O Silêncio
Rute
atirou a beata do cigarro para o chão. Sabia que não o devia fazer,
mas o seu lado rebelde parecia obrigá-la. Sorriu com esse
pensamento. Rute, a rebelde. As amigas rir-se-iam dela. No
entendimento delas, a Rute não tinha nada de rebelde. Não passava
de uma mulher solitária, a entrar nos famosos “entas”. Nos
últimos anos o vazio agudizara-se e isso levara-a àquela
instituição. Lembrava-se de quando iniciara o processo, há quase
um ano. Entrara com receio e cheia de dúvidas. A ideia não era
adoptar, mas acolher uma criança. Na primeira entrevista com a
assistente social indicou que procurava um desafio. Rute ainda se
lembrava de como os olhos da assistente social se abriram.
O
Ângelo era uma criança pequena para os seus sete anos. Pouco
falava. Não havia um diagnóstico preciso, mas os psicólogos
sugeriam que tinha sofrido um trauma profundo, tão comum nas
crianças daquela instituição. Os exames médicos não tinham
encontrado sinais de maus tratos e ele não se abria com ninguém.
Rute ficou imediatamente cativada pelo rapaz de estranhos olhos
claros que agora, passado o longo processo, iria com ela para casa.
Já
tinham feito algumas experiências. No primeiro fim-de-semana que o
Ângelo tinha passado com ela, parecera uma estátua. Sentara-se numa
cadeira a ver televisão e não dissera uma única palavra. Ela
sentou-se ao lado dele a ler um livro e assim ficou durante duas
horas antes de adormecer no sofá. Acordou sobressaltada, pensando
que ele tinha fugido. Mas não. O Ângelo estava sentado ao seu lado.
Tinha-a coberto com uma manta, porque o aquecimento não estava
ligado.
A
segunda experiência correu melhor. Foram de metro até à praia e
almoçaram por lá. O Ângelo ficou algum tempo a olhar para o mar,
depois a atenção prendeu-se num bando de gaivotas que pareciam
igualmente hipnotizadas pela presença dele. Estranho, pensou Rute,
mas nunca ligou a esse pormenor até ao acontecimento de Coimbra,
precisamente um ano depois - um ano de uma luta constante contra o
silêncio e a apatia do rapaz. O desespero foi tomando conta dela, ao
mesmo tempo que sentia que falhara redondamente. Depois começou a
sentir que conseguia entrar no mundo dele. De uma forma lenta começou
a compreender os seus silêncios e a deduzir o seu estado de
espírito. Na escola, o silencioso Ângelo destacava-se por uma
inteligência fora do normal. Só o facto de não interagir com
ninguém o distinguia dos colegas que, por esse facto, o punham de
lado. O Ângelo não tinha qualquer problema na fala, nem na audição.
Não sofria de qualquer tipo de autismo. Isso ficou provado um dia em
que a Rute foi falar com a professora e esta lhe mostrou uma
composição do Ângelo. Ela sentiu as lágrimas a escorregarem pela
face ao ler o que ela dizia dela. Ele era, apenas, silencioso.
Pelo
seu oitavo aniversário, ela organizou uma festa e tiraram uma
fotografia. Rute tinha convidado as amigas. Algumas tinham trazido os
seus próprios filhos, mas o Ângelo não se relacionou com ninguém,
pelo que os outros também o ignoraram. Para todos os efeitos, era
como se fosse invisível. Rute publicou a fotografia da festa no seu
perfil do Facebook. Era a primeira fotografia do Ângelo que
publicava e a reacção foi unânime, obtendo 96 “gostos”. Houve
até quem partilhasse a fotografia e gabasse a beleza estranha do
rapaz.
Isso
foi pouco tempo antes de Coimbra. O convite para irem passar o
fim-de-semana a Lisboa tinha partido de uma amiga de infância de
Rute e ela aceitou de imediato. Tencionava ir de comboio, como era
seu hábito, mas havia um pré-aviso de greve. Ela não arriscou e
foi de camioneta. Entrou para o veículo com um mau pressentimento
que contrastava com a calma habitual de Ângelo, que passou parte da
viagem a olhar para a paisagem.
Rute
enfiou os auscultadores nos ouvidos e concentrou-se na música. O mau
pressentimento não a largava. Detestava viajar de autocarro.
Incomodava-a o conjunto de factores que podiam pôr em perigo a
viagem, desde o estado do condutor às condições da estrada.
Preferia mil vezes o comboio.
