quinta-feira, 7 de julho de 2016

O Caçador de Dragões

No meio de mais uma crise existencial, eis que um anúncio no jornal muda tudo na vida de um homem. Senhores e senhoras, esta é a fabulosa história de um contabilista que não queria continuar a contar o deve e o haver da vida dos outros. Fartou-se de entregar o Iva, o IRS e a porra do IMI. Deixou de ter paciência para lidar com websites temperamentais e com a bipolaridade dos clientes. Decidiu mudar de vida. Queria dedicar-se a qualquer coisa, não importava o quê. Até podia ir para calceteiro marítimo, se isso tivesse futuro. Mas não precisava procurar mais – encontrara a resposta naquele jornal, num rectângulo de 6x4 cm onde podia ler, a letras garrafais: “Não perca mais tempo. Aqui está a oportunidade para se tornar num caçador de dragões. Oferta limitada. Profissão de futuro com todas as regalias. Ligue … “
Ele leu o anúncio duas e três vezes. Quem é que poderia querer embarcar em semelhante insanidade? Dragões? Não existiam dragões, pensou ele. Eram invenções, mitos como quaisquer outros. No entanto…
Há sempre um “no entanto”. 
O anúncio teve o condão de fazer recordar ao homem os tempos recuados nos quais acreditava em dragões e até inventava histórias sobre eles. Isso tinha acontecido muito tempo antes de se dedicar à Contabilidade. Poder-se-ia dizer, até, que a Contabilidade tinha matado os dragões. Qual São Jorge, qual quê… um Balanço ou uma Demonstração de Resultados dava cabo de qualquer dragão. 
O problema é que ele tinha sido mais feliz quando ainda acreditava nos bichos. Os números tinham deixado de lhe interessar. Quando deu por ela, já tinha agarrado o telemóvel e digitava os dígitos do único número que o motivava – o número do telefone que estava no anúncio. 
“Que insanidade”, pensou, abanando a cabeça. Estava em frente ao sítio combinado. Uma casa antiga, na parte antiga da cidade. Um prédio abandonado, quase em ruínas. Esteve a um ponto de virar as contas e regressar para a sua vida. Uma voz forte chamou-o. 
- Jorge!
Era um homem alto, de aspecto alucinado e aparentando ter saído do 3º Livro do Harry Potter. Jorge cumprimentou-o, sem conseguir esconder o medo. 
- Sou Cornélio. 
- Prazer em conhecê-lo. Vim para o curso. Já chegaram todos os formandos? 
Cornélio sorriu. 
- Que outros formandos, Jorge? O senhor vai ter o privilégio de uma formação exclusiva. 
Jorge não sabia como reagir a essa revelação. A formação era exclusiva porque ele era o único maluco a querer pagar para caçar criaturas imaginárias. 
- E existem dragões, Sr. Cornélio? 
- Claro que sim. Duvida? 
- Eu nunca vi. 
- Ah! Só acredita vendo. Diga-me, Jorge, acredita na existência de Calisto? 
- Não sei o que é.
- É uma lua de Jupiter. 
- Ah, sim. Acredito. 
- Mas nunca a viu. 
- Não. 
- Portanto, está disposto a acreditar num pedaço de rocha que flutua no espaço a muitos milhões de quilómetros e que nunca viu, do que acreditar em dragões que vivem entre nós. 
- Vivem? 
- Claro. Não estaríamos aqui, de outra forma. 
- Mas eu continuo a não acreditar. 
- Nesse caso, porque veio?
- Vim porque quero mudar a minha vida. 
- E quer sair da monotonia matando animais que não acredita existirem?
- O curso já está pago. Fiz a transferência. 
- Eu sei. Recebi a notificação por SMS. Quer, então, continuar com o curso? 
- Claro. 
- Comecemos, então. 

Jorge passou dois dias a treinar a pontaria e a usar maquinaria estranha, que parecia ser usada para apanhar pássaros. Pássaros grandes, com tendência para a piromania. No final, foi um Jorge extremamente cansado que regressou para casa. Cornélio dera-lhe provas suficientes de ser um maluco que merecia estar institucionalizado. Jorge, pelo simples facto de ter feito o curso, achava que não era muito diferente de Cornélio – ainda não estava suficientemente insano a ponto de extorquir dinheiro a idiotas. Abanou a cabeça, dando-se por vencido e preparando-se para regressar à Contabilidade. Depois, tirou a chave e abriu a porta. No vidro da porta pareceu-lhe ver, por breves instantes, uma sombra com a forma de um dragão.  

