Era uma vez um
menino que apareceu na aldeia vindo sabe-se lá de onde. Na realidade não foi
uma vez, mas duas vezes. Da primeira vez as pessoas ficaram curiosas para saber
de onde vinha uma criança tão pequena, sozinha, naquela povoação que ficava no
meio do nada, no sopé da serra. Era tão isolada que pouca gente passava por ali
– as estradas eram difíceis e constantemente estragadas pelo rigor do inverno.
Foi por isso
estranho que aparecesse uma criança na pequena povoação que tinha o
nome de Amizade. A primeira pessoa que o viu foi a senhora do minimercado, que
tratou logo de saber que se chamava Rui e vivia com o pai “lá em cima”, o rapaz apontou para o alto, para a montanha. A D. Maria desconfiou disso. Ninguém vivia na montanha.
“Ainda bem que nos
vens visitar. Há muito tempo que ninguém nos vem visitar, sabias?”, disse a
senhora, oferecendo ao rapaz um chupa-chupa. E tratou logo de o apresentar às
outras pessoas. Em pouco tempo ele já conhecia quase toda a gente da aldeia,
desde o sapateiro ao farmacêutico. Todos concordavam que era estranho o Rui estar
ali, mas ainda concordavam mais com o facto dele ser uma criança simpática e
inteligente, como nunca tinham visto nenhuma outra. O Rui ria-se ao ouvir isto,
dando mais uma lambidela no seu chupa-chupa.
Ao passar por uma
casa, acompanhado pela Srª. Glória, que nunca tinha tido nenhuma glória na sua
vida, o Rui perguntou quem lá vivia, porque ao contrário das outras casas da
aldeia, que tinham cores alegres, ou flores, ou janelas abertas, aquela era
pintada de um cinzento escuro, as janelas estavam fechadas e aparentemente não
devia viver lá ninguém.
“É a casa do Sr.
Feliz. Ele não se dá com ninguém.”, disse a Srª. Glória, e o Rui ficou a saber
que, tal como a Srª. Glória nunca tinha conhecido a Glória em toda a sua vida,
também o Sr. Feliz era tudo menos feliz. Há muitos anos que ele não falava com
ninguém – visto de outra forma, pensou o Rui, há muito tempo que ninguém falava com o Sr. Feliz.
E o Rui fez algo
impensável para uma criança tão pequena, pensou a Srª. Glória – tocou à
campainha da porta do Sr. Feliz.
“Ele não vai atender”,
pensou ela. “Que idiotice deste menino.”, acrescentou ela ao seu pensamento
inicial.
Mas a porta abriu-se. Apareceu um homem alto, com aspecto desagradável.
Mas a porta abriu-se. Apareceu um homem alto, com aspecto desagradável.
“Que querem?”,
perguntou o homem, na sua voz desagradável. A Srª Glória estava atrapalhada,
não sabia o que dizer. O Rui no entanto estendeu-lhe a mão, como se cumprimentar homens de aspecto rude e desagradável fosse a coisa mais natural do mundo.
“Olá, eu sou o Rui.”
O homem olhou para
ele (e tinha de baixar muito a cabeça, porque era realmente muito alto) e fez
algo de impensável na cabeça da Srª Glória, sorriu para o rapaz e dizendo-lhe: “Estou
mesmo agora a preparar o chá, entrem”
O Rui aceitou de
caminho. A Srª Glória entrou, mas com receio. Tinha ouvido histórias muito más
sobre aquele homem. Lá dentro, no entanto, encontrou uma casa acolhedora,
decorada com bom gosto. O Rui sentou-se à mesa da sala e atirou-se a um prato de
bolachas. Não tinha grande fome,
confessou ele, porque tinha passado toda a tarde a comer chupa-chupas, mas as
bolachas eram realmente boas.
Gilberto Feliz era
um professor aposentado, que tinha uma filha muito, muito longe. Já não a via
há algum tempo. Ele tinha um neto, mas nunca o tinha visto. Estavam
zangados, disse Gilberto.
Tudo aquilo fazia
confusão na cabeça do Rui. Nunca lhe passaria pela cabeça zangar-se com o seu
pai, nem muito menos com a mãe. Ele disse isso em voz alta, e Gilberto riu-se.
Explicou que as coisas nem sempre se passavam como as pessoas queriam, e as
pessoas nunca viam as coisas da mesma forma. E, principalmente, as pessoas
nunca ouviam os outros, só elas próprias, explicou.
“É por isso que
nesta aldeia ninguém gosta de si?”, perguntou inocentemente o Rui. Glória não
sabia onde se havia de meter. Ficou vermelha como um tomate. Gilberto riu-se de
uma forma franca, numa gargalhada que ecoou pela sala e deve ter sido ouvida lá fora.
“Também eu não gosto
deles…”, disse ele.
No fim do chá, Rui
despediu-se de Gilberto, e este convidou-o para tomar chá sempre que o miúdo
quisesse. A Srª Glória percebeu que o convite não seria extensivo a si, mas
também não se importava. Depois o Rui subiu a montanha sozinho, rejeitando a
boleia que a Srª Glória lhe queria oferecer.
"Estou habituado", disse ele, desaparecendo na curva da estrada.
"Estou habituado", disse ele, desaparecendo na curva da estrada.
Passado
algumas semanas, mais propriamente poucos dias antes do Natal, o Rui apareceu novamente
na aldeia, desta vez acompanhado por uma mulher e um rapaz da mesma idade do
Rui. Logo as pessoas que estavam na rua e que já o conheciam trataram de o
cumprimentar. À pergunta que todos queriam fazer, sobre a identidade da mulher
e do outro menino, ele nada respondeu.
“É segredo”, disse
ele.
Toda a gente já o conhecia pela alcunha do “Rui dos Segredos”. Ele não se importava. A mulher limitava-se a sorrir para as pessoas que abordavam o Rui enquanto se dirigia à casa do Sr. Feliz. Notava-se o seu nervosismo. A outra criança estava deliciada.
Toda a gente já o conhecia pela alcunha do “Rui dos Segredos”. Ele não se importava. A mulher limitava-se a sorrir para as pessoas que abordavam o Rui enquanto se dirigia à casa do Sr. Feliz. Notava-se o seu nervosismo. A outra criança estava deliciada.
Chegando à porta,
tocou à campainha. Ouviram-se os passos pesados de Gilberto, a madeira do
soalho a ranger. A porta abriu-se. Gilberto viu primeiro o Rui. Depois o seu
olhar ficou fixo no olhar da mulher.
“Miguel”, disse ela
com a voz embargada pela emoção, “Vai dar um beijinho ao teu avô.”.
Gilberto baixou-se,
abriu muito os braços e abraçou a criança que correu para ele. Depois olhou em
redor para agradecer ao Rui, mas não o viu.
O Rui dos Segredos
nunca mais seria visto naquela aldeia, mas toda a gente aprendera a lição, o
Sr. Feliz voltou a ser feliz, e a aldeia voltou a merecer o nome…