Ao
passarem por Coimbra, o Ângelo desviou a atenção da paisagem para a
própria Rute. Um gesto que ela estranhou. Ele encostou-se a ela e
abraçou-a com os seus pequenos braços mas que pareciam ter-se
agigantado. Também o corpo dele parecia ter-se tornado muito maior.
–
Amo-te, Rute.
O
sussurro foi dito ao ouvido dela, que não teve tempo para reagir à
surpresa antes do pneu rebentar e o autocarro se despistar. A Rute
sentiu a violência do impacto e tudo a andar às voltas. Ainda abraçada a Ângelo, perdeu os sentidos.
Depois
do acidente, Rute esteve internada durante algumas semanas. Aos
poucos, foi ganhando consciência de ter sido a única sobrevivente
do acidente. Soube que tinha perguntado insistentemente por Ângelo.
Percebeu que ele tinha morrido, mas o corpo do rapaz nunca foi
encontrado. Desaparecera sem deixar vestígios depois de,
aparentemente, ter salvo a vida de Rute.
Ele
previra o acidente e ela juntou esse facto aos outros factos
estranhos que sempre tinham acontecido à volta dele, sendo que o seu
silêncio era o menor deles. Rute sentiu-se uma privilegiada por ter
tido aquele ano de felicidade - uma felicidade contida, feita de
pequenos nadas.
* * *
Paulo
contactou-a dois meses depois do acidente. Tinha visto a fotografia
do aniversário do Ângelo no facebook e tinha mandado uma mensagem
privada a pedir a Rute um encontro. Encontraram-se face a face num
café no Porto.
–
Quero mostrar-lhe uma coisa, Rute, mas devo avisá-la de que o
conteúdo é forte.
–
Paulo, se o acidente não me matou, também não vão ser imagens que
o vão fazer. Mesmo que não tenha comigo o Ângelo. Tem a ver com
ele?
–
Sim. Veja, por favor.
Ele
colocou três fotografias em cima da mesa. Duas a preto-e-branco, uma
a cores. Todas de aspecto antigo. Em todas aparecia um rapaz parecido
com Ângelo.
–
Estas fotografias são montagens? – perguntou Rute, bebendo o seu
café.
–
Não. Uma é de 1924, outra de 1935. A última foi tirada na década
de 60. Estados Unidos, Rússia e Itália. É ele.
Rute
abanou a cabeça. Por mais que estivesse habituada a aceitar os
factos estranhos que rodeavam o Ângelo, aquela revelação era
excessiva.
–
Não pode ser.
–
Eu sei que é difícil de acreditar, mas existem relatos da
existência de outros como ele. Salvaram vidas de formas
inexplicáveis.
–
Como um anjo da guarda?
Paulo
sorriu.
–
Precisamente.
Rute
reflectiu por um instante.
–
Vamos fingir que eu acredito nisso. Porque é que um anjo da guarda
se interessou por mim?
Paulo
encolheu os ombros.
–
Isso tem de ser a Rute a descobrir.
“Isso
tem de ser a Rute a descobrir”.
Ela
mandou fazer 1700 cópias da fotografia do Ângelo e passou dois dias
a colá-las nas paredes do apartamento. Havia um sentido para a sua
existência? Deitou-se no chão, rodeada pelas fotografias.
Apetecia-lhe fumar, mas deixara o vício. Era estúpido ter sido
salva por um anjo da guarda para morrer de cancro de pulmão.
O
que é que ela tinha? Um emprego e um apartamento que devia valer uns bons milhares de euros, na baixa do Porto,
herança dos pais.
Apartamento.
Milhares de euros.
Apartamento.
Milhares de euros.
Olhou
em volta. O olhar de 1700 Ângelos parecia fixado nela.
* * *
–
Chegámos?
–
Sim.
Rute
olhou em volta. Parecia-lhe estar no meio do nada. Apenas um
amontoado de casas assinalava a presença da Missão naquela aldeia
nos arredores da cidade da Beira, capital da província moçambicana
de Sofala. O taxista pousou as malas no chão de terra vermelha,
esperou impacientemente que ela lhe pagasse e depois partiu, deixando
atrás de si uma onda de pó.
A
irmã Hertha, uma alemã com pouco mais de vinte anos, veio
cumprimentá-la com um sorriso franco, olhar cansado e a pele
queimada pelo sol. Atrás dela, surgiu um bando de crianças, de
olhar vivo. Chegara a altura de Rute ser o anjo da guarda de alguém.
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