sábado, 25 de abril de 2015

A estranha história de Henriqueta

        Farta de estar em casa, Henriqueta fez o que qualquer outra pessoa faria no seu caso e dirigiu-se ao balcão do Centro de Emprego na Loja do Cidadão da cidade onde vivia. Tirou a senha e esperou de pé pela sua vez de ser atendida, porque as pessoas eram tantas que não havia lugar para se sentar. Nos seus rostos via espelhadas a ânsia e a mágoa. Não precisava que lhe contassem as suas histórias para saber o sofrimento que lhes ia na alma. Quando chegou a sua vez, dirigiu-se ao balcão 17 para ser atendida por um rapaz dos seus trinta anos.
        - Bom dia. Chamo-me Filipe. Em que posso ser útil? – perguntou ele.
        - Bom dia, senhor Filipe. Chamo-me Henriqueta. Procuro trabalho.
        Filipe escreveu qualquer coisa no computador, depois virou-se para ela, pensando que estava preparado para ouvir qualquer história de vida, sem saber quão errado estava.
        - Muito bem. O seu nome, por favor.
        - Henriqueta.
        Filipe escreveu e depois ficou à espera do resto. Virou-se então para a senhora, muito sério.
        - Sobrenome?
        Henriqueta abanou a cabeça.
        - Não tenho. Sempre me chamaram de Henriqueta.
        Filipe afastou-se, então, do teclado.
        - A senhora esteve horas para ser atendida para agora brincar comigo? Já viu a quantidade de gente que está aqui para ser atendida? – exclamou Filipe, visivelmente irritado.
        - Eu não estou a brincar. Chamo-me apenas Henriqueta.
        - Muito bem, Henriqueta. Qual foi a sua última ocupação?
        A senhora, que deveria ter os seus cinquenta anos, hesitou antes de responder.
        - Já sei que lhe vai custar acreditar, nesta época em que ninguém acredita em magia, mas eu fui Fada-madrinha.
        Filipe esboçou um sorriso, estando apenas a um passo de chamar os seguranças da Loja do Cidadão.
        - Muito bem. Digamos que estou disposto a acreditar nisso. Que idade tem? – disse Filipe. Por trás de Henriqueta estavam dezenas de rostos ansiosos pela sua vez. Ele queria, rapidamente, despachar aquele assunto, só por isso decidiu cooperar na loucura daquela senhora. Não lhe competia a ele dizer-lhe que devia procurar ajuda psiquiátrica.
        - Fiz, na passada terça-feira, 1352 anos.
        Filipe controlou-se. O rosto da senhora mantinha-se sério e calmo. Transmitia uma estranha bondade.
        - Sabe que a sua idade, num país onde os empresários consideram as pessoas velhas para o trabalho depois dos 35 anos, pode ser um factor complicado, não sabe?
        Henriqueta assentiu. Era uma Fada-Madrinha, mas sabia, perfeitamente, a situação sócio-económica do país e o perfil dos empresários.
        - Muito bem. Quais são as suas qualificações?
        - Qualificações? Eu nunca fui à escola.
        Filipe sorriu. Finalmente, uma situação familiar.
        - É, portanto, analfabeta?
        Henriqueta abanou a cabeça.
        - Não. Sei ler e escrever. Sei latim e grego. Percebo a linguagem dos animais e da terra.
        Filipe deita as mãos à cabeça. Estava cada vez mais farto de aturar aquela doida.
        - Mas nunca andou na escola, logo, não tem qualificações. Sem qualificações e com 1350 anos.
        - Tenho 1352 anos. E agora não tenho o que fazer. Deixaram de acreditar na magia. Já ninguém precisa da minha ajuda. E eu que ajudei tanta gente…
        Foi nesse exacto momento que Filipe perdeu as estribeiras.
        - Oiça, senhora Henriqueta. Eu vou ser muito sincero consigo. Acho que, antes de procurar emprego, tem de procurar ajuda psiquiátrica. Não existe magia, nem fadas, nem nada disso. A senhora é apenas uma mulher de meia-idade, como tantas que esperam a sua vez para serem atendidas. Porque que não faz a magia de as respeitar a elas, já nem falo de me respeitar a mim, e ir procurar ajuda?
        Henriqueta pareceu algo envergonhada, mas acabou por se levantar, para alívio de Filipe.
        - Vê, senhor Filipe? É por isso que eu estou sem trabalho. Já ninguém acredita na magia. Nem sequer o senhor. – disse ela, afastando-se.
        Filipe chamou a pessoa seguinte. Henriqueta continuava de pé, a olhar para ele enquanto um homem dos seus quarenta anos se sentava na cadeira.
        - Mas sabe uma coisa? O Filipe costumava acreditar. Um dia caiu de uma árvore, mas não se magoou. Lembra-se? Eu estava lá. Fui eu que o ajudei. – disse Henriqueta, saindo da Loja de Cidadão.
        Filipe levou algum tempo para digerir aquelas palavras, depois pediu desculpa, levantou-se e correu para a porta, mas já não viu Henriqueta, que parecia ter-se esfumado no ar.

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