domingo, 4 de dezembro de 2011

Rui dos Segredos


Era uma vez um menino que apareceu na aldeia vindo sabe-se lá de onde. Na realidade não foi uma vez, mas duas vezes. Da primeira vez as pessoas ficaram curiosas para saber de onde vinha uma criança tão pequena, sozinha, naquela povoação que ficava no meio do nada, no sopé da serra. Era tão isolada que pouca gente passava por ali – as estradas eram difíceis e constantemente estragadas pelo rigor do inverno.

Foi por isso estranho que aparecesse uma criança na pequena povoação que tinha o nome de Amizade. A primeira pessoa que o viu foi a senhora do minimercado, que tratou logo de saber que se chamava Rui e vivia com o pai “lá em cima”, o rapaz apontou para o alto, para a montanha. A D. Maria desconfiou disso. Ninguém vivia na montanha.

“Ainda bem que nos vens visitar. Há muito tempo que ninguém nos vem visitar, sabias?”, disse a senhora, oferecendo ao rapaz um chupa-chupa. E tratou logo de o apresentar às outras pessoas. Em pouco tempo ele já conhecia quase toda a gente da aldeia, desde o sapateiro ao farmacêutico. Todos concordavam que era estranho o Rui estar ali, mas ainda concordavam mais com o facto dele ser uma criança simpática e inteligente, como nunca tinham visto nenhuma outra. O Rui ria-se ao ouvir isto, dando mais uma lambidela no seu chupa-chupa.

Ao passar por uma casa, acompanhado pela Srª. Glória, que nunca tinha tido nenhuma glória na sua vida, o Rui perguntou quem lá vivia, porque ao contrário das outras casas da aldeia, que tinham cores alegres, ou flores, ou janelas abertas, aquela era pintada de um cinzento escuro, as janelas estavam fechadas e aparentemente não devia viver lá ninguém. 

“É a casa do Sr. Feliz. Ele não se dá com ninguém.”, disse a Srª. Glória, e o Rui ficou a saber que, tal como a Srª. Glória nunca tinha conhecido a Glória em toda a sua vida, também o Sr. Feliz era tudo menos feliz. Há muitos anos que ele não falava com ninguém – visto de outra forma, pensou o Rui, há muito tempo que ninguém falava com o Sr. Feliz.

E o Rui fez algo impensável para uma criança tão pequena, pensou a Srª. Glória – tocou à campainha da porta do Sr. Feliz.

“Ele não vai atender”, pensou ela. “Que idiotice deste menino.”, acrescentou ela ao seu pensamento inicial. 


Mas a porta abriu-se. Apareceu um homem alto, com aspecto desagradável.
“Que querem?”, perguntou o homem, na sua voz desagradável. A Srª Glória estava atrapalhada, não sabia o que dizer. O Rui no entanto estendeu-lhe a mão, como se cumprimentar homens de aspecto rude e desagradável fosse a coisa mais natural do mundo.
“Olá, eu sou o Rui.”

O homem olhou para ele (e tinha de baixar muito a cabeça, porque era realmente muito alto) e fez algo de impensável na cabeça da Srª Glória, sorriu para o rapaz e dizendo-lhe: “Estou mesmo agora a preparar o chá, entrem”

O Rui aceitou de caminho. A Srª Glória entrou, mas com receio. Tinha ouvido histórias muito más sobre aquele homem. Lá dentro, no entanto, encontrou uma casa acolhedora, decorada com bom gosto. O Rui sentou-se à mesa da sala e atirou-se a um prato de bolachas. Não  tinha grande fome, confessou ele, porque tinha passado toda a tarde a comer chupa-chupas, mas as bolachas eram realmente boas.

Gilberto Feliz era um professor aposentado, que tinha uma filha muito, muito longe. Já não a via há algum tempo. Ele tinha um neto, mas nunca o tinha visto. Estavam zangados, disse Gilberto.

Tudo aquilo fazia confusão na cabeça do Rui. Nunca lhe passaria pela cabeça zangar-se com o seu pai, nem muito menos com a mãe. Ele disse isso em voz alta, e Gilberto riu-se. Explicou que as coisas nem sempre se passavam como as pessoas queriam, e as pessoas nunca viam as coisas da mesma forma. E, principalmente, as pessoas nunca ouviam os outros, só elas próprias, explicou.
“É por isso que nesta aldeia ninguém gosta de si?”, perguntou inocentemente o Rui. Glória não sabia onde se havia de meter. Ficou vermelha como um tomate. Gilberto riu-se de uma forma franca, numa gargalhada que ecoou pela sala e deve ter sido ouvida lá fora.
“Também eu não gosto deles…”, disse ele.

No fim do chá, Rui despediu-se de Gilberto, e este convidou-o para tomar chá sempre que o miúdo quisesse. A Srª Glória percebeu que o convite não seria extensivo a si, mas também não se importava. Depois o Rui subiu a montanha sozinho, rejeitando a boleia que a Srª Glória lhe queria oferecer. 
"Estou habituado", disse ele, desaparecendo na curva da estrada.

Passado algumas semanas, mais propriamente poucos dias antes do Natal, o Rui apareceu novamente na aldeia, desta vez acompanhado por uma mulher e um rapaz da mesma idade do Rui. Logo as pessoas que estavam na rua e que já o conheciam trataram de o cumprimentar. À pergunta que todos queriam fazer, sobre a identidade da mulher e do outro menino, ele nada respondeu.

“É segredo”, disse ele. 


Toda a gente já o conhecia pela alcunha do “Rui dos Segredos”. Ele não se importava. A mulher limitava-se a sorrir para as pessoas que abordavam o Rui enquanto se dirigia à casa do Sr. Feliz. Notava-se o seu nervosismo. A outra criança estava deliciada.

Chegando à porta, tocou à campainha. Ouviram-se os passos pesados de Gilberto, a madeira do soalho a ranger. A porta abriu-se. Gilberto viu primeiro o Rui. Depois o seu olhar ficou fixo no olhar da mulher.

“Miguel”, disse ela com a voz embargada pela emoção, “Vai dar um beijinho ao teu avô.”.

Gilberto baixou-se, abriu muito os braços e abraçou a criança que correu para ele. Depois olhou em redor para agradecer ao Rui, mas não o viu.

O Rui dos Segredos nunca mais seria visto naquela aldeia, mas toda a gente aprendera a lição, o Sr. Feliz voltou a ser feliz, e a aldeia voltou a merecer o nome…