O vestido foi tirado do guarda-fatos
com cuidado, como era hábito todos os anos. O tempo amarelecera o cetim e as
rendas, que originalmente tinham uma cor branca. Tresandava a naftalina. As
mesmas mãos que o tinham feito pegavam nele e colocavam-no ao sol. Depois
procurava (agora a custo) qualquer buraco que a traça tivesse feito e
reparavam-no com linha pérola. Aquele ritual repetia-se a todas as primaveras,
desde há cinquenta anos. Tinha sido feito pela modista onde trabalhara, e ela
própria ajudara na sua confecção. Depois, no grande dia, vestiu-o com todo o
cuidado, de uma forma lenta e metódica, ajudada pela mãe e pelas tias. O
vestido sentiu-lhe o nervosismo e a ânsia, o coração a ameaçar rebentar, no
momento do “sim”, no momento da união das suas vidas; mais tarde sentiu a
pressa com que foi despido, na ânsia da união dos corpos. Depois, foi guardado.
O seu dia tinha terminado – antevia uma vida inteira guardado, como recordação,
no guarda-fatos. Mas não: todos os anos ela o tirava com afinco, mostrava-o à
filha, com evidente carinho, alimentando o sonho de ela o usar no seu casamento.
Porém, quando chegou o seu grande dia, a filha preferiu um outro vestido, mais
moderno, comprado num pronto-a-vestir. Não demorou muito tempo que aparecesse
outra menina na família, e a avó mostraria, também a ela, o vestido. Não
alimentava, no entanto, o sonho de ver a neta casar com o seu vestido, cada vez
mais amarelecido pelo tempo. Seria a pequena a decidir. Cresceu, fez-se mulher.
Já decidiu.
O vestido foi tirado do guarda-fatos com todo o cuidado, como era velho
hábito, mas ao contrário dos outros anos, nos quais retornava com igual cuidado
ao guarda-fatos, desta vez foi experimentado pela neta. O vestido sentiu-lhe a
mesma ânsia que sentira na avó, o coração aos pulos, o nervosismo, a vontade de
quem quer iniciar uma nova etapa na sua vida. A rapariga viu-se ao espelho, o
coração acelerou ainda mais e abraçou a avó emocionada, que não conseguiu
evitar que caísse uma lágrima no vestido. No sítio onde caiu a lágrima ficou uma
mancha branca, do mesmo branco que tinha há cinquenta anos atrás, mas a neta
não se importou: diria, mesmo assim, o “sim”.
Autor: Jorge Santos
Texto 9 - 13º Campeonato de Escrita Criativa