Pedem-me
que descreva o que ouço, à uma hora da manhã; logo a mim, que tenho o
privilégio de nada ouvir a essa hora. Presto especial atenção, para não
pensarem que sou especialmente mal-agradecido, e confirmo: não ouço nada,
silêncio absoluto. Ao longe, passa um avião que tem o real desplante, a verdadeira
desfaçatez, de tentar invadir este texto: tanto espaço aéreo e tinha de vir
mostrar o seu roncar, neste preciso momento, ao longe, mesmo por cima da minha
cabeça. Típico: voa carregado de gente e de coisas, vem de parte incerta e vai
para alguma parte, poluindo tudo pelo caminho – é, no mínimo, justo que se dê
pelo seu esforço.
No
silêncio da noite ouve-se o Nada, os meus ouvidos queixam-se de nada ouvir e
começam a gritar num zumbido, que tem tanto de estridente como de irritante. Quando
terminar este texto, colocarei os auscultadores (os mesmos que eventualmente me
terão causado este mesmo zumbido), e satisfarei a sua necessidade de barulho – parecem
dois bebés mimados, incessantemente à espera de atenção.
Além desse zumbido incómodo, na minha
cabeça ouço uma voz, que hoje parece estar rouca – de certo se terá constipado
com alguma ideia mais fria que germinou durante a noite –, mas isso não a
impede de estar constantemente a falar, sem nunca dizer algo de realmente
interessante. Essa é uma das características mais aborrecidas das nossas vozes
interiores: nunca dizem nada de original, anunciando sempre as razões pelas
quais não podemos fazer o que queremos e discursando constantemente sobre o que
devíamos estar a fazer, mas não fazemos. Umas verdadeiras chatas que habitam a
tempo inteiro as nossas cabeças, sem pagar um único cêntimo de renda.
E que mais ouço? Só o som seco das
teclas do portátil, enquanto tento escrever algo de minimamente interessante;
depois leio o que escrevo e, constantemente insatisfeito, apago tudo e volto a
escrever, até ficar com um resultado final de relativo interesse. O teclado,
coitado, é que sofre com a minha crónica indecisão. Devo confessar que tenho alguma
pena dele.
Para finalizar: de tudo o que não
ouço, noto principalmente a ausência do som mais irritante que, segundo dizem,
costuma assombrar esta casa a esta hora; este misterioso som, alegadamente semelhante
a uma moto-serra a cortar a dura madeira de carvalho, só aparece quando estou a
dormir, segundo dizem – repito –, porque eu, sinceramente, nunca o ouvi.