sexta-feira, 27 de junho de 2014

Carta de Despedida

Serve esta carta para te dizer adeus, meu amigo desde sempre. Digo-o com saudades dos tempos em não pensávamos em mais nada que não fosse em beber até cairmos para o lado, sem o mínimo interesse em alguma coisa que aproximasse de responsabilidade ou de planos para o futuro. Só nos interessava viver cada dia como se o amanhã nunca chegasse, esquecendo as asneiras que se tinnham feito no dia anterior. Tu, meu amigo, és o meu EU passado, e digo-te adeus, porque Ela me abriu os olhos. Há vida para lá de um shot, e prazer para lá do sexo fortuito. O futuro cozinhado a dois tem um saber intenso do qual não me quero ver livre. Ela é a minha outra pele, o meu outro corpo. Desejo ver a vida pelos olhos dela e espero que o seu perfume seja a última coisa que as minhas narinas sintam. Mudei. Cumpri a minha metamorfose, e deixaste de ter lugar na minha vida, meu grande amigo. Caso-me amanhã. Adeus.

Para sempre teu amigo,
JS

PS: Não estás convidado

quinta-feira, 19 de junho de 2014

O Dr. Tempo

Dizem que o tempo tudo cura. Isso é uma treta como tantas outras contadas por aqueles que esperam até desesperar.

Lembro-me do nascimento da minha primeira filha. Como todos os primeiros filhos, canalizamos para eles quantidades colossais de afectos, sonhos e aspirações. Bebemos cada momento como se o mundo parasse só porque lhe nasceu mais um dente. Aprendemos a viver de sorriso em sorriso. Tornou-se uma criança esperta, bonita e simpática, sempre pronta para a brincadeira, como qualquer outra criança saudável, como pensavamos na altura que também ela era. Foi a avó, mais experiente, que deu o alarme. Bastou estranhar a posição do pé direito enquanto caminhava, para a levarmos ao especialista. A sentença fez-nos acordar do sonho e o pesadelo começou na semana seguinte: durante um mês, a criança, que já corria pela casa fora, viu-se presa a uma cama de hospital, com as duas pernas presas a pesos. Durante um mês saí tarde do hospital, para ser rendido pela mãe, que passava lá a noite, e chegava a casa com um sentimento de falta terrível. Durante um mês, entre choros e zangas, a Sofia mostrou a sua garra e não se deixou abater: arranjava sempre forma de brincar. O riso dela, por menos frequente que fosse, contagiava-nos, dava-nos força. Nós sabiamos o que ia acontecer a seguir, ela não. A primeira operação correu mal. Teve de ser operada uma segunda vez. No final, lá veio ela, com gesso nas duas pernas e um pau de vassora a ligar, para ajudar a pegar na criança. Era suposto ficar assim durante meses, e ela ficou. Assim que se habituou, já tentava levantar-se, segurando-se às barras da cama, enquanto nós tentavamos protegê-la ao máximo do calor do Verão.

O tempo era suposto curá-la, mas ensinou-nos a nós uma lição de humildade, como só a doença nos ensina.

O tempo era suposto curá-la, mas não curou: quando finalmente tiraram a armadura de gesso, os médicos, que regiam os nossos destinos durante os últimos meses, disseram, simplesmente, que tudo tinha sido em vão. A menina tinha de ser novamente operada e devia ser colocada uma platina que, segundo me disseram depois, era o procedimento mais usual naqueles casos, dado que a armadura de gesso não oferecia tantas garantias de resultado.

A menina tem agora 16 anos, mas sempre que vejo a cicatriz de 10 centímentros na perna me lembro desta história.

Vem isto a respeito de que, ainda hoje, vi um menino que aparentava ter o mesmo problema.

Tive quase a audácia de falar com a mãe.

Mas não fui.

terça-feira, 17 de junho de 2014

O nabo e o micro-tsunami

As memórias de infância são dispersas, errantes. Filtros emocionais que nos deixam apenas o que realmente temos saudades.

