Matilde veio receber o filho nas escadas da mansão. Carlos saiu do carro, depois deu a volta para abrir a porta a Marta, Carlos atento à reacção da mãe, que foi, exactamente, a que previam. A D. Matilde não gostara do que vira, mesmo que Marta tivesse vestido uma roupa que lhe escondia as tatuagens e tivesse tirado a maior parte dos piercings. A senhora sorria, mas não era um sorriso autêntico. Carlos sabia disso e a Marta tinha grandes dúvidas. 
Cumprimentaram-se. D. Matilde fez as honras da casa. Carlos levou as malas aos respectivos quartos. Marta ficaria no quarto dos hóspedes, enquanto Carlos ficaria no seu quarto habitual, que era do tamanho do apartamento que dividia com Marta. Correcção: era maior. Depois, foi ter com elas, que conversavam no jardim, junto à piscina. Pelo teor da conversa, Carlos depreendeu que a mãe ficara impressionada com a cultura de Marta, que, por sua vez, ficara impressionada com as pinturas que D. Matilde tinha espalhadas pela casa.
Na primeira oportunidade que tiveram para ficar a sós, a D. Matilde virou-se para o filho. 
- Carlos, tenho de ser directa neste assunto: sabes a vergonha que me estás a fazer passar? Esta rapariga não tem … 
O Carlos interrompeu-a. 
- Mãe, nós sabemos que não ia ser fácil aceitá-la, mas, sabe uma coisa? Não é a mãe que a tem de aceitar: sou eu. E já aceitei a Marta na minha vida há muito tempo. É uma pessoa com uma educação de luxo, de boas famílias. A aparência não é tudo e, hoje em dia, já ninguém liga a isso.  
- Mas, Carlos… 
- E é a mulher que eu amo. Deveria ser a única coisa a importar. 
Marta regressou nesse momento. Notou imediatamente a tensão, sabia que a sua presença era a causa e o olhar suplicante de Carlos a única razão que a fazia não lhe pedir para regressar a Lisboa – só por ele aguentou os nervos do resto do dia. À noite, quando se despediu de Carlos, pediu-lhe que ele fosse dormir com ela, mas ele sossegou-a. Depois, Carlos voltou para o seu próprio quarto, deixando-a sozinha no quarto de hóspedes da, subitamente inóspita, mansão dos Vaz Sarmento. 
O telemóvel deu sinal. Marta leu a mensagem e sorriu. Respondeu à mensagem do Carlos e dormiu com o telemóvel no travesseiro que, no seu entendimento, deveria ser de Carlos. 
(Mentira: não conseguiu adormecer. Levantou-se e tirou os lençóis da cama. O que descobriu por baixo deles deixou-a atónita e não a deixou pegar no sono.)

- Bom dia, amor. – cumprimentou Carlos, quando viu aparecer Marta na sala. Ele notou que havia alguma coisa de errado. Ela estava demasiadamente tensa. 
A mãe de Carlos apareceu logo de seguida. A criada estava a preparar a mesa para o pequeno-almoço. Marta olhava fixamente para algo pequeno que tinha entre os dedos. Carlos percebeu, imediatamente, que se passava alguma coisa. 
- Dormiu bem, Marta? – perguntou a D.Matilde.
Marta preferia ter falado com Carlos a sós, mas pensava que as coisas tinham de ser ditas frontalmente, doesse a quem doesse. 
- Não, não dormi, D.Matilde. Encontrei isto por baixo do lençol. – a Marta mostrou uma ervilha – E eu conheço o conto. “A princesa e a ervilha”, creio que é assim que se chama. A mãe do príncipe que testa a possível pretendente ao filho, colocando-lhe uma ervilha na cama. Eu sei disso. Posso ter um aspecto que a senhora não queria para o seu filho, mas é ele que tem de escolher. Eu sou assim, não vou mudar só porque tenho de agradar a A ou B. O Carlos é a única pessoa que quero agradar. E creio que a senhora não conhece o seu filho. Ele não tem nada a ver com este ambiente, este fausto que só serve para prender as pessoas numa ilusão. O mundo é muito mais vasto do que estas quatro paredes com um jardim e piscina. Eu, quando vim para aqui, sabia o que ia encontrar. Sabia que a D. Matilde procurava alguém que parecesse bem nas fotografias das páginas de qualquer revista. Garanto-lhe, no entanto, que nem eu nem o Carlos nos importamos com isso. Mas ser testada desta forma tão infantil, foi coisa que nunca esperei. Carlos, se não te importas, leva-me para Lisboa, ou chama, por favor, um táxi. 
D. Matilde ficou sem palavras enquanto via Marta sair da sala de estar. 
- Uma mulher com personalidade. – disse D. Matilde. 
- Sim, mãe. E agora, se me permite, vou falar com ela. – disse Carlos, levantando-se. 
- Só uma palavra, Carlos.
- Sim?
- Tens certeza de que gostas dela? 
- Sim, mãe. Já é uma certeza há muito tempo. 
- Então, vai lá atrás dela. Não lhe estragues o fim-de-semana. E outra coisa, querido… - o Carlos já ia a sair da sala, mas a mãe interrompeu-o. 
- Sim, mãe? 
- Para a próxima vez que puseres uma ervilha nos lençóis de alguém, por favor diz-me primeiro, para estar preparada. 
O Carlos sorriu. O seu teste tinha funcionado e a mãe passara com brilhantismo.
- Não vai haver próxima. – disse ele, enquanto subia, apressadamente, as escadas.  


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