sábado, 18 de abril de 2015

O estranho talento de um homem banal


Era uma vez…

(Raios, vou mesmo começar assim este conto? Não. É melhor começar de novo… :) ) 

Ele era o homem mais banal do mundo. Tão banal que já nem me lembro do seu nome. Acho que ninguém se lembra, não fosse um pequeno pormenor que descobrira quando era ainda criança e desejava o que todas as crianças da sua idade desejavam. Na altura, não era o último jogo da PSP Vita, porque ainda não existia, e os pais eram tão pobres que ele sabia, exactamente, até onde podiam ir os seus desejos. Não, ele não desejava nada de material. Queria apenas bom tempo para uma tarde de sábado bem passada com os amigos, não aquela chuva chata e o vento frio, tão normal em Dezembro. Ele olhou para o céu pela janela e desejou, com toda a força, que estivesse bom tempo. Sol e calor. Desejou-o com tanta força, fechando os olhos. Imaginou as densas nuvens negras dissiparem-se, dando lugar ao sol. De repente, estranhou o súbito calor que sentia e ficou absolutamente atónito quando descobriu que era verdade. Enquanto que em toda a cidade o frio e a chuva imperavam, na rua onde o rapaz morava abrira-se uma clareira nas nuvens e o sol quente espreitava. Ele não ligou muito ao fenómeno. Correu a chamar os amigos e, de facto, parecia ser o prenúncio de uma tarde bem passada, não fosse o facto de que o fenómeno tinha sido notado, não só na cidade, mas no país inteiro, e a rua encheu-se de jornalistas e carros e curiosos e tanta gente que eles tiveram de parar de brincar, porque havia demasiados carros e uma autêntica multidão na estrada. Só então o rapaz pensou no que tinha feito. 

O rapaz banal, que não tinha talento para coisa alguma, tinha, afinal, um talento escondido, e que podia tê-lo feito um homem rico, não fosse o facto dele não querer tornar-se uma figura do circo. Se aquele episódio da sua infância demonstrara algo, era que o talento podia virar-se contra ele. Não contou a ninguém, nem sequer aos pais. Guardou o segredo durante os anos da sua juventude como adolescente banal, tirou um curso absolutamente normal, que lhe permitiu conseguir um emprego onde passava os dias por trás de uma secretária a olhar para papéis. Conheceu a mulher dos seus sonhos absolutamente banais, conseguiu convencê-la, a custo, de que era o homem dos seus próprios sonhos. 

Casamento marcado, mãe desfeita em lágrimas, noiva em histeria: dizem que um casamento é abençoado quando acontece num dia de chuva. No caso deles, a bênção caía em catadupa, num dia de tempestade onde tudo ameaçava ir pelos ares. Ele olhou para a mãe e para a noiva e fez a única coisa que podia fazer um homem desesperado: desejou, com toda a força, que a tempestade parasse. E aconteceu um fenómeno que ainda hoje é motivo de falatório. Onde quer que ele estivesse, abria-se uma clareira no céu, deixava de chover e o sol aparecia. Todos os convidados ficaram espantados com o que acontecia. Alguns, amigos antigos, lembravam-se ainda de um fenómeno idêntico que tinha acontecido na infância deles, mas ninguém conseguia ligar o facto àquele homem que escondia o seu estranho talento por trás da sua incomensurável banalidade.

No final do Copo de Água, com alguns convidados na piscina enquanto o resto do país tentava resistir à chuva e ao vento, o pai dele, um senhor de uma respeitável idade e que levava uma existência quase tão banal como a do filho, perguntou-lhe, em segredo: “Gostaste da minha prenda?”
O filho coçou a cabeça, não tendo qualquer ideia sobre o que o pai lhe estava a dizer, pelo que este passou a explicar: “O bom tempo, filho. Não consigo explicar como funciona, nem gosto de o fazer, mas eu consigo manipular o tempo. Fi-lo agora, para que tivesses o teu dia, tal como o fiz quando eras criança e te vi fechar os olhos à janela, num dia de chuva.”

E o noivo percebeu, então, a verdade. Agradeceu ao pai e preparou-se para ter uma vida verdadeiramente banal: agora que sabia que não tinha talentos estranhos para esconder, podia ser realmente feliz. 

Jorge Santos
18.04.2015

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