domingo, 20 de maio de 2012

Destino




Era o seu destino, aconteceu naquele dia. Tinha planeado ir a outro sítio, mas os amigos levaram-no aquele parque de diversões, que ele nem sabia que estava aberto. Mas era o seu destino ir lá, naquele preciso dia. Divertiram-se como era hábito deles, depois dispersaram-se. Ele, ao contrário dos outros, não namorava com ninguém do grupo. Aliás, estava, como ele costumava dizer, entre dois amores, só que começava a desesperar com a espera.

Viu então um cartaz que lhe chamou a atenção. “Veja o seu futuro”, podia ele ler no cartaz. Ele, que nunca acreditara nessas coisas, resolveu deixar as suas descrenças para trás e entrou na tenda, sentindo logo o intenso cheiro a algo que ele resolveu não perguntar o que era. A bruxa, de Iphone na mão e bola de cristal em cima da mesa, olhou para ele e disse-lhe, simplesmente: “Um momento, que estou a actualizar o meu perfil no facebook”. Ela escreveu uma mensagem, ou pareceu estar a escrever, fez um sorriso estranho, e olhou para ele.

- Vejo que pretende ver o seu futuro.

“Uau”, pensou ele, “ela é mesmo boa. Nunca pensaria isso. Talvez viesse comprar costeletas.”

- Prefira carnes brancas. – disse ela. E ele sentiu um arrepio na espinha e tentou não pensar em nada. Já estava arrependido de ter entrado ali.

- Não há nada a temer, à excepção da verdade – disse ela, olhando para a bola de cristal. – Ou se calhar até há.

- Vou morrer? – perguntou ele.         

Ela disse que sim.

- Mas todos morremos. Consegue ver quando vai ser? Eu gostava de ter tempo para ver os meus filhos crescer.

Ela olhou para ele com preocupação. Ele ficou aflito.

- Então, eu aconselhava que se despachasse, porque só tem 24 horas de vida – sentenciou ela.

Ele saltou imediatamente da cadeira.

- Você está doida! – gritou ele, saindo da tenda. Depois, apercebeu-se de que não tinha pago, e voltou para trás. Ela estava à espera dele, com a mão preparada para receber o dinheiro.

“Vou morrer nas próximas 24 horas”, pensou ele. “Ela está doida!”

Mas, mesmo pensando que ela pudesse estar doida, ele, que não contou a ninguém o sucedido para não alarmar ninguém, passou a ter cuidado com tudo e com todos. Não queria correr riscos absolutamente nenhuns. Esperava sempre que os carros parassem antes de passar na passadeira, evitou comer fora de casa, evitou insultar os outros condutores enquanto conduzia, se via um gato preto afastava-se, e, se via uma escada, rodeava-a. Foram as 24 horas mais aborrecidas que ele tinha vivido, sem correr riscos absolutamente nenhuns.

Voltou então à feira, quando estava quase a completar o prazo. Entrou na tenda quando faltavam poucos minutos para as 24 horas, e disse à vidente: “Como vê, ainda estou vivo.”

A vidente olhou para ele, muito séria, pegou na bola de cristal e atirou-a à cabeça dele, que caiu inanimado no chão.

“Eu não gosto que me contradigam”, foi a última coisa que ele ouviu.


sexta-feira, 18 de maio de 2012

O meu Novo EU

Quando vi no jornal a notícia, nem queria acreditar


O Meu Novo EU



Q
uando vi no jornal a notícia, nem queria acreditar. Era aquilo que eu procurava: “Saia de si próprio, mude de vida. Seja outro.” Era aquilo, sem tirar nem pôr. A Laura não se queixava, mas eu invejava secretamente a elegância e o aspecto dos outros. Queria deixar de usar os óculos grossos, de ser baixo, gordo e calvo. E músculos, queria ter músculos, não aquela massa amorfa de banha. A Laura não se queixava, mas eu sim. E agora aquele anúncio. Liguei de imediato, tão imediato que nem dei pelo facto de ter pegado no telemóvel e marcado o número. Do outro lado foram muito simpáticos e marcaram uma entrevista, como qualquer outro vendedor, quando pretende marcar uma entrevista para vender o que quer que fosse, e eu queria comprar – queria MUITO comprar um outro EU.

A entrevista correu bem. Explicaram-me que era um processo que estava na fase final dos testes, pelo que seria bastante barato. Ficaria a pagar uma mensalidade.

