quinta-feira, 7 de abril de 2016

O Jogo

Nem frio, nem calor, apenas o sol suficiente para aquecer o corpo no parque e esquecer o longo inverno e uma primavera mais húmida do que me consigo lembrar – mesmo que a memória já não seja a mesma há muitos anos. Nestes dias, a rotina era sempre a mesma, depois do almoço vínhamos para ali, ocupávamos um lugar numa das mesas em cujo tampo alguém teve o discernimento suficiente para pintar um tabuleiro, talvez até tenha sido eu. Não creio. Pego no saco das pedras redondas e coloco-as no tabuleiro. Doze peças pretas e doze peças brancas, todas iguais, de marfinite gasta pelo tempo. Disponho-as para começar uma partida de damas.

Ele chegará, lento e cambaleante, cigarro na boca. O cheiro a tabaco denuncia-o sempre. Senta-se na cadeira da frente e começa a jogar. Não diz uma palavra. Trinta anos de amizade e dez na reforma não deixam muitos assuntos pendentes. Ganha-me frequentemente. Ou deixo-o ganhar, já não sei. O resultado não interessa, apenas o tempo que é passado para que resulte.

Ele chegaria, lento e cambaleante, cigarro na boca. O cheiro a tabaco já não o denuncia. Repousa agora na sua última morada. Deixou-me ganhar naquela que era a nossa maior competição: viverei mais tempo do que ele. Essa vitória sabe-me mal, tal como me sabia mal o cheiro do seu tabaco.

Jogo agora sozinho. Imagino-me a jogar com ele. Repetidamente. Ganho-me e perco-me. Não interessa. Dentro de pouco tempo até o calor do sol me deixará de interessar.

Faço o último movimento. Como uma pedra no jogo. Com raiva. A pedra comida desliza para fora da mesa e cai ao chão de erva rala. Inclino-me para a apanhar, uma aventura na minha idade. Sinto todas as articulações do meu corpo a estalar. Estico o braço, a mão esbranquiçada e manchada quase que chega à pedra, mas outra mão mais jovem antecipa-se e apanha-a.

O rapaz não tinha mais de nove anos. Já o tinha visto por ali, sempre na companhia da irmã mais velha que se sentava a ler num dos bancos mais afastados. Na mão trazia uma consola de jogos, uma daquelas coisas que lhe ocupavam sempre a atenção, em vez de estar a jogar à bola com os amigos. Talvez, como eu, não tivesse amigos. A solidão não era um exclusivo da velhice.

“Acabou a bateria”, queixou-se ele. Eu sorrio: “O meu jogo não precisa de pilhas. Queres que te ensine?”

O rapaz olhou com estranheza para as pedras durante algum tempo e depois aceita, sentando-se no banco que era do meu amigo. Apetece-me avisá-lo dos malefícios do tabaco, mas ainda é muito cedo para isso…

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Publicado a 1 de Maio de 2013 no Blogue Evoluir

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