domingo, 18 de novembro de 2018

O Silêncio


O Silêncio




    Rute atirou a beata do cigarro para o chão. Sabia que não o devia fazer, mas o seu lado rebelde parecia obrigá-la. Sorriu com esse pensamento. Rute, a rebelde. As amigas rir-se-iam dela. No entendimento delas, a Rute não tinha nada de rebelde. Não passava de uma mulher solitária, a entrar nos famosos “entas”. Nos últimos anos o vazio agudizara-se e isso levara-a àquela instituição. Lembrava-se de quando iniciara o processo, há quase um ano. Entrara com receio e cheia de dúvidas. A ideia não era adoptar, mas acolher uma criança. Na primeira entrevista com a assistente social indicou que procurava um desafio. Rute ainda se lembrava de como os olhos da assistente social se abriram.
    O Ângelo era uma criança pequena para os seus sete anos. Pouco falava. Não havia um diagnóstico preciso, mas os psicólogos sugeriam que tinha sofrido um trauma profundo, tão comum nas crianças daquela instituição. Os exames médicos não tinham encontrado sinais de maus tratos e ele não se abria com ninguém. Rute ficou imediatamente cativada pelo rapaz de estranhos olhos claros que agora, passado o longo processo, iria com ela para casa.
    Já tinham feito algumas experiências. No primeiro fim-de-semana que o Ângelo tinha passado com ela, parecera uma estátua. Sentara-se numa cadeira a ver televisão e não dissera uma única palavra. Ela sentou-se ao lado dele a ler um livro e assim ficou durante duas horas antes de adormecer no sofá. Acordou sobressaltada, pensando que ele tinha fugido. Mas não. O Ângelo estava sentado ao seu lado. Tinha-a coberto com uma manta, porque o aquecimento não estava ligado.
    A segunda experiência correu melhor. Foram de metro até à praia e almoçaram por lá. O Ângelo ficou algum tempo a olhar para o mar, depois a atenção prendeu-se num bando de gaivotas que pareciam igualmente hipnotizadas pela presença dele. Estranho, pensou Rute, mas nunca ligou a esse pormenor até ao acontecimento de Coimbra, precisamente um ano depois - um ano de uma luta constante contra o silêncio e a apatia do rapaz. O desespero foi tomando conta dela, ao mesmo tempo que sentia que falhara redondamente. Depois começou a sentir que conseguia entrar no mundo dele. De uma forma lenta começou a compreender os seus silêncios e a deduzir o seu estado de espírito. Na escola, o silencioso Ângelo destacava-se por uma inteligência fora do normal. Só o facto de não interagir com ninguém o distinguia dos colegas que, por esse facto, o punham de lado. O Ângelo não tinha qualquer problema na fala, nem na audição. Não sofria de qualquer tipo de autismo. Isso ficou provado um dia em que a Rute foi falar com a professora e esta lhe mostrou uma composição do Ângelo. Ela sentiu as lágrimas a escorregarem pela face ao ler o que ela dizia dela. Ele era, apenas, silencioso.
    Pelo seu oitavo aniversário, ela organizou uma festa e tiraram uma fotografia. Rute tinha convidado as amigas. Algumas tinham trazido os seus próprios filhos, mas o Ângelo não se relacionou com ninguém, pelo que os outros também o ignoraram. Para todos os efeitos, era como se fosse invisível. Rute publicou a fotografia da festa no seu perfil do Facebook. Era a primeira fotografia do Ângelo que publicava e a reacção foi unânime, obtendo 96 “gostos”. Houve até quem partilhasse a fotografia e gabasse a beleza estranha do rapaz.
    Isso foi pouco tempo antes de Coimbra. O convite para irem passar o fim-de-semana a Lisboa tinha partido de uma amiga de infância de Rute e ela aceitou de imediato. Tencionava ir de comboio, como era seu hábito, mas havia um pré-aviso de greve. Ela não arriscou e foi de camioneta. Entrou para o veículo com um mau pressentimento que contrastava com a calma habitual de Ângelo, que passou parte da viagem a olhar para a paisagem.
    Rute enfiou os auscultadores nos ouvidos e concentrou-se na música. O mau pressentimento não a largava. Detestava viajar de autocarro. Incomodava-a o conjunto de factores que podiam pôr em perigo a viagem, desde o estado do condutor às condições da estrada. Preferia mil vezes o comboio.
    Ao passarem por Coimbra, o Ângelo desviou a atenção da paisagem para a própria Rute. Um gesto que ela estranhou. Ele encostou-se a ela e abraçou-a com os seus pequenos braços mas que pareciam ter-se agigantado. Também o corpo dele parecia ter-se tornado muito maior.
    – Amo-te, Rute.
    O sussurro foi dito ao ouvido dela, que não teve tempo para reagir à surpresa antes do pneu rebentar e o autocarro se despistar. A Rute sentiu a violência do impacto e tudo a andar às voltas. Ainda abraçada a Ângelo, perdeu os sentidos.

