domingo, 14 de setembro de 2014

1915

      - Assim, avô?
      - Não, estás a fazer isso mal, Heinrich. Endireita mais o corpo. Puxa mais as rédeas. Sente o cavalo. Só depois de o compreenderes é que o podes controlar.
      E eu tento fazer isso, enquanto cavalgo o Blau o melhor que posso pelo terreiro da quinta do meu avô. Adorava passar lá as férias da escola, enquanto ele me contava histórias de quando era cavaleiro no Exército da Prússia, as batalhas em que combatera e do conceito de honra que havia então. Foram essas histórias que me levaram a alistar no exército, mas não consigo encontrar a honra na lama da trincheira. Sinto falta dele, do meu avô. Ele saberia o que eu deveria fazer. Mas ele perdeu a sua última batalha para o cancro, sem qualquer honra nem dignidade.
      Hoje parece seguro tirar a máscara, ao contrário de ontem. Os nossos superiores dizem que foram os Bifes que mandaram a porcaria do gás, mas um amigo que veio do lado norte diz que desconfiam que é nosso. Alguém deitou demasiado perto do nosso lado e o vento encarregou-se de o trazer para a trincheira. O Hans ter-se ia rido disso. Ele passava o tempo a contar anedotas as poucas que um rapaz de 18 anos poderia saber. Mas ele disse a última anedota antes de sair da trincheira, na última investida, e agora o seu cadáver jaz em Terra de Ninguém. Chamam-lhe assim porque ninguém tem coragem de voltar lá para ir buscar os corpos dos nossos companheiros. Ou dos companheiros dos Bifes. A história é a mesma. Estamos num impasse. À espera. Investimos e respondemos às investidas deles. E entretanto morremos sem sabermos muito bem porquê.
      Dizem que é hoje que eles vêm. Há notícias de que vai ser em grande. Eu verifico mais uma vez a minha arma, uma Maschinengewehr 08, ou simplesmente MG como me ensinaram na formação em artilharia. Está perfeita. Melhor do que qualquer outra naquele sector. O meu avô ensinara-me a ter cuidado com o material.
      Espreito pelo buraco para o outro lado, por entre os sacos de areia e a malha de arame farpado. Está tudo calmo. Mas eles estão lá. O Sargento vem ter comigo. Dá-me uma ordem, olha pelo buraco e vai-se embora. Está nervoso. Talvez mais do que eu. De certeza mais do que eu. Diz-se que passa o tempo na latrina, e que a verdadeira guerra se trava nas suas tripas. Diz-se tanta coisa, penso eu, enquanto abro uma lata de feijões. Começa a chover. Vou buscar o oleado. Não dou duas horas até que a lama atinja vinte centímetros de altura. Ou mais. Nos dias em que a lama é muita, chamamos a trincheira de piscina. Um homem habitua-se a tudo. Mesmo os de 18 anos como eu. Pelo menos, acho que ainda tenho 18 anos. O Sargento passa, mais agitado. Ouço apitos e gritos. De repente, tudo muda. Começa a cair fogo de morteiro, e oiço o matraquear das metralhadoras. Largo os feijões e amarro-me à minha arma, espreitando pelo buraco. De início, não vejo nada. Depois, ao longe vejo um vulto. Um, não, um grupo. Correm na minha direcção. Eu carrego no gatilho. Eles caem no chão, vítimas de uma saraivada de balas da minha MG. Ouço-lhes os gritos, mas logo vêm mais. Alguns são apanhados por outras metralhadoras, outros pela minha.
      E continuam a vir. Já me custa carregar no gatilho e enoja-me o cheiro a queimado habitual na MG. Eles são jovens como eu. Tento não pensar nisso, mas não o consigo evitar. Não há honra nem valor na guerra, apenas a sorte ou o azar de estarmos no sítio correcto. Aparece mais uma investida. Há já um monte de soldados ingleses a contorcer-se de dores ou completamente imóvel. Jovens, como eu. Páro de disparar. Uma lágrima cai-me do olho. O sargento aparece, e aos berros ordena-me que dispare.
      - Encravou, meu Sargento! – grito eu, mas o homem está completamente doido. Arranca-me das mãos a metralhadora e carrega ele próprio no gatilho. A máquina dispara mais uma rajada, ceifando a vida a mais três rapazes ingleses.
      - Dispara! – ordenou ele.
      Eu continuo com os braços para baixo, sabendo perfeitamente os riscos que corria. Ele deu-me uma estalada na cara. Senti algo a partir, dentro da minha cabeça. A dor rapidamente alastrou ao resto do meu corpo. Depois senti o cano da pistola do Sargento na minha cabeça.
   Nunca desobedecer a um superior. Esse tinha sido um ensinamento valioso do meu avô. Ele, que tinha sido mais superior na minha vida do que qualquer outro oficial nesta guerra sem sentido. Só havia uma forma de ter honra, pensei, levantando-me, de braços abertos.
      O tiro do Sargento foi a última coisa que ouvi ou senti.

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