Foi
só mais uma travessia, a da Cristina. Vivia com a avó, depois de ter sido
abandonada pela mãe, tóxico-dependente. Eu assisti a tudo, da janela do meu
quarto. Viviam na casa em frente à dos meus pais. A mãe, cujo nome não me
lembro, era da minha idade. Caiu num buraco da vida. Gerou uma criança.
Desapareceu para sempre. A pequena Cristina foi, desde que me lembro, uma criança
alegre, muito inteligente. Parecia que tinha vindo ao mundo para exorcizar os
erros da mãe.
Foi
só mais uma travessia. Devia ter uns dez anos. A idade do meu filho (bato na
madeira). Ela foi fazer um recado à avó, atravessando a estrada na passadeira. Devia
estar escuro, não sei. Agarro-me a esta teoria. Estava escuro demais para que o
condutor do carro a visse. A pequena
Cristina foi parar ao hospital, com politraumatismo nos membros inferiores. O
prognóstico era reservado: se a Cristina voltasse a andar, teria movimentos
muito limitados – de facto, ela demorou muitos anos a conseguir andar sem
muletas ou aparelhos. Nunca deixou de mancar, como que se carregasse com ela a
estupidez daquele momento.
Quantas
crianças têm tudo e se deixam levar pelo negativismo e pela baixa-estima? A
Cristina não tinha nada. Nem mãe, nem um andar bonito. Mas isso não a deixou
abater. Era uma boa aluna. Quando cresceu, conheceu um rapaz, extremamente
pobre. Tiveram uma menina, lindíssima. A Cristina é, agora, uma mãe perfeita,
trabalhadora. Nada falta à menina. O rapaz emigrou. De vez em quando vejo-os
juntos, uma família como as outras – não perfeita, mas também não acredito que
exista uma família perfeita no mundo. Vejo-os, agora, poucas vezes. Da última
vez, a menina veio na minha direcção, toda esperta, olhos azuis a faiscar, o
cabelo louro encaracolado a emoldurar-lhe as bochechas e o olhar de orgulho da mãe
a embelezar o quadro.
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