    Depois do acidente, Rute esteve internada durante algumas semanas. Aos poucos, foi ganhando consciência de ter sido a única sobrevivente do acidente. Soube que tinha perguntado insistentemente por Ângelo. Percebeu que ele tinha morrido, mas o corpo do rapaz nunca foi encontrado. Desaparecera sem deixar vestígios depois de, aparentemente, ter salvo a vida de Rute.
    Ele previra o acidente e ela juntou esse facto aos outros factos estranhos que sempre tinham acontecido à volta dele, sendo que o seu silêncio era o menor deles. Rute sentiu-se uma privilegiada por ter tido aquele ano de felicidade - uma felicidade contida, feita de pequenos nadas.
* * *

    Paulo contactou-a dois meses depois do acidente. Tinha visto a fotografia do aniversário do Ângelo no facebook e tinha mandado uma mensagem privada a pedir a Rute um encontro. Encontraram-se face a face num café no Porto.
    – Quero mostrar-lhe uma coisa, Rute, mas devo avisá-la de que o conteúdo é forte.
    – Paulo, se o acidente não me matou, também não vão ser imagens que o vão fazer. Mesmo que não tenha comigo o Ângelo. Tem a ver com ele?
    – Sim. Veja, por favor.
Ele colocou três fotografias em cima da mesa. Duas a preto-e-branco, uma a cores. Todas de aspecto antigo. Em todas aparecia um rapaz parecido com Ângelo.
    – Estas fotografias são montagens? – perguntou Rute, bebendo o seu café.
    – Não. Uma é de 1924, outra de 1935. A última foi tirada na década de 60. Estados Unidos, Rússia e Itália. É ele.
    Rute abanou a cabeça. Por mais que estivesse habituada a aceitar os factos estranhos que rodeavam o Ângelo, aquela revelação era excessiva.
    – Não pode ser.
    – Eu sei que é difícil de acreditar, mas existem relatos da existência de outros como ele. Salvaram vidas de formas inexplicáveis.
    – Como um anjo da guarda?
    Paulo sorriu.
    – Precisamente.
    Rute reflectiu por um instante.
    – Vamos fingir que eu acredito nisso. Porque é que um anjo da guarda se interessou por mim?
    Paulo encolheu os ombros.
    – Isso tem de ser a Rute a descobrir.

    “Isso tem de ser a Rute a descobrir”.
    Ela mandou fazer 1700 cópias da fotografia do Ângelo e passou dois dias a colá-las nas paredes do apartamento. Havia um sentido para a sua existência? Deitou-se no chão, rodeada pelas fotografias. Apetecia-lhe fumar, mas deixara o vício. Era estúpido ter sido salva por um anjo da guarda para morrer de cancro de pulmão.
    O que é que ela tinha? Um emprego e um apartamento que devia valer uns bons milhares de euros, na baixa do Porto, herança dos pais.
    Apartamento.
    Milhares de euros.
    Olhou em volta. O olhar de 1700 Ângelos parecia fixado nela.

* * *

    – Chegámos?
    – Sim.
    Rute olhou em volta. Parecia-lhe estar no meio do nada. Apenas um amontoado de casas assinalava a presença da Missão naquela aldeia nos arredores da cidade da Beira, capital da província moçambicana de Sofala. O taxista pousou as malas no chão de terra vermelha, esperou impacientemente que ela lhe pagasse e depois partiu, deixando atrás de si uma onda de pó.
    A irmã Hertha, uma alemã com pouco mais de vinte anos, veio cumprimentá-la com um sorriso franco, olhar cansado e a pele queimada pelo sol. Atrás dela, surgiu um bando de crianças, de olhar vivo. Chegara a altura de Rute ser o anjo da guarda de alguém.





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