quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Da capo

    Cruzei-me com Mozart quando ia para a praça. Parecia triste e melancólico, a cabeleira branca em desalinho, o fato branco sujo de pó. Cumprimentei-o em segredo, como se faz numa cidade e dirigi-me ao café da esquina. Entrei. Sentei-me na mesa de costume junto da janela e peguei no jornal. Distraído começo a ler, observando ao mesmo tempo Mozart lá fora, sozinho naquela noite de verão. Quando consigo ter atenção ao jornal percebo que é desportivo, mas não me apetece voltar a levantar. É cultura na mesma. 
   Quando volto a olhar para Mozart vejo-o rodeado de jovens ainda novos, com ar de marginal. Corriam à volta dele, tentando tirar-lhe a peruca. Ele, bastante mais alto, conseguia esquivar-se, dava murros e pontapés. Um dos marginais consegue o seu troféu num salto traiçoeiro, depois foge e desaparece na noite com a peruca. 


   Quando era mais novo convenci a família de que a minha vocação era a música. Por isso consegui que se canalizassem os esforços e o dinheiro necessário para me mandarem estudar no Porto. Todos ajudaram: pais, irmãos, irmãs, tios, primos, primas, sobrinhos, sobrinhas, bons vizinhos, más vizinhas e até o homem do talho.Arranjei um quarto num apartamento de estudantes, os quais passavam as noites a beber e os dias nas ressacas e que por isso não chateavam. Eles não deviam achar tanta graça ao piano que apareceu às escondidas lá em casa. Nas aulas safava-me mais ou menos. 
    Tinha escolhido o piano por gosto, mas a verdade é que sentia não ter vocação nenhuma para a música. Tudo o que parecia ter era uma paixão imensa. Estava claro que se os pais soubessem desta falta de vocação era um homem morto, e talvez por causa disso apliquei-me a fundo. Chegou no entanto um momento no qual me foi pedida uma grande composição. Era tudo o que eu precisava para passar o ano, por isso fechei-me no quarto e sentei-me ao piano, prometendo a mim mesmo não sair de ali sem que algo surgisse. 
   Passaram-se dias sem ter qualquer sucesso. Os colegas de apartamento queixavam-se constantemente do piano a todas as horas e eu calava-os com um berro. Um dia adormeci ao piano. Acordei com o bater na porta da rua. 
    Era Schubert. Pediu para entrar, num português com sotaque acentuado. Indiquei-lhe o quarto. Ele observou o compartimento, as paredes bolorentas, o colchão no chão, o piano em péssimo estado, as partituras espalhadas pelo chão, o banco e a mesa. No final sorriu de aprovação. "Boas instalações", disse ele, com ar sincero. Depois instalou-se ao piano e começou a tocar. 
    "Escreva", disse ele, não me dando tempo para pegar no papel e na caneta. Ele ia tocando e ditando ao mesmo tempo. Eu, empenhado no que estava a fazer, não estava atento à beleza da música. Só mais tarde, quando ele saiu, comecei a tocar a peça e pude apreciá-la na minha inaptidão de tocador. No final de ter ditado tudo ficámos a conversar durante bastante tempo. Depois saiu. 


   Beethoven chegou no dia seguinte. Tinha um génio terrível. Logo que lhe abri a porta ele entrou e foi para o quarto. Sentou-se ao piano. Eu, que já tinha visto aquele filme antes, corri para apanhar ainda alguns bocados do que ele já tinha começado a ditar. No final sorriu e foi-se embora. 


    Stravinsky era simpático. Conversou antes, conversou depois. Ditava lentamente. Mozart era um louco. Um espírito de criança num corpo minúsculo de adulto. Ditava enquanto tocava uma outra composição. Eu experimentava todas as peças, com uma ânsia inexcedível de quem era o primeiro a descobrir o que ninguém nunca ouvira. Havia coisas muito boas. Algumas deixavam muito a desejar, mas todas tinham a marca dos génios dos seus criadores.  


   Ana apareceu do nada, vinda da minha aldeia natal para procurar trabalho no Porto. Tínhamos namorado durante algum tempo, mas depois tudo acabara por imposição dos pais, tanto meus como dela. Eu acedi em parte porque via terminados os meus planos de vir estudar para o Porto. Ela acedeu por eu ter acedido. Sem uma zanga, sem nada. Lembro-me de ter ficado confuso na época com a reacção dela. 


    Ana apareceu do nada, vinda da minha terra natal e não tinha para onde ir, portanto pedia para ficar durante umas noites na minha casa. Pediu-o na frente dos meus colegas de quarto, para que eu não pudesse recusar sem pôr em jogo a reputação. Ana apareceu do nada, vinda da minha terra natal e ficou. 
    Dormimos fraternalmente juntos a primeira noite. Na segunda apareceu Strauss. Trazia o seu violino e tocou uma das suas mais conhecidas valsas. Dancei alegremente com a Ana, e no final comecei o trabalho. Ana olhava, sentada no colchão, sem perceber, na ingenuidade dos seus dezasseis anos. Strauss era um homem dos seus quarenta anos, de olhar vivo, esperto. Não escondia o seu encantamento por Ana, e ela pensava que o seu interesse não fosse tão visível. Eu estava no meio dos dois. No final de passada a peça, Strauss levantou-se do piano e foi beijar as mãos de Ana. Ela corou. Eu levei-o até à porta e vi-o a desaparecer na noite. Ana continuava corada. Não tinha percebido quem tinha sido o visitante e eu não lhe disse a verdade. Esperei cinco anos até lhe contar, quando já estávamos casados. 