Lembro-me do cheiro do guisado de carne que a minha mãe punha na grande garrafa térmica que deixava para o almoço do meu pai, enquanto nos pisgávamos rapidamente para a praia, de onde regressávamos à tarde.

Lembro-me do calor tórrido das viagens de regresso, num Mini dos antigos, com bancos sem apoio de cabeça. O ar-condicionado era manual, de janela aberta. Acabava sempre por adormecer no caminho, a minha cabeça a balançar para a frente e para trás, como se fosse um boneco ao sabor das acelerações e travagens do carro.

Pelo meio ficaram as recordações dos longos passeios pela beira-mar, dos mergulhos, dos jogos no pinhal e das histórias estranhas como aquela à qual acabei de chamar de "O nabo e o micro-tsunami", nome escolhido à pressa enquanto almoço no café, passados 30 anos dos acontecimentos.

Reza a história que uma família com dois filhos, já adolescentes, foram para a praia de Ofir. Num gesto temerário, ou simplesmente estúpido, tinham posto as toalhas junto à rebentação.  Um dos filhos estava deitado na toalha, aos lado dos pais. O outro, sentado na toalha, observava o mar, como que hipnotizado pelas ondas. E eu fiquei a ver, mais recuado, como se fosse um filme cómico ao qual já desvendava o final: o filho sentado observava a maré a chegar cada vez mais perto, mas não fez nada para avisar, mesmo quando um micro-tsunami chegou e os empurrou para trás, aos trambulhões pela areia fora. 

É algo estranho, mas quando me lembro desses tempos, essa recordação de os ver aos trambulhões praia fora vem sempre ao de cima.

quinta-feira, 27 de março de 2014


Desafio de Escrita 2
Tema Nº1: O comboio parou na estação e ele saiu.
Tema Nº2: Não tardes: deixei o Amor em lume brando.



O comboio parou na estação e ele saiu. Não ia apressado. Parou para fumar um cigarro. Olhou para ambos os lados da gare, como se estivesse na dúvida para onde ir. Não era de ali. Ela via isso na forma como vestia, como se a aventura fosse a sua forma de vida, a pele bronzeada. Pela cor clara dos cabelos, podia antever olhos igualmente claros, escondidos por trás de uns egoístas óculos escuros. Vem para este lado, pediu ela, aninhada no banco da estação, encostada à parede. Segurando na ponta dos dedos o livro que fingia ler entre os joelhos. Não estava ali mais ninguém. As pessoas que tinham saído do comboio tinham ido às suas vida. As pessoas que tinham entrado no comboio também tinham seguido viagem, ela estava-se a borrifar para onde. Parecia-lhe que só eles os dois não precisavam ir a nenhum lado. Sentimento estranho, para quem nunca teve certezas na vida. Vem para este lado, pediu ela. Ele virou-se para ela, que subitamente sentiu que tinha mudado de cor. Sentia as faces subitamente a escaldar. Anda, pediu ela. Não tardes. Ele aproximou-se dela, a um passo lento, cauteloso, o significado óbvio de quem procura. Ávido. Silencioso. Sentiu-lhe a ânsia. És meu. Quero ser tua. Sem receios, dúvidas ou hesitações. Ele continua a aproximar-se.


O comboio parou na estação e ela saiu. A outra. Aquela que lia apercebe-se da mudança na velocidade no andar dele e, na felicidade estampada no rosto, vê que não tem outro remédio senão mergulhar no livro e arrefecer o Amor que tinha já em lume brando. 


sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

DORFELIZ

ÉUMADORFELIZAQUEMELEMBRODESOFRERTODOSOSDIASATEULADOUMADORQUEQUEROQUESEPROLONGUEATÉDIZERMOSCHEGAEDEPOISCONTINUARMOSÉADORFELIZQUESUPORTAMOSCONTENTESTODOSOSDIASQUENOSTOLDAOSSENTIMENTOSENOSALIMENTAAALMADEPEQUENOSNADASCOMOOCHEIRODASTORRADASQUEDEIXASQUEIMARSEMPREQUEOSNOSSOSCORPOSSEPRENDEMAOPEQUENOALMOÇOPARASÓSEDEIXAREMÀNOITEQUANDOFECHAMOSOSOLHOSENADAMAISEXISTEANÃOSEROSNOSSOSSONHOS.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Mais uma travessia


            Foi só mais uma travessia, a da Cristina. Vivia com a avó, depois de ter sido abandonada pela mãe, tóxico-dependente. Eu assisti a tudo, da janela do meu quarto. Viviam na casa em frente à dos meus pais. A mãe, cujo nome não me lembro, era da minha idade. Caiu num buraco da vida. Gerou uma criança. Desapareceu para sempre. A pequena Cristina foi, desde que me lembro, uma criança alegre, muito inteligente. Parecia que tinha vindo ao mundo para exorcizar os erros da mãe.
            Foi só mais uma travessia. Devia ter uns dez anos. A idade do meu filho (bato na madeira). Ela foi fazer um recado à avó, atravessando a estrada na passadeira. Devia estar escuro, não sei. Agarro-me a esta teoria. Estava escuro demais para que o condutor do carro a visse.  A pequena Cristina foi parar ao hospital, com politraumatismo nos membros inferiores. O prognóstico era reservado: se a Cristina voltasse a andar, teria movimentos muito limitados – de facto, ela demorou muitos anos a conseguir andar sem muletas ou aparelhos. Nunca deixou de mancar, como que se carregasse com ela a estupidez daquele momento.

            Quantas crianças têm tudo e se deixam levar pelo negativismo e pela baixa-estima? A Cristina não tinha nada. Nem mãe, nem um andar bonito. Mas isso não a deixou abater. Era uma boa aluna. Quando cresceu, conheceu um rapaz, extremamente pobre. Tiveram uma menina, lindíssima. A Cristina é, agora, uma mãe perfeita, trabalhadora. Nada falta à menina. O rapaz emigrou. De vez em quando vejo-os juntos, uma família como as outras – não perfeita, mas também não acredito que exista uma família perfeita no mundo. Vejo-os, agora, poucas vezes. Da última vez, a menina veio na minha direcção, toda esperta, olhos azuis a faiscar, o cabelo louro encaracolado a emoldurar-lhe as bochechas e o olhar de orgulho da mãe a embelezar o quadro.

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Fome de Ti

“Sempre” não é tempo suficiente para que te consiga ler o olhar e saber tudo o que és. Preciso de mais: o meu “sempre”, em matrimónio perfeito com o teu, até que não existam mais ondas para morrer suavemente na nossa praia, num murmúrio nunca banal. Que saudades do tempo em que nos enganávamos um ao outro, jurando amor eterno: o amor não pode ser jurado sem mentir, o passado já passou, o futuro não é nosso, só o presente é uma surpresa e nos pertence, daí o nome. Só prometo amar-te agora e tentar acordar todos os dias com a vontade de renovar essa promessa. Provarei todas as noites uma migalha de ti, satisfazendo a fome que me corrói e regressa logo depois. Promete-me que nunca serás absolutamente minha, tal como nunca serei completamente teu: serás a minha conquista de todos os dias, redescobrindo-te ao primeiro raio de sol; seduz-me a cada manhã, como se fosse a primeira vez. Dá-me como presente um presente sempre diferente, a cada sorriso quente com que me recebes, quando volto do trabalho e a cada beijo apaixonado que partilhamos quando pensamos que o silêncio é nosso. À noite, quando nos deitamos, misturamos os corpos e sonhamos o mesmo sonho, como devem ser sempre os sonhos das pessoas apaixonadas, prontas e expectantes para transformar o amanhã num novo presente. Sempre.