Romeu esperou que Julieta fosse dormir. Fazia-o todas as
noites, quando o livro estava fechado – se alguém o lia, e isso ultimamente era
raro, ele seguia o enredo normal: enamorava-se, lutava e morria por amor.
Depois o livro era fechado e colocado na estante, à espera da próxima pessoa
que sentisse curiosidade em
lê-lo. Era no entanto falso que as personagens só tivessem
vida na cabeça do leitor, como uma mancha intelectual que era lançada pelo
escritor directamente à mente de quem lia a história. Até faziam um jogo: se
mexia com o leitor, o escritor recebia a pontuação completa: 100 pontos. Se só
causasse cócegas, 50. Se lhe passasse completamente ao lado, era o fracasso. E
Romeu tinha conhecido alguns fracassados, que tinham pegado no livro e logo a
seguir pousado, intimidados pelo linguajar estranho e anacrónico.
Romeu gostava de sair do livro, para escândalo das outras
personagens, mais atinadas, mais resignadas ao seu papel. Tinha dois sonhos
secretos: queria conhecer melhor quem o lia, e, ainda mais secreto, queria
conhecer um escritor. Não o seu escritor, que tinha morrido há quinhentos anos,
mas alguém mais comum, e, de preferência, ainda a respirar. Costumava sair pela
lombada, por uma pequena abertura que fizera aos poucos. A primeira vez que se
viu fora do livro espantou-se por ver que o mundo era enooooooorme. Mesmo se o
que achava ser o mundo, não passasse de uma prateleira de uma estante.
Deambulou um bocado, olhando com interesse para as capas dos outros livros.
Repetiu a proeza na noite seguinte, quando tinha a certeza que não havia
leitores por perto, e sempre depois da Julieta adormecer – sabia perfeitamente
que ela estava a dormir, porque roncava (e isto Shakespeare não tinha contado).
Não roncava muito, era certo, mas o suficiente para ser incómodo.
Romeu cumpriu o seu primeiro sonho percorrendo livros de
Biografias e compêndios de História. O segundo sonho foi cumprido pouco tempo
depois. E o culpado fui eu, com esta mania de escrever fora de horas – quando
dei por mim, tinha uma personagem de um livro quinhentista ao meu lado, a
observar com interesse o que fazia.
- Diz-me, senhor, que fazeis?
Eu olhei para a personagem, uma figura humana, com a
forma delineada a frases Shakespearianas e da altura de um livro, que se
sentava de pernas cruzadas junto ao portátil. E eu, que escrevo este conto e
sei que não passa de um produto da minha pobre imaginação, digo-lhe, de uma
forma algo ríspida: - Fala direito, Romeu. Já ninguém fala assim.
A personagem olha para mim, com os seus olhos de personagem,
e diz-me que concorda. Já tinha aprendido muito, dos livros que lera.
- Certo, mano, bute lá, posso fazer-te uma pergunta? – perguntou
o Romeu.
Eu ri-me do que tinha escrito. O anacronismo era
completo, e senti o Shakespeare a dar uma volta na tumba.
- Chuta – disse-lhe eu.
- Porque é que escreves? – perguntou.
Eu esperava uma pergunta mais complexa. Aquela era
simples. Escrevo para provocar o leitor.
Romeu digeriu a resposta, concordou comigo. Se o leitor
não se sentir minimamente provocado, não lê. Expliquei-lhe que ele pertencia a
uma das mais importantes histórias de amor de todos os tempos. Até podia
afirmar que o amor, tal como o conhecemos, a sua visão romântica, nascera com
ele.
- Eu sou o pai do amor actual? – perguntou.
Achei a pergunta mais complexa. Não muito mais complexa,
porque tinha nascido da minha imaginação – pensei algum tempo na resposta.
- De certa forma, sim – respondi, por fim. A nossa visão
romântica vinha de Romeu. Talvez isso explicasse o facto dele estar ali, à
minha frente, de papel e letras. Pertencia ao imaginário colectivo de todo um
planeta – isso devia valer de alguma cousa.
Senti-me cansado desta conversa. Despedi-me dele com um
aperto de mão/letra. Vi-o a dirigir-se para o seu livro, a desaparecer num
buraco da lombada. Nunca mais o vi. Os seus dois sonhos tinham sido satisfeitos
– podia voltar agora para os braços da sua Julieta roncadora.
Autor: Jorge Santos (8 de Junho de 2012)