    Ravel apareceu no dia seguinte e ditou uma peça fúnebre, mas intensamente bonita. Quando saiu toquei-a para Ana, que chorou de emoção. 


  Mozart continuava na praça, já resignado pela perda da cabeleira. Da esquina surgiu outro Mozart, o Mozart-mais-baixo, que se foi juntar ao primeiro e parecia estar a perguntar pela peruca. Da mesma esquina apareceu uma mulher-Mozart, que deu uma gargalhada sonora quando viu a falta do utensílio ao Mozart-mais-alto. 
    Eu virei a página do andebol e continuei a ler, despreocupado e imensamente divertido. 


  Handel contou uma anedota quando apareceu. Ou pelo menos parecia ser uma anedota, porque o meu alemão não estava o suficientemente evoluído para a perceber. Eu ri-me primeiro, para ser simpático, depois Ana deu uma boa gargalhada. Ele pareceu furioso connosco e foi-se embora sem ditar a sua música. 
   
    Na noite seguinte apareceu alguém que eu não conhecia, mas como era descortesia não lhe dispensar o mesmo tratamento, acedi sem grandes dúvidas a escrever a sua música. O resultado final foi uma música assombrosa, uma peça fluída e leve. Com a pressa de sair, no entanto, ele não assinou a obra. 


    Wagner e Rossini apareceram os dois à mesma hora. Rossini deu a entender a Wagner que se tinha enganado no dia e este foi-se embora. 


    Os tempos de sono fraternal entre eu e a Ana tinham acabado e transformaram-se num entendimento conjugal intenso. Ela no entanto suportava cada vez menos o constante vai-vem de músicos que entravam e saíam de aquele quarto minúsculo. Por aquela altura o meu maior sonho era entrar no gabinete de um dos maiores professores do conservatório com as pautas debaixo do braço. Depois de algum tempo enchi-me de coragem e fui ao encontro de um deles. Eu não sabia o que dizer quanto à proveniência do achado, mas no final decidi contar a verdade. O professor olhou-me de alto a baixo e sem dizer uma palavra sentou-se ao piano. Tocou durante uma hora, durante a qual eu fiquei sentado num sofá antigo, observando aquele homenzinho de um metro e meio de altura. No final ele virou-se para mim. 
   "Isto", começou ele, "são obras raríssimas e pouco conhecidas. Muitas delas eu nunca, nunca tinha ouvido, mas sabe-se sempre quem as escreveu." Senti-me desiludido. Afinal as peças não eram originais. Eu não era o herói que julgava ser. Não passava de um simples aluno de música. "Esta, no entanto, não conheço.", continuou. O velho professor pegou na partitura que o desconhecido me tinha ditado e tocou-a. No seu todo havia uma fluidez e harmonia excepcionais. Era-me estranhamente familiar, tocando-me de uma forma que nenhuma outra música me havia tocado antes. Chamava-se "Ode à Lua". No final o professor agradeceu-me por um momento agradável e recomendou que me empenhasse mais no trabalho que tinha de entregar. 


    O Mozart-mais-alto, sem peruca, pediu um cigarro à mulher-Mozart. Eu paguei e saí do café. Passei pelo trio de Mozarts. A mulher-Mozart, provocante com os seus lábios vermelhos e olhos verdes, estendeu-me um panfleto a anunciar uma festa numa discoteca próxima. Eu agradeci e entrei numa das ruelas que saíam da praça. Num regresso à juventude passei pela casa onde tinha morado quando andava a estudar. Hoje morava numa cobertura, era um maestro e compositor de sucesso, como havia poucos no país. Ana tinha uma loja de confecções no centro da cidade. A casa parecia estar em ruínas. Era impossível pensar que alguém pudesse viver ali. No entanto lembrava-me que naquele tempo estava exactamente no mesmo estado, como se durante vinte anos nada tivesse mudado. Vi a luz no meu antigo quarto. Subi as escadas e bati à porta. Passado um momento um rapaz novo veio abrir a porta. Por detrás dele estava uma rapariga ainda mais jovem, muito atraente na sua fisionomia rural. 
   "Boa noite", disse eu. 
  "Boa noite", disse ele, deixando-me entrar e indicando-me o caminho para o quarto do piano. 
  "Boa noite", disse ela em uníssono com ele, desaparecendo na cozinha. Eu avancei para o quarto. Ele indicou-me o banco do piano. De seguida perguntou-me o nome da composição. "Ode à Lua", respondi. O jovem não me perguntou o nome, e enquanto eu tocava e ditava a partitura, ele ia copiando meticulosamente tudo. 
    Ela apareceu pouco depois, numa pausa do trabalho, para oferecer uma bebida. Eu agradeci e aceitei. Aquele vinho estava esquecido há muito, juntamente com o resto das minhas recordações da juventude. Depois falámos um pouco. Falámos de música. Falámos de sonhos. Falámos de Ana, sem dar a entender que a conhecia melhor que ele próprio. No final voltámos ao trabalho. Passava um segundo da meia-noite quando saí. Despedi-me deles e perdi-me na noite da cidade.