quarta-feira, 19 de abril de 2017

Livre!


A voz encheu de cor o quarto branco. Ao som dela, a pequena Filomena corria pelos caminhos graníticos da aldeia. Os adultos diziam que mais parecia voar, endiabrada como era seu hábito. Em vez de pés, Deus tinha-lhe dado asas e um sorriso matreiro com o qual desafiava tudo e todos. Gostava particularmente de subir às árvores, à cata de ninhos. Depois, equilibrava-se num ramo como se de uma gata se tratasse e ficava horas a ver as crias. Nunca lhe passaria pela cabeça destruir os ninhos, como os rapazes gostavam de fazer, nem sequer de matar sapos e caçar salamandras. Filomena gostava de pássaros. Sabia-lhes o nome, imitava-lhes o som, sonhava ser um melro. Ou um pintassilgo, ou um simples pardal. Algo que tivesse asas. 

A voz muda, conta outra história. Filomena conhece António no baile da aldeia vizinha. Sente o coração aos saltos, a cara vermelha. Queria ter ali uma árvore onde se esconder, como fazia na infância. Mas na vida nem sempre temos onde nos esconder, e o olhar de António procurava-lhe o corpo com uma atenção que Filomena nunca suspeitara poder causar. No momento da primeira dança, Filomena descobre nos braços de António as asas que sempre sonhara ter. Recorda o momento como se tivesse sido ontem – mas o tempo não tem tempo para parar e tudo corrompe à sua passagem. Filomena  cresce à medida que aqueles que ama desaparecem. Os sonhos, esses, avolumam-se como se avolumou a sua barriga. Em Lisboa nasce Ricardo, depois Sónia e por fim Luis, aquele que acabaria por morrer ao fim de nove dias. Deus assim quis, Filomena resigna-se à sua sorte e refugia-se no sorriso dos filhos, tão matreiro como era o seu próprio sorriso na idade deles. Eles já não sobem às árvores nem procuram ninhos. São animais de cidade. Os tempos são outros, dizem. 

A voz pára um instante, ouve-se um telefone e uma conversa rápida, em voz baixa. Depois, a leitura é recomeçada. As palavras ecoam no quarto e transportam de novo Filomena para o seu pequeno mundo onde Ricardo está doente. António estava em França, a trabalhar. Não tem notícias dele há meses. O coração endurece, torna-se pedra. Filomena desdobra-se em esforços para criar, sozinha, a sua família. Recebe a notícia sem surpresa – António tinha já outra mulher e avizinhava-se um filho. Nesse dia, Filomena assume um estado cadavérico, mas resiste entregar-se ao aconchego do álcool, lutando com todas as suas forças. Por fim, é de novo a criança que corre endiabrada entre empregos e sobe as escadas dos prédios que limpa como se estes fossem árvores. Observa à distância a felicidade dos patrões como antes fazia com os ninhos. Os sonhos regressam, não para ela, mas para os filhos. A vida renasce neles. Tem de lutar por isso, contra tudo e contra todos. O seu maior inimigo é a solidão que sente todas as noites, a força nasce e renasce de dia no olhar dos filhos. 

É através desse olhar que Filomena vê agora o tempo passar.

A voz interrompe novamente a leitura. O quarto enche-se de silêncios. Ao longe, a televisão debita uma novela. Lá fora ouve-se uma ambulância. Filomena lembra-se de ter andado numa, quando o filho partira um braço a andar de bicicleta. Reconfortara-o como pôde e sabia. Contara-lhe histórias de antigamente, de quando ela própria partira um braço ao cair de um ramo. Nunca mais tivera força para subir. Mas a vida ensinara-lhe uma lição: se não podia trepar, podia sempre usar uma escada. Parada é que não chegava a lado nenhum. 

E a vida não parou. Aos poucos, o tempo deixara-a ainda mais sozinha. Quando chegou o momento, os filhos levantaram asas e saíram do ninho. Filomena olhou então para as mãos vazias, sem nada para fazer, e começou a pensar na vida. Pela primeira vez era absolutamente livre, sem o controlo dos pais, nem do marido, nem mesmo dos filhos. Era uma liberdade estranha, castrada à nascença. A pequena casa tornara-se apenas isso: quatro paredes sem vida. E o cadáver que era Filomena desde que António a abandonara, falecera novamente quando os filhos partiram. Renasceria no primeiro vislumbre dos netos. 

Inês pára de ler, Filomena sabe que é a neta, mesmo que já não lhe consiga ver a cara da mesma forma. É uma mulher casada, à espera do primeiro filho. Todos os dias se senta ao lado de Filomena e lê um livro infantil à avó, o mesmo que esta lhe lera na infância entrecortada entre a casa dos pais e da “Vó Mena”.  O que interessa a Filomena é saber que ela ali está. Inês aproxima-se, segura-lhe a mão fina e engelhada. Dá-lhe um beijo na face da avó. A voz de Inês transporta-a para os tempos em que a doença ainda não a prendera àquela cama, incapaz sequer de falar. 

E tinha ainda tanto para dizer. 

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