terça-feira, 21 de abril de 2015

O gato do Diabo



  Ontem vi um gato na rua. Não era especialmente bonito, posso até dizer, com alguma segurança, que o encaixei na categoria dos gatos mais feios que já vi na vida. Tinha o pêlo branco e grande, o que já por si não é habitual nos gatos vadios, e o olhar carregado com um misto de desconfiança e ódio. Enquanto comia, junto ao balde do lixo, olhou para mim com aquele ar de dúvida de quem se interroga se seria eu o antigo dono. Tenho vontade de lhe dizer que não. Se tivesse sido o dono, só por vontade dele viveria na rua. Mas adiante: aquilo que me fez olhar com mais atenção para este animal foi uma particularidade da sua fisionomia, combinada com o seu ar selecto, característica típica destes animais, mesmo os que parecem ter fugido da máquina de lavar a roupa em pleno ciclo de centrifugação. 
  Não sei o nome deste gato, provavelmente nunca mais o verei na vida. No entanto, é fácil inventar-lhe uma história, à qual chamarei de “O gato do Diabo”. Desiluda-se quem pensar que é uma história de terror. A menos que estejamos a falar na perspectiva do próprio gato, do qual, como já disse, não sei o nome (se não sei o nome, inventa-se um rapidamente).
  O Número 5 nasceu numa noite fria de início de Março. Foi o quinto filhote a sair da barriga da mãe. Era uma pequena bola de pêlo que mal conseguia andar. Pela diferença de tamanho dos irmãos, a mãe imaginou, enquanto o lambia, que este quinto filho não vingaria. Não seria o primeiro que perderia – miaria de dor durante algum tempo e depois iria à sua vida de gata, que ter mais 4 crias para cuidar não era fácil, mesmo estando numa casa quente, com criados que lhe faziam todas as vontades. Quando queria, a gata, uma persa de pêlo cinzento, sabia escapulir-se para a rua e perdia-se por lá em longas e ruidosas orgias. Da última nasceria aquela ninhada. Quando já não os tivesse com ela – e queria que não demorasse muito – voltaria a fazê-lo, tão cedo quanto a sua natureza o ordenasse. Vivia para aquilo. Já tinha visto os donos a procriar. Ela observara-os, quieta e curiosa. No final, ficara com a sensação que eles não sabiam o que era viver à séria. Claro que, para saberem isso, era preciso serem gatos, não aquelas criaturas desajeitadas, que andavam em duas pernas e cheiravam horrivelmente mal. Quando estava perto de uma, sentia necessidade de limpar o nariz com a pata, sinal que eles pareciam tomar como estando a fazer a sua limpeza, quando era precisamente o contrário: ela estava a tapar as narinas com saliva, para diminuir o cheiro. De resto, desde que houvesse comida e conforto, a gata estava bem. 
  O Número 5 olhava para os irmãos que mamavam descontroladamente. Ele, em vez de se conseguir aproximar do corpo da mãe, via-se projectado para trás à força de patadas. A certa altura fartou-se. Não adiantava discutir com os mais fortes. Sabia que era mais ágil e rápido. Usou essas características para saltar por cima dos corpos agitados dos irmãos e, mergulhando entre eles como se fosse uma cobra de pêlo, lá conseguiu chegar à teta e tomou, de uma só vez, o pequeno-almoço e o almoço. Isso mesmo: um brunch felino. E foi assim que o Número 5 escapou ao vaticínio da mãe. Quando já tinha alguns meses, viu os irmãos desaparecerem para sempre, levados por humanos desconhecidos. No fim, só restou ele e a mãe, que já o tinha afastado de si. Estava por sua conta, percebeu. Mas não esteve por sua conta durante muito tempo, porque duas mãos carinhosas pegaram nele. 
  "A sério que posso ficar com ele?", perguntou uma voz de criança, uma rapariga sardenta que olhava, através de uns óculos grossos, para o gato. Depois, toda animada, levou-o com ela, aconchegado ao peito. O Número 5 deu uma última olhadela para a mãe que, longe de estar triste, parecia pensar já na próxima orgia e procurava uma forma de escapar. Ele não se importou: o colo da menina era o lugar mais confortável onde tinha estado.