“E o que acontece se não puder pagar?”, perguntei eu. Eles responderam que me devolviam o meu antigo-EU. “Está bem, então”, disse eu, radiante, e sem querer saber o que eles iriam fazer com o meu antigo-Eu; mas eles explicaram-me o processo: o meu antigo-EU, biológico, seria colocado num congelador, enquanto que a minha personalidade e memórias seriam passadas, na íntegra, para um corpo sintético, absolutamente igual a um corpo biológico, só que sem a possibilidade de ter filhos (a Laura também não podia ter filhos, pelo que já tínhamos pensado em adoptar); além disso, seria eterno. Viveria para sempre. Essa possibilidade interessou-me de imediato: uma eternidade com um corpo decente, em vez de uma vida limitada com este corpo defeituoso. Aceitei de imediato. Faria uma surpresa à Laura com o meu corpo novo, um presente de aniversário (já lhe tinha comprado coisas mais caras, afinal).

Fizeram-me um questionário sobre o corpo que preferia. Olhos? Azuis. Cabelo? Castanho. Altura? 1 metro e oitenta.  Sexo? Masculino XXL. À medida que completava o questionário -parecia que estava na fila do McDonalds para escolher as opções do menu McEU-,  cheguei à conclusão que ficaria absolutamente perfeito.

Perfeito.

Assinei o contrato e paguei o sinal de entrada. Demoraria um mês a ficar pronto. Fiquei todo contente. Escondi todo o processo da Laura, e continuámos a nossa vidinha de sempre, sem lhe referir o facto de que iria ter uma versão renovada de MIM. Um MIM 2.0, muito melhor. Perfeito. Devastadoramente atraente. Só para ela.

Aquele mês demorou muitos meses a passar, até que, finalmente, o dia chegou. Observei o meu novo EU deitado, inerte, e senti-me orgulhoso. Eu iria passar a ser assim. Deitei-me e fui adormecido, de forma a ser feita a passagem das memórias e da personalidade.

Acordei e abri os olhos de imediato. Apercebi-me, imediatamente, de que estava diferente. Via, cheirava e ouvia muito melhor. Levantei-me e tentei dar alguns passos, sem grande dificuldade. Ainda vi levarem o meu corpo antigo (e parecia realmente feio e disforme). Vi-me ao espelho. Tinha realmente um bom aspecto.
Mas.

Havia sempre um mas, bem grande por sinal. A minha cara.

Observei-a mais de perto, ao espelho.

“Porque é que não consigo sorrir?”, perguntei, tendo logo outro susto ao ouvir a minha voz. Era fria, seca, muito diferente da minha voz antiga, bastante quente. Laura gostava da minha voz. Responderam-me que podiam ajustar a voz, e que os músculos da cara iriam ao sítio num par de dias.

Acreditei neles. Saí do edifício convencido de que Laura iria ter uma boa surpresa.
Mas não teve, tive muito trabalho para que ela acreditasse que era eu. E ela então disse-me que não gostava. Não era Eu. Ela amava o meu EU antigo, não aquele pedaço de borracha perfeito. Ela gostava das minhas imperfeições, sentia um arrepio na espinha sempre que ouvia a minha voz antiga. Não conseguia amar este novo EU. Perfeito demais. Seria como amar um manequim.

Tive a mesma reacção de toda a gente com quem falei. Apreciavam o meu EU anterior. Preferiam a minha imperfeição. A decisão estava tomada. Mesmo que as outras mulheres se sentissem visivelmente atraídas por este novo eu, a única que eu queria que se sentisse atraída não estava, pelo que a decisão seguinte era fácil de tomar: tirar o meu EU antigo do congelador, e voltar a vesti-lo.

terça-feira, 15 de maio de 2012

Questões

Existem questões
Existem questões
sem resposta, mas não existem
respostas sem questões. Perguntar é uma arte
que se aprende                                   bem cedo,
desde que
         nos aperce-
        bemos das
     diferenças
  e começa-
mos a duvi-
         dar das se-
      melhanças.
   Porque é
  que o mar
  é azul, e a
  terra casta-
  nha, e as fo-
  lhas das árvo-
  res são verdes?
  E por que é que
  no   Outono   as
  folhas mudam  de
  cor e caem? E por-
  que é que o avô é
  tão diferente do
   papá? E onde

          está a avó?
      E para que é esta
coisa que tenho no meio
das pernas? E  porque  é
 que   as   meninas    são  
   diferentes? E como
       é que eu nasci?


E porque é que os papás se casam com as mamãs? Tanta questão, e a escola só dá respostas, quando devia ajudar a fazer as perguntas. Em especial a grande pergunta: papá, já sabes tudo? E eu digo que não, mas sei fazer perguntas. A procura das respostas faz parte do meu caminho.

