quinta-feira, 15 de junho de 2017

O Ouro de Florêncio

A cena passa-se num café de uma pequena terra do interior. Na televisão marcada pelo tempo, vinte e dois homens adultos correm atrás de uma bola. O dono do café olha, desinteressadamente – não é o clube dele, todos sabem. A plateia é composta unicamente por homens, distribuídos de forma uniforme por mesas de aspecto rústico, tão marcadas pelo tempo como a própria televisão. “Parecem fazer parte da mobília”, seria a conclusão que um cliente mais assíduo faria. Eram sempre os mesmos clientes, sentados nas mesmas mesas. Só o jogo mudava. Os berros alteravam o tom consoante as preferências clubísticas. Durante os noventa minutos regulamentares da partida, nada existia no exterior do café, apenas visitado no intervalo para um cigarro – raio de regras que impediam o fumo onde antes o fumo era regra.
A nossa história centra-se em dois homens. Estão sentados em silêncio, como se estivessem na igreja. Nenhum deles tira os olhos da televisão. Florêncio, o mais velho, parece mesmo hipnotizado pelo aparelho, numa ânsia semelhante à que sente um adolescente a jogar numa consola. O outro exibe uma calma serena, só o constante agitar das mãos denota o seu nervosismo.
O jogo chega ao intervalo. Florêncio finalmente respira. O homem que o acompanha levanta-se juntamente com os outros para irem fumar no exterior do café. Florêncio declina o convite. O médico tirara-lhe o tabaco.
O grandecíssimo pulha do médico, pensou, enquanto trincava mais um amendoim. A sua mente, no entanto, divaga para longe. Já não estava naquele café, nem sequer naquela pequena terra. Vivia em Lisboa, num apartamento minúsculo e degradado no Areeiro. O Luís não teria dois anos. Tinha nascido por engano, num cio regado a álcool. Florêncio perfilhara-o de imediato, rebuscando uma honra perdida nos meandros mais esquecidos da sua alma boémia. Vivera com ela dois anos. Demasiado tempo, demasiadas discussões. Ambos bebiam, agora cada um para seu lado, o filho no meio, a berrar por atenção.
Um dia, Florêncio descobre que ela tinha fugido para Badajoz com um tipo qualquer que a iludira como só os homens sabiam iludir. E Florêncio viu-se sozinho, com uma criança nos braços, perfeitamente desesperado. Os amigos do café de então aconselharam-no a arranjar outra mulher, como se o coração fosse um supermercado. Ele abanava a cabeça, argumentando que uma vez chegara. O conselho seguinte, o de deixar o puto numa instituição, é levado mais a sério.
Florêncio revive esse momento quando, já depois de ter combinado tudo com a directora do orfanato, sobe a ladeira com o Luís pela mão. Parece que ainda hoje sente o calor abrasador daquele sol de Junho, a mão minúscula do filho perdida na sua própria mão e o seu incessante interrogatório.
“Onde vamos, papá?”
“Vamos falar com uma senhora.”
“A mamã está lá?”
“Não, a tua mãe ainda está de viagem. Ela já volta.”
A cada pergunta, Florêncio vai perdendo a coragem. Cada passo torna-se mais pesado. O calor coze-lhe a consciência.
“Eu quero jogar à bola contigo, papá. Eu gosto muito de jogar à bola contigo.”
“Depois jogamos, meu filho. Depois.”
“Quando eu for gande, quelo ser jogador de futebol, papá.”
É naquele momento que Florêncio perde a coragem. Senta-se num degrau de uma casa, abraça o filho e chora, sentindo-se profundamente aliviado.
“O que é papá? Estás triste?”
Florêncio abana a cabeça. Não, já não estava triste. Regressa pelo caminho mais longo, aquele que passa pelo parque, compra ao Luís um gelado dos mais baratos e prepara-se para a luta. Seriam anos de grande desafio.
No café, o intervalo termina, os homens regressam. Florêncio volta a cravar o olhar no televisor. O árbitro apita e a partida recomeça.
O espírito de Florêncio viaja para outros jogos. Luís tem sete anos. Anda nos iniciados do Belenenses. Dizem-lhe que o rapaz tem futuro, que é rápido e ágil. Dizem-lhe que vale ouro. Florêncio sorri. A vida já lhe dera tristezas suficientes para que ele se deixasse levar com promessas vãs. “A ver vamos”, respondia ele, e não se enganava. Aos dez anos o Luís chega a casa com falta de ar. Parecia que a camisa lhe ficara subitamente apertada, estrangulando-o. Florêncio vai com ele ao hospital, onde o encaminham para as consultas de pneumologia.
O diagnóstico da asma e da bronquite deitam por terra o sonho. Luís passa cinco anos a correr para o hospital. O ouro diluiu-se num vazio profundo, numa mágoa silenciosa que Florêncio rapidamente exorciza.
O ruído acorda-o. Regressa à actualidade. No café as pessoas manifestam-se aos berros.
Golo!
O seu companheiro de mesa bate-lhe no braço, eufórico.
Nelson Silva tinha marcado um golo. Florêncio atentou na repetição. O guarda-redes adianta a bola, o central faz um balão, o Nelson domina a bola com o peito e sem a deixar cair ao chão enfia-a no fundo da baliza como se de um petardo se tratasse. Florêncio levanta-se num salto, aos berros, quando já toda a gente tinha acabado de celebrar – mesmo as pessoas que torcem pela equipa contrária.
– O teu neto vale ouro, pai – comentou o seu companheiro de mesa.
– Eu sei, Luís. – responde Florêncio, com uma lágrima a escapar-lhe do olho.

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