domingo, 26 de abril de 2015

Amor cego

        - Sim, querida?

        A mãe da Luísa esperava já a pergunta seguinte, habituada que estava à curiosidade inesgotável da filha. Tinha desenvolvido uma grande sensibilidade para saber quando a menina estava a tecer o novelo de mais uma interrogação. Respondia o melhor que sabia, que ela não sabia todas as respostas, e fazia questão em relembrar constantemente a Luísa desse facto.

        - Mãe, porque é que há chuva?

        A Sara sorriu. Desta vez, uma pergunta simples. Voltavam para casa, cada uma debaixo do seu guarda-chuva. Os pingos caíam, incessantes. A Luísa saltava, com as suas botas de borracha, nas poças de água, por mais advertências que a mãe lhe fizesse, porque podia sujar a roupa, mas o estado da roupa é a menor das prioridades, quando se tem 8 anos.

        Viviam numa cidade pequena, onde quase toda a gente se conhecia. A Sara tinha-se mudado para aquele bairro há pouco tempo. Conhecia uma ou duas pessoas, no máximo. Preferia assim. Detestava que as pessoas metessem o bedelho na sua vida. Sim, era mãe solteira. Sim, o pai da Luísa tinha desaparecido. E depois?

        A senhora Rosa dobrou a esquina, com o seu guarda-chuva “meia freguesia”, como lhe costumava chamar a Luísa, tão grande que ocupava toda a extensão do passeio. Conversaram durante algum tempo. A senhora Rosa era boa pessoa, apenas um bocado mais mexeriqueira do que a Sara conseguia suportar. Gostava da Luisa e a Luísa tinha de desbobinar o seu dia sempre que a via. Mesmo que chovesse a cântaros, como naquele dia. A Sara usou esse facto para se despachar, enquanto, mentalmente, terminava a lista das coisas que tinha de fazer quando chegasse a casa, e já estava física e psicologicamente arrasada, depois de perder o dia nos transportes públicos e num emprego que lhe arriscava dar cabo dos nervos. Queria chegar rapidamente a casa e esquecer o descanso que o corpo lhe exigia.

        O senhor Silva apareceu nesse preciso momento. Devia ter os seus quarenta e muitos anos. Usava uma capa de chuva branca e óculos escuros, mesmo que fosse de noite. Mas para ele todos os dias eram noite, desde que ficara cego, vítima de um glaucoma, conforme a senhora Rosa tinha informado a Sara. E lá vinha ele em direcção a elas, a descrever arcos com a sua bengala branca. Ou, como a Luísa costumava dizer, “a varrer a rua”. A Sara cumprimentou-o, afastando-se para a estrada, para lhe dar espaço. Ele sorriu e retribuiu o cumprimento. A Luísa limitou-se a sorrir e a acenar-lhe. A mãe abana a cabeça e explica-lhe, quando o senhor Silva já estava suficientemente longe.

        - Ele não vê, Luísa. Não adianta estares a sorrir e acenar.

        A menina não disse nada, mas a Sara percebeu que estava uma pergunta na fornalha. Descobriu, pouco tempo depois, que tinha razão:

        - Mamã, o senhor Silva mora sozinho?

        A Sara assentiu. Sim. Vivia sozinho. Uma senhora ia a casa dele às terças-feiras e às sextas-feiras e a Sara estava assustada pelo facto de saber este facto – isto significava apenas que estava a conversar demasiado com a senhora Rosa.

        - Sim, querida. O senhor Silva vive sozinho e, pelo que sei, já está habituado.

        A Luísa olha para a mãe com um ar agoniado: - Sozinho, mamã? Mas como é que se pode habituar a viver sozinho?

        - Acontece. Uma pessoa habitua-se. – disse a Sara. Sim. Uma pessoa habituava-se, mas era duro, pensou. Demasiado duro.

        Conversaram sobre o senhor Silva até chegarem a casa, no quarto andar de um prédio antigo que deveria ter um elevador a funcionar. Entre muitas outras coisas. Há noite, enquanto lhe aconchegava a roupa da cama, a Sílvia voltou às perguntas sobre o senhor cego. Fazia-lhe confusão alguém não conseguir ver. A Sara abanou a cabeça. Chega de perguntas.

        - Dorme, querida. Isso para ti é um problema, mas ele já se habituou.

        A Luísa sorri para a mãe. A próxima pergunta era de resposta mais complicada.

        - Mãe, achas que ele é feliz?

        A Sara meditou por um instante. Como saber se os outros eram felizes? A Sara sabia que a filha era minimamente feliz, e isso era felicidade suficiente para ela.

        - Isso, só ele pode saber, Luísa. Agora, dorme, que eu já não aguento em pé.

        - Está bem, mamã. Desculpa.

        A Sara beijou a filha, desligou a luz e fechou a porta do quarto. Esperava que aquela conversa tivesse acabado por ali, mas um acontecimento veio mudar tudo. Algo simples: a chegada de uma nova moradora para o prédio, também ela cega, também ela vivendo sozinha. E logo que a Luísa se apercebeu do drama da senhora Isilda, teve logo a ideia de juntar os dois.

        - Não nos devemos meter na vida das pessoas, Luísa. – aconselhou a mãe.

        - Mamã, mas se eles não conseguem ver… ele não sabe que ela vive na mesma rua.

        - Querida, as coisas não acontecem como vês nas novelas. A vida não é assim.

        Mas a Luísa era teimosa e perseverante, mesmo sem saber o que isso era. Tanto pediu, que a mãe resolveu fazer-lhe a vontade. Falou com a senhora Isilda e com o senhor Silva. Ambos ficaram agradados com a perspectiva de conhecerem alguém com o mesmo problema. No dia combinado, lá vieram. Sentaram-se os quatro à mesa, da sala de estar da Sara, para tomarem chá. A Sara não sabia muito bem como se comportar, mas eles rapidamente a puseram à vontade e foi mais divertido do que ela pensara. No entanto, não notou o mínimo interesse romântico entre os dois. Até a própria Luísa teve de reconhecer a derrota.

        - Pelo menos, mamã, eles conheceram-se. Cada um deles sabe que o outro existe.

        A Sara sorriu. A filha tinha feito uma boa acção, mesmo sem os resultados que a pequena esperara.

        - O amor não funciona assim, Luísa. Não basta que duas pessoas tenham um problema em comum. Até podem não ter nada em comum. Quando cresceres vais perceber.

        A Luísa olhou para os seus botões.

        - Estou a ficar com medo, mamã.

        - Porquê, Luísa?

        - Sempre que há uma pergunta mais complicada, dizes isso. Que vou perceber quando crescer. Será que vou ter tempo suficiente para perceber tudo quando crescer?

        Quando percebeu a pergunta da filha, a Sara desatou a rir, exorcizando todo o stress acumulado nas últimas semanas.

        - Não te preocupes. Tens a vida toda pela tua frente, e a mamã vai estar sempre aqui.

        Entretanto, a Luísa tinha fechado os olhos. A Sara sabia que vinha uma nova pergunta.

        - Mamã, já sei porque dizem que o amor é cego. – disse a Luísa, mantendo os olhos fechados.

        - E então porquê, Luísa? – perguntou a Sara, ficando à espera de uma teoria estranha da filha.

        - Porque eu, mesmo de olhos fechados, gosto muito de ti.

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