O Sonho

Penso que dormes

O Sonho



P
enso que dormes. Penso que durmo. Confundo sempre o sonho com a realidade, quando estou Contigo. A música envolve-me. Ninguém a ouve. Só eu. E tu. São músicas diferentes, sempre foram; até ao momento em que a ouvimos juntos. Olho para ti. Penso que dormes. Ou brincas, como é teu hábito. Mesmo assim ouço a tua música no contorno suave da tua pele. O leve sorriso revela-te. O olho abre-se. Contempla-me. Sequioso. A música sobe de tom. Toco-te. O mundo desaparece. Só existimos os dois, num abraço, pele com pele, carne com carne. A junção perfeita, ou mais que perfeita. Nada mais existe: és a minha pele, sou a tua carne, o mundo é irrelevante: não existe. O único som que ouço é o da nossa música. Os acordes perfeitos ao acordar. Todos os dias diferentes. Nossos. Não existe mais nada quando eu estou em ti. Nem tu, nem eu. Somos nós. Prolongamos o prazer muito para além do prazer, para não sentirmos, tão cedo, a irrelevância dos corpos, que um Deus cruel separou à nascença e que desejam estar sempre juntos.
Ou terei sonhado? Olho para ti.
Penso que dormes.






sábado, 12 de maio de 2012

A Princesa Valente

A princesa valente







A princesa valente

Uma história de desencantar














Último Capítulo










E o príncipe valente, vencendo o último monstro, libertou a princesa e regressaram ao Castelo, onde casaram e viveram felizes para sempre.











FIM











Epílogo




viveram felizes para sempre, UMA GRANDECÍSSIMA OVA!, PENSOU A PRINCESA, quando se fartou, finalmente, das  constantes saídas do príncipe. Aquela sua carreira de Salvador estava a dar cabo do casamento deles.
Estava farta.
Aquilo eram monstros, monstrinhos e monstrecos, que apareciam de tudo o que era lado.
E a vida sexual deles, quem a salvava? Perguntava-se ela, que desesperava por um filho.
Desanimada, desforrava-se em grandes Farras com as amigas. As bebedeiras eram TANTAS que a sorte dela era o CAVALO saber o caminho para o castelo.
-ENGANA-O! – dizia uma amiga, doutorada no assunto. O marido tinha um par de cornos de tal tamanho, que podia ser usados como bengaleiro.
Mas ela, apesar da distância, tinha apenas uma certeza: AMAVA-O.
E assim passava os seus dias, triste e desconsolada. Sabendo do seu estado, não eram poucos os oportunistas que tentavam a sua sorte. A todos ela dizia a mesma coisa: “Vão ter com a minha amiga, com ela terão melhor sorte. Eu, só penso no meu príncipe.”

Teve então uma ideia .
Não sabia como é que ainda não tinha pensado nisso. Ela era, de certo, princesa para isso e para muito mais. Procurou um soldado de confiança, coisa rara, nos dias que corriam - mas ele tinha sido amigo dela, e, muito embora a princesa fosse a mulher mais bela do reino, nunca trairia a sua amizade, por muito que, secretamente, a amasse.

“Ensina-me a ser valente”, pediu a princesa.

O soldado olhou-a com o seu único olho, e disse: “Mas já sois valente, minha princesa. A mulher mais valente do reino.”

“Então, ensina-me a ser valente como um homem, porque a minha valentia de mulher não me leva a lado nenhum.”, disse ela.       

O soldado, vendo que a vontade dela era grande, começou a treiná-la nas artes da guerra, a manejar a espada, a lança e a besta. E, se no princípio a princesa andava ali às aranhas, sempre a cair e a falhar, rapidamente começou a andar aos leões. A mestria dela era tanta, que 
o soldado já
não conseguia
ganhar-lhe.
Aconteceu que, a pedido da princesa, eles treinavam numa gruta perto do castelo. Os lavradores ouviam os barulhos dos gritos que vinham da montanha, e convenceram-se de que havia um monstro a habitar nela.
Com medo de assustar a princesa, falaram com o alcaide, que mandou secretamente chamar o príncipe, porque não queria, também ele, alarmar a princesa.
O príncipe chegou, alguns dias depois, secretamente, porque também ele não queria alertar a princesa. Nem o monstro.



A
peou-se junto da entrada da caverna, tirou a sua melhor espada e o escudo do alforge, e seguiu pelo carreiro que conhecia desde criança. Começou a ouvir os gritos do monstro que, ao contrário dos outros homens, que ficavam paralisados de medo ao ouvir semelhante grito, ainda lhe deu mais vontade de entrar.

Descobriu, rapidamente, a origem dos gritos, que ele conhecia perfeitamente das noites com a sua princesa. Encontrou-a vendada, a lutar com um dos seus soldados de confiança. Fez-lhe um sinal para manter silêncio, e trocaram de posições, passando a ser o príncipe a lutar com a princesa. O soldado, para que ela não estranhasse, continuava a dar recomendações, e ela, embora estranhando a alteração na forma do seu professor lutar, continuava a dar os seus gritos.
  
“Achas que o meu príncipe vai ficar orgulhoso de mim?”, perguntou ela, parando de lutar, arfando, toda suada, mas sem tirar a venda.

