Bato
com violência contra a parede, o gato dá uma cambalhota no ar e sinto as suas garras
rasgarem-me o revestimento de PVC. Quando se cansa, fico, por fim, esquecida e
feliz, a recuperar num canto do quarto.
Outros protestariam de maus tratos,
mas eu não: sou uma bola. Fizeram-me numa fábrica da cidade chinesa de
Zhontang, uma bola de espuma entre milhares fabricadas diariamente. Calhou, por
estranho acaso, ter ganho alma quando um trabalhador, desiludido com o seu
futuro sem futuro, decidira roubar-me para me oferecer ao seu filho doente. No
momento em que foi apanhado, apertou-me com força contra o seu peito e desejou
secretamente poder conhecer o mundo comigo: foi nesse preciso momento que
ganhei alma. Alguém me colocou desinteressadamente numa caixa, não reparando
que eu era diferente: tinha alma; de lá fui retirada para ser guardada numa
prateleira de uma loja de animais.
A minha vida só começou, realmente,
quando dois olhos curiosos me fitaram. Daí à primeira patada não demorou um
segundo: e que patada! Fui projectada contra a janela de vidro; o apito fez, com
a força do embate, o seu barulho característico e, mal caí no chão, já uma nova
patada me atirava na direcção oposta. Sim. Aquilo é que era vida. Senti-me,
imediatamente, uma bola realizada.
O tempo foi passando (porque o tempo
passa, mesmo para as bolas de poliuretano), as brincadeiras do gato abriram
rasgos na minha superfície; perdera a minha forma original, estava mais mole,
tão mole que tive medo de já não ser suficientemente bola para o meu gato, e de
ele preferir brincar com outras bolas, mais recentes. Mas não: sempre fui a sua
preferida, mesmo quando a sua patada começou a ficar mais fraca, até ao momento
em que deixou de querer brincar. Morreu abraçado a mim, sentindo-lhe os
batimentos do coração cada vez mais fracos, até que, por fim, o corpo dele
ficou em silêncio.
E agora? Para que servia a bola de um
gato quando não havia mais gato? Ainda por cima uma bola mole e deformada, à
qual já faltavam bocados que tinham sido arrancados em momentos felizes. Temi
ser atirada para o lixo, ou queimada no quintal. Temi tantos fins que nem me
apercebi que outro gato tinha entrado no quarto, silencioso e matreiro, como só
os gatos podem ser.
Soube imediatamente, pela violência da
primeira patada, que ia voltar a ser feliz.
Autor: Jorge Santos
Texto 10 - 11º Campeonato de Escrita Criativa