terça-feira, 29 de novembro de 2011

Pseudo-conto de Natal

  Este é um conto de natal. Mais um, reconheço, mas este é diferente porque se passa depois do Natal, quando o Rui foi com o pai para o parque da cidade experimentar a bola nova, a tal com que ela sonhara desde que a vira no catálogo que alguém colocara na caixa de correio – aquela coisa onde os pais recebem as contas para pagar, e onde dizem que antigamente se recebiam cartas e mensagens das outras pessoas. Para o Rui isso é uma grande confusão – as cartas demoravam dias, e ele não conseguia compreender nada que demorasse DIAS. Quando queria mandar uma mensagem para um amigo, pegava no telemóvel que a mãe lhe tinha dado o ano passado, e pronto. Agora demorar dias a enviar mensagens, não lhe cabia na cabeça!
   Adiante…
   Estava o Rui a jogar à bola com o pai quanto toca o telemóvel do pai. Este atira a bola ao filho, faz-lhe um sinal que significava que o jogo estava interrompido enquanto que ele atendia uma chamada que era mais importante do que o filho, que já estava mais do que habituado a isso e que chutava a bola para a frente e para trás, como se estivesse num jogo a jogar contra ele próprio, que era ao mesmo tempo defesa, avançado e guarda-redes das duas equipas, bem como o treinador e o árbitro. A certa altura deu-se conta de que outro menino olhava com atenção para o que ele estava a fazer. Aproximou-se timidamente. Pediu-lhe que o deixasse jogar. O Rui chutou-lhe a bola, o que na linguagem universal dos miúdos significava “está bem, vamos lá dar uns chutos na bola”. O pai dele deitou um olhar desconfiado ao miúdo, mas continuou a falar ao telemóvel, sem tirar o miúdo desconhecido debaixo de olho. Era mais alto do que o Rui, mas muito mal vestido. O cabelo preto parecia espuma que não via pente há mais de quinze dias. A certa altura o Rui deu um chuto mais forte e a bola rebolou para detrás do monte onde estavam a jogar. Ele correu atrás da bola – e o rapaz desconhecido foi atrás dele. O pai do Rui, que se tinha virado momentaneamente de costas enquanto gritava ao telemóvel, deu a volta e não conseguiu ver o filho em lado nenhum. Desligou imediatamente a chamada. Gritou pelo Rui. Uma, duas, três vezes. Correu pelo monte acima. O coração batia-lhe forte, parecia que queria saltar-lhe do corpo e ir ele próprio à procura do Rui. O pai do Rui pensou em tudo o que poderia acontecer de mal, como fazem todos os pais nestas situações, excepto ver o filho a subir o monte, sozinho e sem bola. No seu rosto tinha uma expressão de felicidade que o pai dele não conseguia decifrar, e fez a única coisa que um pai podia fazer – abraçou-o.
   "O que aconteceu, Rui?”, perguntou. 
   “O menino foi buscar a bola lá em baixo. E depois o pai chamou-o. Ele disse que não tinha nenhuma bola, por isso eu dei-lhe a minha, papá. Ele não teve Natal, papá!” 
   O pai do Rui viu a alegria do filho, mas não conseguia deixar de pensar em quanto lhe tinha custado a bola. O outro miúdo tinha enganado o filho e roubara-lhe a bola, pensava. “Isto não fica assim”, pensou, avistando ao longe o miúdo a brincar com a bola, na companhia de um adulto que jogava com ele, de uma forma que deixava prever que nenhum telemóvel conseguiria parar. 
   O pai do Rui desceu a ladeira para ir ter com ele e pedir explicações. À medida que se aproximava ia chegando à conclusão de que já tinha visto este homem. Costumava estar a pedir e a arrumar carros nas ruas da baixa. Ficou com medo – mas como já tinha começado a descer não ia dar meia-volta. Engoliu em seco. O rapaz continuava a chutar a bola para o adulto, até que o pai do Rui chegou à beira deles e eles pararam. O homem tinha um aspecto assustador, parecia que não sabia o que era um banho há meses, e o cheiro mostrava as evidências desagradáveis disso. A barba e o cabelo negros cobriam-lhe a face, mas mesmo assim aqueles olhos eram familiares, pensou o pai do Rui.
  “Artur?”, perguntou, timidamente, o pai do Rui. O desconhecido sorriu e apresentou a mão suja, que o pai do Rui apertou com alguma repugnância.
   “Jaime!”, disse o desconhecido, que afinal era um antigo amigo dos tempos de escola. Conversaram algum tempo, enquanto os respectivos filhos davam toques na bola, da mesma forma que eles próprios tinham feito no recreio da escola. A diferença era que Jaime conseguira ter sucesso na vida, enquanto que o Artur se perdera pelo meio. Quando o sol ameaçava desaparecer por trás das montanhas, eles despediram-se. Jaime e o Rui voltaram para casa, o Rui radiante por ter feito um novo amigo, e por ter dado um presente, Jaime revia os seus tempos de escola. Reconhecia que tinha passado vezes sem conta pelo mendigo, mas que nunca tinha parado para reparar nele. Não sabia quem era, nunca se tinha importado. Mas agora iria fazer alguma coisa por ele. Iria ajudá-lo, talvez até arranjar-lhe um emprego.
   “Isso!”, pensou Jaime.
  Estavam na época de Natal e era a altura certa para oferecer um presente a um amigo antigo. Mas as coisas não aconteceram dessa forma. No dia seguinte, quando ele voltou ao parque, encontrou um bilhete preso a uma árvore que ficava próxima do sítio onde conversara com Artur – no bilhete, Artur agradecia a sua amizade. Indicava que mais do que o dinheiro que Jaime lhe tentara dar e que ele não aceitara, era o calor humano que ele dava mais importância. Decidira no entanto seguir o seu caminho, mas de cabeça erguida e com mais esperança no futuro.