“O teu príncipe já está orgulhoso de ti”, disse o príncipe, enquanto lhe tirava a venda dos olhos.


O príncipe reconheceu a sua falha, e a mulher passou a acompanhá-lo nas suas aventuras, até que nasceu o primeiro de muitos monstros. Digo, filhos.
Com quem eles lutaram muito. Digo, amaram.

E foram realmente felizes para sempre.








AGORA, sim, É o FIM.








terça-feira, 17 de janeiro de 2012

O pardal preguiçoso

  Vou contar a história de um pardal preguiçoso. Dei-lhe o nome da história, agora não há volta a dar. Ele tinha dois irmãos, o pardal Inteligente, que arranjava sempre forma de roubar a comida dos irmãos, e o pardal Corajoso, que estava sempre a tentar meter-se em sarilhos e que foi o primeiro a sair do ninho. Ou melhor, foi o primeiro a cair do ninho, mas a coisa até correu bem e quando deu por ela já voava pelos campos. Depois foi o Inteligente, muito atento ao que aconteceu ao irmão, observava como batia as asas e descobriu o truque. Saiu do ninho logo a seguir, batendo as asas com grande mestria, para grata surpresa dos pais.

  Mas com o pardal Preguiçoso a coisa não aconteceu assim - melhor dizendo, não aconteceu. Não queria nem por nada sair do ninho. Bem que olhava para os irmãos, mas não se atrevia a tentar voar. Limitava-se a abrir o bico a pedir comida, o que resultou até ao dia em que os pais se fartaram com aquela situação. Vendo-se em apuros, o pardal olhou para o chão, abriu as asas, mas no último momento desistiu. Quando a fome apertou, saiu do ninho e começou a pular pelo ramo da árvore, descobrindo insectos que podia comer - e passou a alimentar-se daquela forma, pulando sempre. Descobriu que podia abrir pequenos buracos na madeira afiando as garras, e com os dias a passar foi ficando com as pernas mais fortes e as garras mais afiadas de que havia memória entre os pardais.

  Entretanto os seus irmão voavam perto da árvore onde ficava o ninho, e o pardal Preguiçoso começava a sentir alguma inveja deles, mas não se atirava do ramo da sua árvore. Ainda por cima estava cada vez mais forte, para quê se aventurar, se tinha tanto que comer no seu próprio ramo?

  Até que um dia tudo se alterou. Um gato, que à espreita já se tinha dado conta de que havia dois pardalitos sempre à volta de uma árvore, imaginou uma armadilha. Deitou alguns pedaços de pão para o chão e escondeu-se. O pardal Corajoso foi o primeiro a poisar na comida e começar a debicar. O pardal Inteligente deu algumas voltas, estranhando tanta abundância, mas como não deu pelo gato, poisou também, e ao lado do seu irmão e começou a debicar. O gato saltou então, pondo uma pata em cima de cada um dos pardais. Começava a preparar-se para emborcar o Corajoso, quando o Preguiçoso, que tinha visto tudo do seu ramo, lhe caiu em cheio em cima do focinho, abrindo-lhe uma feia ferida com as suas garras afiadas. O gato deu um grande salto, miando de dor, e até hoje nunca mais foi visto por ali.

  Como paga, os dois irmãos ensinaram o Preguiçoso a voar...


sábado, 7 de janeiro de 2012

Dois pensamentos

Isto não é um conto, é mais um pensamento. Aliás, dois. Somos seres vivos, feitos de matéria. Simples. Átomos que se juntaram em moléculas, que formaram células, que se juntaram em tecidos, que formam orgãos capazes de suportar a vida. Parece-nos simples. A maior parte de nós atravessa a sua existência sem se deter para pensar nisto. Vivem sem ter a consciência de que estão vivos, e no privilégio que isso representa - sem ter consciência de que todas as nossas células conspiram para um único fim, o de nos manter vivos.
O segundo pensamento ainda é mais complexo. Dizem os peritos que toda a matéria teve origem num único momento, ao qual deram o nome de Big Bang, com a mania que os peritos têm de dar nomes a tudo o que se mexe e fica parado. Todos nós somos feitos da mesma matéria das estrelas, que é usada e reciclada através dos tempos, assumindo diversas formas.
É um pensamento estranho. Partes de mim já fizeram parte de outros seres. Os átomos que compõem o meu corpo habitaram outras formas de vida, que por sua vez já tinham feito parte de outros corpos. Eu sou composto por outras vidas. Centenas de milhares de outras vidas. Que por sua vez também partilharam a sua matéria com outras centenas de milhares de vidas, numa trama que existe desde o início da vida.
Somos feitos do pó das estrelas, partilhamos todos da mesma matéria e tudo conspira para que permaneçamos vivos.
E mesmo assim ainda não aprendemos a respeitar-nos uns aos outros....