O ex-caçador de dragões, que agora se dedicava apenas a contar o dinheiro dos outros, calhou um dia olhar pela janela. Morava no 10º andar de um prédio sem nada de especial que não fosse o facto dele ali morar e das constantes avarias do elevador. Dali conseguia ver a rua, onde as pessoas se dedicavam às suas vidas, estranhamente parecidas com formigas atarefadas, e carros que transportavam outras formigas, eventualmente mais selectas mas igualmente atarefadas. 
O prédio da frente era exactamente igual ao prédio onde ele vivia. Nada tinha de especial que não fosse o facto dela morar ali. Ele conhecia-a apenas de vista. Mudara-se para ali no ano passado. Não era especialmente bonita, mas algo prendera a atenção do ex-caçador de dragões. Teria sido amor à primeira vista. Não: tinha sido à segunda vista. À primeira vista, o ex-caçador de dragões viu apenas uma rapariga pequena e forte, que escondia uns olhos estranhamente bonitos por trás de uns óculos com lentes de fundo de garrafa. 
Adiante: calhou a Jorge olhar pela janela e o que viu encheu-o de terror. Na cobertura do edifício viu um dragão, de asas abertas. Um monstro lindíssimo, cuja pele brilhava ao sol do meio-dia. Jorge olhou em volta. Parecia que apenas ele podia ver o dragão. Pegou no telemóvel. As mãos tremiam enquanto marcava o número de Cornélio, o seu formador de luta contra dragões. Ele demorou a atender. 
- Estou?
- Sou eu, Jorge. Há um dragão no topo do edifício da frente. 
- Ah… percebi. Tem o seu kit anti-dragões?
Jorge olhou para um embrulho grande, encostado à parede. 
- Sim. Chegou hoje. 
- Óptimo. Use-o. 
E Cornélio desligou. Jorge engoliu em seco (insultando em silêncio Cornélio) e contabilizou as suas opções. Curiosamente, nem sequer considerou a hipótese de ligar às autoridades. Não: aquela era a sua luta. Desembrulhou o kit anti-dragões. Do meio do papel tirou uma espada e um escudo ridículo, ambas as coisas com a inscrição “Recordação da EuroDisney, produto da República Popular da China”.
Assim armado, Jorge saiu para a rua, indiferente às pessoas que não estariam habituadas a ver um caçador de dragões em plena actividade. Esperava que a porta da rua do prédio da frente estivesse fechada, mas não. Ele entrou sem qualquer dificuldade. Depois, chamou o elevador. Uma senhora passou por ele, carregada com compras. Jorge sorriu. 
- Está avariado. – informou a senhora, com o ar simples de quem vê caçadores de dragões todos os dias. 
Jorge agradeceu a informação e começou a subir as escadas. Seriam, pelos seus cálculos, treze andares. A caixa de escadas era escura. Os degraus estranhamente irregulares. A ele, nada disso importava. Tinha de salvar a sua dama. Com ela no pensamento, redobrou o passo, caindo duas vezes seguidas. Cada vez se sentia mais pesado. O escudo parecia ficar cada vez mais pequeno, até que o atirou ao chão. Tinha ficado do tamanho de um prato. A espada, do tamanho de uma agulha, as roupas apertadas, a visão turva. 
Cornélio já o tinha avisado. Tinha de ser forte. A magia dos dragões era poderosa. Jorge, no entanto, desconhecia o facto de estar a ser afectado por uma magia ainda mais poderosa do que a dos dragões. Uma magia antiga, forjada na origem dos tempos. 
Quando Jorge chegou ao topo da escada, mal cabia no corredor. Abriu a porta (estranhamente transformada num portão de ferro, como aqueles que existiam nos castelos antigos – aliás todo o prédio se tinha transformado num castelo. Minto: todo o prédio se tinha transformado numa torre, de onde Jorge conseguia ver toda a cidade, perfeitamente indiferente à sua luta). 
Ele ali estava. O dragão. Imenso, com asas abertas. Os seus olhos fitavam Jorge. 
Mas Jorge já não era Jorge, nem contabilista, nem caçador de dragões. Jorge tinha-se transformado, ele próprio em dragão. Olhou para as suas garras, para a sua pele prateada e para as asas. Admirou-se pela normalidade com que aceitou essa mudança. Reconheceu no dragão que tinha pela frente a sua amada. Ilda, era o seu nome. Não precisaram de palavras. Limitaram-se a levantar voo, com a certeza de que ninguém iria dar pela falta deles.

FIM





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