        Ao chegar à nova casa, demorou algum tempo a ambientar-se. Marcou toda a cozinha como seu território, passando depois à sala, para horror da mãe da menina, que começou a gritar com ele, convencida, talvez, que ele percebia humanês. Ele limitou-se a ficar quieto a olhar para ela, divertido por vê-la mudar de cor, e depois foi-se embora para a cozinha. Tinha fome, queria comer. A mensagem foi rápida e eficientemente entendida. O Número 5, que agora se chamava Lince pela sua parecença com os seus primos selvagens, tinha uma autêntica vida de lorde. Para justificar o (muito) que comia, por vezes fazia habilidades. Continuava rápido e era extremamente esperto, mostrando que conseguia abrir portas e janelas e dançar quando dava algum programa mais animado na televisão (grande invenção, pensava ele, para os seus longos bigodes). 
  Com o tempo, a dona começou a gabar o gato às vizinhas. 
  “É muito esperto”, dizia ela. 
  “Ai, só falta falar”, gabava-se a senhora. 
  “Só falta saber escrever”, respondia uma vizinha. 
  E o gato, ao ouvir isto, e mesmo sem perceber o que a criadagem dizia, lá fazia mais uma pirueta. Sabia que logo a seguir vinham as cócegas, a habilidade mais sublime que os humanos faziam. Não sabia ele que o paraíso duraria menos tempo do que ele estava a pensar. Na altura deveria ter uns cinco anos. Já tinha sido castrado, mas não se importou muito: só lhe interessava a comida e um lugar quente e confortável onde assentar o corpo, cansado de nada fazer. Foi então que a menina, que agora tinha crescido e era do tamanho da restante criadagem, disse para a mãe: “Ó mamã, já viste o que o gato tem na cabeça?”
  E a senhora lá foi ver. Teve de olhar bem de perto e tactear a cabeça (coisa que o Lince pensou tratar-se de mais uma dose de cócegas, pelo que se apressou a apresentar o corpo para uma sensação mais plena – mas ela limitou-se a mexericar-lhe na cabeça e logo o largou no chão, levando as mãos à sua própria cabeça).
  “Corno? O meu gato tem um corno? Mas pode lá ser?”, gritou ela. Logo uma vizinha bateu à porta, como se lhe cheirasse a desgraça. 
  “Então que se passa, vizinha, que a vejo com tão má cara?”
  A dona do Lince estava indecisa entre contar ou não contar, mas, como precisava de um conselho, foi buscar o dito.
  “Veja, vizinha, como está o meu gato!”
  A vizinha começou por não ver nada, mas depois deu um salto para trás, ao ver o corno que nascia a um dos lados da cabeça do animal.
  “Ai, que é o gato do demónio!”, disse a vizinha. A dona do Lince ficou a olhar para ela e para o gato, que antes de ter o corno era o gato mais esperto das redondezas – agora era motivo de vergonha e de medo. Nem por um momento pensou em ir ao veterinário, porque a crise alastrava também por aqueles lados. Só podia fazer uma coisa. Virou-se para o marido, na ausência da filha, e pediu-lhe para levar o gato para o ponto mais afastado da freguesia vizinha, e o deixasse lá. E o homem lá foi, castrado que era por natureza, sem nada contrapor. A verdade é que aquilo também lhe custava a ele, que se tinha afeiçoado ao animal. Mas nada de contrariar a sua senhora. Ele pegou no gato assim que a filha saiu de casa e levou-o para um longo passeio de carro. Quando parou num sítio que lhe pareceu mais propício, pegou nele, que estava mais nervoso e parecia pressentir o que ia acontecer a seguir, e colocou-o no chão, com uma bacia de leite e uma lata de comida. O Lince rendeu-se à comida e nem deu pela falta do dono, que já tinha seguido em grande velocidade e com uma lágrima no olho. Depressa se habituou à vida na rua, esperto como sempre tinha sido, mas sentia falta do colo confortável da rapariga que pela primeira vez tinha pegado nele.  


Epílogo
  Quando a filha chegou a casa, a mãe inventou que o gato tinha fugido. A rapariga desatou imediatamente a procurá-lo na rua. O marido da senhora, agora com o peso na consciência que demorara demasiado tempo a aparecer, voltou secretamente ao sítio onde tinha deixado o gato, sem o conseguir encontrar. E o gato lá ficou, a viver na rua. 
  Encontrei-o num sábado de manhã, enquanto ele comia um rabo de peixe que tinha caído de um saco do lixo. Olhou-me com desconfiança, dizendo-me, com a sua atitude agressiva, que aquela comida era dele, só dele, e mandando-me ir procurar a minha própria comida. Depois, voltou para o seu lugar favorito, de onde podia ver a casa onde sempre tinha vivido e para onde o orgulho de ferido de gato o impedia de voltar.

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