terça-feira, 2 de outubro de 2012

A Cópia



- Diz-me.
- Conseguiste.
John ergueu a cerveja dele. Brindámos ruidosamente. A situação não era para menos. Tínhamos conseguido um milagre – não fizéramos ver os cegos, nem fizéramos andar um paralítico. Tínhamos conseguido que uma luz vermelha ficasse verde. E mesmo assim gritámos e sentíamos a mesma felicidade. Os cientistas viviam destas pequenas vitórias. Compensavam meses de trabalho enfadonho, cheio de repetições e recuos.

-Consegui – anunciei eu em casa. Tanto Anna como a minha mulher não percebiam o que eu fazia, mas ficavam sempre contentes com as minhas vitórias.        
- Boa, papá! – gritou a Anna, plena de felicidade, nos seus 5 anitos. Não lhe podia explicar o que era o Neuroscanner. Não lhe podia explicar que tinha conseguido, finalmente, sondar uma ligação sináptica. Na prática, tratava-se do início de um trabalho que eventualmente demoraria décadas e que terminaria com a construção do primeiro cérebro virtual, simulado por computador. John estava a terminar o programa, eu avançava, a passos largos, com o Neuroscanner, um aparelho gigantesco que precisava de uma sala inteira para funcionar.
           
Houvesse tempo… O tempo falta-nos quando começamos a sentir o sucesso. A notícia apanhou-me de surpresa, como fazem todas as más notícias. As primeiras sessões de quimioterapia deixavam-me exausto e sem capacidade para me concentrar no trabalho. “Não vais poder continuar a trabalhar”, anunciou o médico, um grande amigo meu que me dera a notícia do diagnóstico com uma lágrima no olho – dera-me a notícia, juntamente com outra, ainda pior, a probabilidade de sobrevivência era muito baixa. As metástases corroíam já o meu corpo. A visão de não conseguir ver a minha filha a crescer arrastava-me para um buraco.
Não! Não podia deixar que a doença me vencesse assim. Falei com o John. Expliquei-lhe o meu estado. Ficou de rastos. Era um bom amigo – mesmo assim chamou-me doido quando lhe expliquei a minha decisão.
- Ajuda-me.
John pensou um segundo, antes de aceitar. Se fossemos apanhados, seriamos despedidos. Não podíamos gastar recursos da empresa com aquilo que eu pretendia fazer. Combinámos gastar horas fora do horário de trabalho. Seria um bom investimento – na prática, antecipávamos o que a empresa pretendia fazer.
- Ajudo-te.


“Ajuda-me”, escreveu Anna no portátil antigo. Quem a via fazer isso, pensava que era idiota. Já ninguém usava aquelas coisas.
“Entre azul e violeta, a tua mãe prefere violeta”, leu ela, como resposta. Depois apareceu outra frase no monitor: “E eu preferia que não continuassem a relembrar o dia em que morri. Já passaram vinte anos. Já chega.”
Anna sorri, um sorriso baço, toldado pela mágoa e pelas saudades. Sabia que era uma privilegiada. O pai continuava vivo, ali, naquele chat. Continuaria vivo enquanto houvessem cópias de segurança, mesmo depois dela morrer.




Jorge Santos - 2/10/2012